Entrevista publicada originalmente no anuário ArqSC 9ª edição (2017), clica aqui para ler.
“A utopia está lá no horizonte,
– me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
– caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
– por mais que eu caminhe jamais a alcançarei.
Para que serve a utopia?
Para que eu não deixe de caminhar.”
Eduardo Galeano
O tempo traz um distanciamento necessário em relação à própria produção. Nem sempre é suficiente para o autor se dar conta da relevância da sua obra. Durante a entrevista com o arquiteto Moysés Liz, invariavelmente ele fazia comentários sobre suas próprias limitações e as limitações inerentes à profissão. Diante do prédio que talvez seja o mais significativo até hoje em Florianópolis, o Ceisa Center, perguntei-lhe: “Você tem dimensão da relevância dessa obra?”. Ele respondeu pausadamente, não sem antes refletir e falar com convicção: “Eu tenho orgulho em ver que o prédio está sendo usado”.
O pensamento de Eduardo Galeano, que abre a entrevista, e a resposta acima dizem muito sobre o arquiteto, que nasceu na zona rural, em Índios, distrito de Lages, e aos sete anos foi com o pai, de carroça, morar na casa da avó, na cidade, para estudar. O maior orgulho de Moysés é ver a arquitetura projetada na prancheta ser útil e fazer bem ao usuário, décadas depois de pronta. Porque para ele a impermanência da vida também tem reciprocidade na arquitetura, portanto é natural que haja mudanças. Os pensamentos do arquiteto hábitos como a prática da cerimônia do chá e de outras atividades espirituais inspiradas nos Andes (Mistica Andina e Nação Pachamama) e no Oriente (Budismo, Zen Budismo, Taoismo e Induismo).
Humildade talvez seja a palavra que melhor traduza a maneira dele olhar à arquitetura, dando importância para o caráter social e o contexto da cidade, sem a necessidade de holofotes pessoais. Na seção de fotos, achou um exagero tantos cliques. “Não sou nenhuma estrela”, falou timidamente o sócio número dois do IAB/SC (Instituto de Arquitetos do Brasil). Em 3 de outubro de 1969, assinou a criação da instituição em Santa Catarina juntamente com Odilon Monteiro, Antônio Rogério de Macedo, Joel Pereira, João Preto e Carmem Cassol.
Quando seus pais mudaram-se para Lages (SC), Moysés foi morar com eles antes de partir para Porto Alegre para servir ao exército e fazer o vestibular para arquitetura, em 1954, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde se formou. Ao vir para Florianópolis, em 1960, a cidade tinha apenas um arquiteto – a primeira escola de arquitetura no Estado é de 1977 e a primeira turma formada é de 1982. Os profissionais eram formados principalmente no Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo.
Com a oportunidade de atuar na esfera institucional, o arquiteto marcou sua trajetória com projetos arquitetônicos responsáveis pela inserção de linguagens, tipologias e novas tecnologias da construção. A partir da década de 1970 houve um período de verticalização, uso e expansão do concreto armado e as suas obras criaram grande impacto no cenário urbano da cidade.
Moysés Liz, 82 anos, é o nome que abre a série ‘Memória’, que procura resgatar a história da arquitetura catarinense, a importância e o pensamento de profissionais que ajudaram a construir nossas cidades. A entrevista foi realizada na casa do arquiteto, numa tarde prazerosa regada a chá de hortelã feito por ele com erva colhida em sua própria horta, e teve a participação do também arquiteto Guilherme Llantada, que nos brinda com
um ensaio de fotos. Boa leitura!
Clica aqui para ver o ensaio de fotos do Ceisa Center pelo arquiteto, fotógrafo e professor da Univali, Guilherme Llantada.
ArqSC – O que influenciou a decisão pelo curso de arquitetura?
Acho que foi meu temperamento. Além de gostar de matemática, eu achava que tinha uma certa sensibilidade
para outras coisas como arte, talvez o curso mais adequado fosse arquitetura. Não foi nenhuma pessoa, e também porque não gostava de química e no vestibular de engenharia tinha química.
ArqSC – E por que a vinda para Santa Catarina?
Quando eu me formei em Porto Alegre, em 1959, tinha trabalho, mas estava um pouco difícil. Eu tinha necessidade financeira e precisava trabalhar. Naquela época meu professor Roberto Veronesi – que foi autor do
Marambaia, aquele hotel de Balneário Camboriú; de outro em Cabeçudas; da antiga rodoviária na Mauro Ramos, em Florianópolis; de um mercado no Estreito com o mesmo partido da rodoviária; de um edifício na praia de Coqueiros, com pilotis -, fazia muitos trabalhos aqui. Então decidi mudar em abril de 1960. Fui trabalhar na Diretoria de Obras Públicas, que funcionava no terreno onde hoje é o Ceisa Center.
ArqSC – Como era o cenário da arquitetura na época e como foi sua chegada em Florianópolis?
Fui muito bem recebido. Na diretoria tinha uma turma de engenheiros de Curitiba, até hoje permanece
a amizade com alguns que ainda estão vivos (risadas). O cenário da arquitetura em Florianópolis era o casario todo baixo, um ou dois pavimentos, casas térreas, alto só o edifício das Secretarias, o Zahia, e do Banco Nacional do Comércio, onde atualmente é o Santander, na Praça XV. A primeira noite que dormi aqui foi no hotel La Porta, que ficava na praça XV (hoje é a Caixa Econômica Federal), as muradas junto ao mar eram bem perto do hotel, lembro bem de ouvir o barulho do mar na primeira noite. Uma cidade tranquila, ouvindo o barulhinho da água, era muito gostosa essa sensação.
ArqSC – Já havia arquitetos na cidade naquele tempo?
O único arquiteto que havia na época era o Walmy Bittencourt, formado no Rio de Janeiro, que já devia ter uns
cinco anos de profissão. Eu tinha notícia também que o Pedro Paulo de Melo Saraiva fazia alguns trabalhos, ele era nascido aqui, fez o projeto para a Assembleia Legislativa com o Paulo Mendes da Rocha.
ArqSC – Como foram as primeiras experiências arquitetônicas na cidade?
Nas obras públicas tive uma experiência muito boa. Na época, a UFSC já tinha o terreno na Trindade, mas havia
uma resistência muito grande dos diretores em fazer a mudança pra lá. O desembargador Henrique da Silva
Fontes foi a pessoa que deu muita força para que a mudança ocorresse, embora tivesse a idade que tenho
hoje. Ele era muito dinâmico, a gente ia de jipe da Diretoria de Obras Públicas, no Centro, ao campus, em estrada de barro, onde estavam construindo um único prédio que deu as condições para começar o ensino na universidade federal.
ArqSC – Essa influência modernista já estava presente?
Sim, já estava muito presente. Eu tive uma experiência muito positiva no segundo ano do curso de arquitetura.
Houve um concurso para escolher os alunos que iriam fazer uma visita ao Rio de Janeiro, em 1956. Foi marcante
poder ir ao Rio e visitar os principais escritórios de arquitetura da época. A arquitetura carioca era muito
mais relevante, inventiva e criativa do que a dos paulistas. Visitamos Sérgio Bernardes, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Henrique Mindlin, Niemeyer, Burle Marx. Cheguei a ver as pranchas do projeto da Praça dos Três Poderes sobre a mesa de Niemeyer. No Leme, no ateliê de Burle Marx, vi ele projetando joias. Foi uma experiência muito marcante.
Guilherme Llantada – Era uma arquitetura revolucionária…
Revolucionária, criativa, muito poética… eles pautavam pela autenticidade. As casas de Sérgio Bernardes eram
maravilhosas, uma das casas no topo de um costão tinha uma piscina com horizonte infinito, já se fazia naquela
época.
ArqSC – Essa vivência foi determinante para a construção da sua trajetória arquitetônica?
Acho que me deu certeza de que era por ali mesmo, não havia dúvida que abriu mais a minha sensibilidade para a arquitetura. Comecei a ver de forma mais concreta como as coisas poderiam ser expressas. Lembro que o Jorge Moreira chamava a atenção para o enquadramento das aberturas na paisagem, as janelas serviam de moldura para que a paisagem fosse enfatizada e transformadas em quadros vivos.
Guilherme – É a fotografia…
Sim, é a fotografia, era um quadro vivo, eles exploravam muito nessa época. A natureza do Rio se presta muito a
isso, tem elementos geográficos e iconográficos muito marcantes que eram enquadrados na arquitetura.
ArqSC – A arquitetura institucional foi uma marca do escritório. O Walmy Bittencourt, que tinha ganhado uma concorrência para o Hospital Celso Ramos, me convidou para participar do projeto. Ele ficou seis meses fora por conta de uma bolsa de estudo. Antes fez toda a pesquisa, coleta de dados e dimensionamento, mas faltava a
implantação do hospital no terreno, que coube a mim. Concluímos o projeto conforme as condições da época.
Depois foi alterado, tinha um pilotis no térreo que foi ocupado totalmente, tinha uma separação do centro
cirúrgico em relação ao ambulatório inspirado nos projetos de Rino Levi, um arquiteto paulista que fazia muitos
projetos de hospitais.
“Tenho orgulho de dizer que muitas
coisas aconteciam por vontade própria
da gente, não porque havia um plano diretor
e um código de obras”
ArqSC – Qual foi a próxima obra depois do Hospital Celso Ramos?
Veio o concurso para o Palácio da Justiça e eu convidei o Ademar Cassol para fazer o projeto. Ficamos em terceiro lugar, quem ganhou foi o Pedro Paulo de Melo Saraiva. Depois do concurso nós continuamos trabalhando juntos, era o escritório Liz Cassol, e depois entrou o Monteiro. Foi aí que surgiu o Liz Cassol Monteiro, depois ficou apenas o Liz Monteiro.
ArqSC – Quantos anos durou o famoso escritório Liz Monteiro Cassol?
No total, foram 17 anos. Um dos projetos que fizemos foi a companhia telefônica daqui, que era privada,
pertencia a família Ganzo, tornou-se pública, e deu origem a Telesc. Nós fizemos o projeto da administração da
Telesc, no Itacorubi. Foi uma grande revolução na parte de telefonia, porque anteriormente a gente pedia uma
ligação para Porto Alegre e ficava aguardando ser chamado no outro dia à tarde. Isso no início dos anos de 1970.
ArqSC – E nessa época as obras já tinham influência da escola paulista?
Sim, começou desde o concurso do Palácio da Justiça, era o brutalismo, o concreto, a estrutura aparente, e também influência das ideias de Niemeyer com os grandes vãos livres, estrutura esbelta. A principal linguagem era a dispensa de revestimentos, principalmente o reboco. O ideal era deixar até a marca das formas. Tinha a influência de Brasília, o uso da argamassa armada para fazer os elementos prémoldados de concreto mais esbeltos. No prédio da Telesc conseguimos incorporar esses elementos nas fachadas e que serviram de proteção solar. São três fachadas e três curvas com insolação diferente nas janelas contínuas. Dividimos as fachadas em vários setores e para cada um tinha um determinado desenho para que fosse mínima a incidência solar, gerando menor consumo de ar condicionado. Já havia essa preocupação em fazer escritórios panorâmicos, todos livres, com divisórias e forros removíveis para dar mais flexibilidade para as mudanças necessárias. Junto com a Telesc do Itacorubi, veio o prédio da Telesc Regional, na Praça Pereira Oliveira, onde é o atual Banco Safra. O terreno era relativamente grande, numa área central, com muita visibilidade. Foi possível fazer um projeto com mais ênfase na estética, com três fachadas formando unidade e que pudesse ser visto de qualquer ângulo, sem interferência de outras necessidades que não a estética. E esse partido a gente procurou tirar do concreto, fazendo as colunas caneladas e o teto com vigas diagonais aparentes. Não sei se ainda permanece, mas gosto muito do espaço central da entrada, com pé direito duplo e que permite a quem chega ver os dois níveis laterais. No lado direito via-se as cabines telefônicas revestidas com forração vermelha e portas de vidro temperado transparente.
ArqSC – A estética como partido é uma possibilidade. Como você vê a correspondência entre forma, função considerando a ideia de que a forma artística deriva de um método, ou problema?
Na medida do possível, o arquiteto procura atender a função, que a arquitetura responda a necessidade do
cliente, mas de uma forma agradável aos olhos, que tenha estética e cause impacto, unindo vários elementos
que juntos conseguem sensibilizar o espectador. Arquitetura é muito surpresa, impacto inicial e amor à
primeira vista.
ArqSC – Como foi a repercussão das novas obras que estavam sendo erguidas nas décadas de 1970 e 1980
com linguagens tão diferentes das que a cidade estava acostumada a ver?
Foi bem aceita, o pessoal se entusiasmava tanto quanto a gente. Tenho orgulho de dizer que muitas coisas aconteciam por vontade própria da gente, não porque havia um plano diretor e um código de obras. Fazíamos os projetos tendo em vista a melhor forma de aproveitamento do terreno e que fosse expressivo, que não prejudicasse a vizinhança, pelo contrário, que valorizasse o entorno. Eu passei em um prédio que fiz recentemente, no ano 2000, na Rio Branco. O Centro Empresarial Barão do Rio Branco é um prédio que tem o hall bem recuado e duas esculturas do Max (Max Moura) em frente – um grande amigo, eu o conheci em 1969 fazendo desenhos no Museu de Arte Moderna de Santa Catarina. Uma das esculturas é uma árvore de ferro preta e penso que é uma crítica à preservação. Eu consegui fazer com que a firma imobiliária que construiu não comercializasse a parte da frente. É um exemplo de projeto que procura se relacionar com o entorno de forma harmoniosa. Esse mesmo princípio consegui no Ceisa Center nas entradas. Na Osmar Cunha criou-se um espaço público coberto com esculturas da Elke Hering Bell. Houve uma integração da arte com a arquitetura em um espaço público que foi valorizado. A escultura ‘Fruto Partido’ está com sua base de fixação exposta porque o condomínio eliminou um canteiro com vegetação e isso prejudicou muito a apresentação, o que não acontecia no projeto original. Já na entrada da rua Vidal Ramos temos uma passarela central com uma cascata de um lado e, de outro, um espelho d’água. A ideia era fazer com que a água formasse um remanso do outro lado, passando por baixo da passarela. Infelizmente o espelho d’água foi ocupado por uma loja de colchões, descaracterizando o espaço e agredindo as esculturas das paredes do artista paulista Roberto Vivas. Alugando o espaço os condôminos acharam uma forma de ganhar dinheiro. É um espaço público ocupado, não deixa de ser uma forma de corrupção.
ArqSC – Como foi o processo de desenvolvimento do Ceisa Center considerando o briefing do cliente?
Era um terreno enorme, até hoje acho que é o maior terreno urbano em Florianópolis. Faz frente para três ruas
e a gente procurou fazer o acesso das garagens na parte mais desvalorizada e os acessos do público, um para
cada uma das três ruas que limitam o terreno, convergem a uma área maior, no miolo do prédio, como se ali
funcionasse uma praça, um ponto de encontro. Neste espaço, além das colunas revestidas de aço inox polido,
destacava-se a escada central, leve e solta. Infelizmente este espaço hoje é lotado por várias banquinhas de
comércio informal, sem nenhuma estética ou respeito. O prédio em si foi dividido em três blocos separados
pelas juntas de dilatação sendo que cada bloco tem sua circulação vertical própria. As entradas para esses blocos
também acontecem pela galeria. As lojas têm pé-direito duplo e para não ficar muito monótono, colocamos alternadamente sobrelojas avançando em balanço sobre a galeria.
ArqSC – E o desenho em curva como surgiu?
O terreno era todo irregular e a curva surgiu para compatibilizar essa irregularidade – outra coisa que a
gente conseguiu na época. Até então poderíamos ter feito o prédio afastado um metro e meio do vizinho, estava dentro da legislação e daria muita área para o empreendedor ganhar dinheiro, mas achei que ficaria mais harmonioso inserir a curva, para seguir também um pouquinho o Niemeyer né (risadas).
Guilherme – Teve influência do Copan…
Tem influência, mas era isso que a gente sabia fazer na época … (risadas)
Guilherme – Você falou de unidade, de responder a uma determinada necessidade do cliente. A gente olha essas obras depois de tanto tempo e elas têm um grau de atemporalidade, de permanência no espaço, vivendo o tempo atual, as vezes mais atual do que obras realizadas hoje porque tem uma essência bela, uma unidade que preserva no tempo, como referência, tem qualidade impressionante. O Banco Safra desenha a praça com uma lucidez de não querer ser mais do que é, mas acaba sendo. Tem essa força de projeto pela precisão do desenho, que não tenta rebuscar, criar um barroco, um acessório, e aí fica atemporal, talvez fosse muito novo pra época. O Ceisa foi uma revolução dentro da arquitetura, talvez é o prédio mais significativo até hoje em Florianópolis. O prédio da Eletrosul, o da Celesc, da Telesc, eles têm essa identidade, essa unidade…
Também acho que a época favoreceu esse tipo de solução que resultasse em uma obra mais séria. Pressa
havia, mas não era uma pressão como hoje. Também havia necessidade de ser pago, de receber pelo projeto,
mas não era assim de forma tão gananciosa. O dinheiro era importante para se manter, mas não para ficar rico,
entende. A obra era importante, não a pessoa da gente.
ArqSC – Considerando esse ponto de vista, o que é arquitetura pra você?
Arquitetura pra mim é a criação de um cenário onde a vida acontece. É um cenário que te abriga, te aconchega e que poderá fazer você vivenciar emoções. Acho que todo arquiteto procura fazer com que a vida que irá ocorrer naquele espaço seja harmoniosa, solidária, até humilde né? Nada de exibicionismo.
ArqSC – Independente da escala…
Isso é fundamental, tanto faz projetar um palácio quanto uma casinha humilde de um operário, eu me empenharia da mesma maneira. Não tem diferença entre uma obra de vultou ou pequena.
Guilherme – Quando você fala nos acessos a gente vê como a arquitetura pode fazer urbanismo. O urbano não é resultado de um desenho do urbano, mas do desenho da arquitetura. Suas obras têm essa provocação dos acessos, é um prédio privado, mas tão público na forma. O Ceisa se oferece à cidade, é uma via de passagem, eu prefiro passar por dentro do prédio do que pela rua, é um passeio.
Esse projeto que eu fiz na Rio Branco também tem essa doação de um pouco da sua área para o público.
Guilherme – Paulo Mendes da Rocha fala do não espaço comercial, que infelizmente os urbanistas não
desenham a cidade, até pensam, filosofam sobre o tema, mas quem desenha a cidade é a especulação imobiliária. É até uma discussão dentro das universidades quando falamos sobre conceito de projeto para os alunos que depois irão para o mercado: o que é o melhor para a
cidade e ainda assim traz o benefício para o investidor…
No Ceisa Center houve um sucesso incrível na venda, porque era um prédio convidativo, teve um retorno, a
qualidade do espaço que estava sendo vendido fez com que a demanda aumentasse, inclusive depois subiram os
preços.
“Fazíamos os projetos tendo em vista a
melhor forma de aproveitamento do
terreno e que fosse expressivo, que
não prejudicasse a vizinhança, pelo
contrário, que valorizasse o entorno”
“No Ceisa Center houve um sucesso incrível na
venda, porque era um prédio convidativo,
teve um retorno, a qualidade do espaço
que estava sendo vendido fez com que a
demanda aumentasse”
Guilherme – É essa discussão do poder que o arquiteto tem de convencer o investidor…
Mesmo em prédios públicos você pode influir, tive esta experiência no prédio da Telesc. A obra atrasou e a
diretoria me chamou porque queria abreviar e simplificar a obra, eliminando os brises da fachada. Eu fiquei…
Nessas horas vem uma força que a gente acha que não tem. Quando nos convencemos de algo que consideramos verdadeiro, temos força e eu consegui convencê-los de que estariam fazendo uma grande
bobagem. Os brises eram o que dava vida e valoriza o prédio, além de que os pré-moldados eram independentes da obra e não estavam atrasando a construção.
ArqSC – Qual é o papel do arquiteto diante de tantas demandas, partidos, forma, função, responsabilidades …
O arquiteto tem que ter, de certa forma, jogo de cintura. Ele é bombardeado por vários interesses e tem que ter
discernimento para enxergar o que é melhor para a cidade, tem que pensar na cidade. Até pode pensar no
interesse do dono, mas o importante é pensar no espaço urbano e o que aquela obra vai representar no cenário
onde será implantada. É bonito sentir esse poder, não é um poder de dinheiro, ditatorial, é um poder de convencimento, de demonstrar que o que você projetou é o melhor para a cidade e para a sociedade. Quero aproveitar para dizer que fiquei surpreso com colegas convidando, pelo whatsapp, para uma audiência do Plano Diretor para discutir e estabelecer as APPs da ilha. Um grupo queria muita APP e outro disse assim: “não vai eles quererem transformar a ilha toda em uma APP”. Pensei comigo: “seria uma maravilha transformar a ilha toda numa APP, era um respeito a essa beleza exuberante que temos aqui e que está sendo deteriorada”.
Guilherme – Qual o rumo que a arquitetura do século XXI está tomando? Esse consumo das energias, da matéria, da própria natureza está tirando a vida da cidade, como fazer essa cumplicidade cidade e natureza? Como viver numa capital onde tem uma grande área de preservação permanente dentro de um perímetro urbano e como essa arquitetura pode resolver isso?
Esse pensamento dos colegas é equivocado. O arquiteto deveria ter uma visão maior e sensibilidade em relação
a cidade. Eles estão querendo menos APP para ampliar o mercado de trabalho deles e dar mais área para as
construtoras. Alegam que quem polui é a população de baixa renda que ocupam os morros sem planejamento.
Mas as pessoas precisam morar, há uma omissão do poder público, a cidade está sendo poluída pela omissão.
Acho que uma das grandes causas do fracasso dos Planos Diretores é que eles não preveem terrenos ou locais
para a população de baixa renda. Aí essa população acaba ocupando os morros ou áreas incompatíveis para
a construção de moradias. Como não existem outros locais que eles possam ocupar e eles precisam morar,
ocorre a improvisação, a poluição, a abertura de servidões. Florianópolis é campeã em servidões.
ArqSC – São 60 anos de arquitetura em Florianópolis, qual a tua visão sobre a arquitetura contemporânea, como ela responde a essas questões emergentes?
São 60 anos de vida em Florianópolis, não só de arquitetura. Para ser bem sincero, eu acho que responde de
acordo com o interesse do dono da obra e as condições que o poder público permite. O arquiteto faz a sua
obra seguindo as leis, códigos, tem que seguir essas condicionantes, mas dentro disso tem que procurar brechas
para que o empreendimento tenha um retorno para a sociedade de uma forma não tão evidente, em um recuo
mais generoso, na própria visualização da obra, expressão plástica boa, harmoniosa, gabaritos altos com
recuos condizentes, volume bem solucionado. Vejo muito a justificativa de que o proprietário exigiu que
fosse feito daquele jeito, ao invés do arquiteto propor outra solução para contornar e que traga uma resposta à
sociedade e ao empreendedor. O arquiteto tem ferramentas para isso, e tem que ser inventivo também, não só na prancheta. Precisa justificar que o que ele está propondo é o melhor para o empreendedor e para a sociedade, inclusive uma obra aceita pela comunidade reflete na visão que ela tem do próprio empresário, que geralmente é visto como um ganancioso que só quer ganhar dinheiro.
Guilherme – Mies van der Roeh diz que “Deus está nos detalhes”, esse detalhamento e refino de desenhar
o corrimão do Ceisa Center, o que significa, qual a importância do desenho? Onde a arquitetura quer
chegar no ser humano, na sociedade, nas possibilidades de tocar a sensibilidade?
É uma forma de você requintar um pouco a sua obra quando tem um detalhe bem resolvido e ser executado na obra, porque é muito diferente ter o detalhe na sua prancheta e conseguir tal qual você desenhou. Uma das últimas obras que fiz eu detalhei o auditório, e lá pelas tantas o órgão público fez outra concorrência e colocou outra equipe para a especificação do mobiliário. A equipe que fez o acabamento do auditório não
entendeu o que eu tinha feito, e aí simplesmente mutilou. É muito problemático. Aquele detalhe era imprescindível! A obra não acaba no projeto aprovado pela prefeitura, acaba na inauguração e muitas vezes vai além. A falta de sensibilidade acontece muito vezes no órgão público porque mudam os diretores e cada qual tem uma visão.
ArqSC – Como é ver a sua obra alterada?
Acho lamentável principalmente quando o autor nem é consultado. Acontece com todos, aqui temos
o exemplo do LIC que foi todo deturpado (o Lagoa Iate Clube foi projeto por Oscar Niemeyer). Acho que
falta conscientização e respeito do poder público e proprietários em relação à arquitetura. Faz parte da
cultura do brasileiro não ter esses escrúpulos. O comum é o conceito de que se a pessoa é a dona, pagou,
pode usar de qualquer jeito. Não deveria ser por aí, as alterações não precisariam ser feitas pelo arquiteto autor do projeto, mas poderiam pelo menos ter a anuência dele. Acho um respeito pelo autor. Hoje é generalizado, os
próprios colegas interferem no seu trabalho, o que considero uma falta de ética e de moral.
Guilherme – A falta de cultura arquitetônica talvez, do que representa, ninguém pinta sobre um quadro…
É isso mesmo, no máximo vão restaurar. Claro que a gente tem que saber que as necessidades mudam, embora a
gente tenha a ilusão de que a arquitetura é uma obra que tenha que durar muitos e muitos anos. Mas ela não
dura, também sofre da lei da vida, da impermanência das coisas. Ela também é impermanente.
ArqSC – Qual foi a sua última obra?
Atualmente tenho só um cliente no escritório, estou transferindo tudo para a Flávia (Flávia de Liz Arcari, filha
do arquiteto), mas dou assistência, faço reuniões. Estou trabalhando para a Intelbras, conheci a empresa quando
era um galpão em São José. Tem um prédio que gosto que é a associação dos funcionários da Intelbras. Uma das
últimas obras que fiz foi o Cremesc, fiquei 85% contente com o resultado, houve muita interferência, nem sempre conseguimos fazer tudo que gostaríamos e muitas vezes você também tem seus limites e não consegue fazer uma coisa tão boa como gostaria.
Guilherme – E qual o projeto que você não fez e ainda desejaria fazer?
Fiz igreja, estádio de futebol, prédio comercial, residencial, residência unifamiliar, eu tenho saudosismo de casas
que fiz e foram demolidas para dar lugar a prédios, eu tinha um certo ciúmes dessas casas, considerava como
se fossem minhas, mas a impermanência da vida está em tudo. Acho que qualquer solicitação em relação a
arquitetura é interessante, sempre tem um detalhe que você pode inovar. Mas estou numa fase da vida tranquila.
A partir deste ano me considero aposentado e passei a me dedicar a mim mesmo. Acho que chega né!