Imagine o seguinte cenário: os desencantos diante do tempo, os horrores da violência, das elevadas frustrações e perdas constantes, constatação de que algumas vidas valem mais do que um oceano delas, o corpo humano tornado coisa, a morte banalizada e muito próxima. Isto lhe parece familiar, caro leitor que vive no Brasil eivado de notícias de que chegamos a estarrecedora contagem de quinhentos mil mortos por Covid- 19? Ocorre que estamos falando das experiências da I guerra mundial (1914-1918), quando morreram cerca de 17 milhões de pessoas no continente europeu e da gripe espanhola nos dois anos que se seguiram (1918-1920), quando morreram mais de 100 milhões de pessoas espalhadas em diferentes países.
Para quem sobreviveu a estes desastres cujas cifras são tão difíceis de estimar, poderíamos perguntar: como é possível ressignificar o sentido da vida depois disso? Certamente, estamos diante de respostas muito difíceis, talvez impossíveis. Todavia, a vida seguiu e um dos caminhos que podemos reconhecer como possibilidades encontradas para seguir adiante depois destes episódios tão devastadores foi a arte. O construtivismo, o biomorfismo, o dadaísmo guardam pequenos pedaços destas resposta.
Consideraremos aqui o caso do surrealismo. A ele se vinculam textos como A interpretação dos sonhos, de Freud, e os manifestos surrealistas, escritos por André Breton. O que eles têm em comum? O fato de levarem em consideração o peso do imponderável e a desconfiança da lógica utilitária e da razão. A dimensão do inconsciente e do indômito, a potência do desmesurado e da linguagem onírica tornam-se objeto de investigações poéticas no cinema, na literatura, na escultura, na pintura e assim por diante.
Inconsciente como reservatório de desejos
Dizendo de outro modo: o movimento surrealista se estrutura na primeira metade do século XX ao redor da figura de André Breton. Estudioso das teorias da psicanálise de Freud, Breton se interessa pela ideia do inconsciente como reservatório de desejos e experiências não processadas reprimido pela mente consciente e racional. Em 1918, Breton serve em um hospital psiquiátrico que atende soldados vítimas de traumas psíquicos. Durante esse período, percebe que o inconsciente, uma vez liberto da prisão da razão, pode construir realidades tão intensas como a realidade factual.
Ao final da Primeira Guerra Mundial, ele passa então a conduzir experiências que visam explorar e liberar esse fluxo inconsciente. Para isso utiliza várias estratégias como o transe hipnótico, o registro e a interpretação dos sonhos e a escrita automática, que consiste em escrever, eventualmente de maneira colaborativa, tudo aquilo que vem à mente sem nenhuma coerção moral, ética ou racional, para que depois o texto produzido seja reinterpretado em face à realidade. A partir das experiências com a escrita automática, André Breton publica em 1920, junto com Philippe Soupault, aquela que é considerada a primeira obra literária do surrealismo Os Campos Magnéticos.
Manifesto Surrealista
Em 1924 Breton escreve o primeiro Manifesto Surrealista que estrutura efetivamente o surrealismo como um movimento artístico e o define como: “Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.”
Surrealismo e fotografia
Observemos agora o caso da relação entre o surrealismo e a fotografia. Lendo a definição de Breton, pode ser difícil entender como a fotografia poderia estar tão intimamente relacionada ao Surrealismo, uma vez que enquanto o Surrealismo busca atingir aquilo que é mais profundo no indivíduo, a fotografia era, naquele momento, considerada uma imagem mecânica, diretamente ligada à realidade.
Contudo, o interesse dos surrealistas pela fotografia está exatamente no fato de que, por ser considerada uma imagem objetiva e automática, feita por uma máquina, a fotografia não seria mediada pela consciência do artista, sendo o fotógrafo apenas o operador do aparelho. É possível pensar na fotografia como o resultado de um lapso (de visão ou de consciência) pois no exato momento do clique, o fotógrafo se encontra completamente às cegas, já que nessa fração de segundo, enquanto a foto está sendo feita, o espelho do aparelho fotográfico é rebatido para permitir que a luz sensibilize a película.

Além disso, na medida em que as práticas surrealistas buscam a liberação do inconsciente, abrem espaço para manifestações do acaso, e aí está um outro ponto de tangência entre Surrealismo e fotografia. Exemplo disto são os instantâneos, que encontra no início do século as condições materiais para seu desenvolvimento técnico. Nesse tipo de fotografia a cena se dá ao fotógrafo que tem a função de congelá-la, sem a certeza da imagem resultante, estando sujeita aos imprevistos impostos pelo acaso. Soma-se a isso ao fato de que a fotografia é sempre uma representação, assim como a realidade também pode ser entendida como uma representação do inconsciente. Diante do exposto, é possível perceber por que a fotografia foi tão amplamente utilizada pelos surrealistas. O próprio André Breton apresenta uma fotomontagem para ilustrar o verbete André Breton no Dicionário Abreviado do Surrealismo, além de usar fotos em seus livros Nadja (1928), Vasos Comunicantes (1932) e O Amor Louco (1937).
Entre os artistas a serem reivindicados a fazer parte das primeiras fileiras do Surrealismo por Breton estava o fotógrafo americano Man Ray, que chegara em Paris em 1921, sendo apresentado aos artistas surrealistas por Duchamp, com quem havia participado da criação do grupo dadaísta de Nova Iorque. Man Ray fez muitas experimentações fotográficas como múltiplas exposições, superposições de negativos, alterações dos processos de revelação e ampliação fotográfica e criou algumas técnicas que ficaram definitivamente ligadas à estética surrealista, como a rayografia e a solarização.
A rayografia consiste em posicionar objetos sobre o papel sensível e acender a luz do laboratório. Essa técnica enfatiza o caráter indicial da fotografia, enquanto corrompe seu aspecto incônico, na medida em que muitas vezes a imagem resultante não possui um paralelo no mundo real, já que não é possível identificar claramente os objetos utilizados na sua composição. Man Ray tem o mérito de deslocar a imagem fotográfica do lugar de representação e introduzi-la em um campo basicamente reservado à pintura, e esse tensionamento daquilo que a fotografia pode ser como imagem do mundo real é um aspecto muito importante de sua obra.


Fonte: gerryhughesma.wordpress.com
A solarização consiste em acender a luz do laboratório durante o processamento do negativo. Essa exposição causa a inversão dos valores tonais na imagem, ou seja, as áreas escuras se tornam claras enquanto as áreas claras ficam escuras. Aqui, assim como em certa medida na rayografia, o acaso se faz presente, uma vez que não é possível prever plenamente o resultado da técnica.
Raoul Ubac é outro artista que desenvolve obras a partir da subversão radical das técnicas de processamento fotográfico. À ele é creditada a fossilização, técnica que consiste em recortar, montar, refotografar e solarizar inúmeras vezes a mesma imagem. O resultado é uma fotografia que perde seus contornos de realidade e mais parece um relevo. Nesta técnica o artista introduz na bidimensionalidade da imagem fotográfica um elemento estranho à ela, uma terceira dimensão.

Ubac também realizou experimentos com a técnica de brulage, que consiste em aquecer o negativo até que a emulsão se dissolva, resultando em uma imagem absolutamente imprevisível e onírica, quase fantasmagórica.

Brassaï é outro artista associado ao movimento surrealista. Segundo Rosalind Krauss (REFERENCIA) o mérito surrealista de Brassaï é abrir a representação fotográfica à outras representações. Segundo Krauss[1], a fotografia, ainda que seja uma imagem realista, é uma representação que comporta outras representações. Na fotografia abaixo, Brassaï conjuga signos de aproximação (a expressão e a pose da mulher) e de afastamento (os espelhos que separam o casal) em uma mesma cena.

Henri Cartier-Bresson, reconhecido como um dos grandes fotógrafos do século XX, e que ajudou a definir os rumos do fotojornalismo e da fotografia documental no pós-guerra, teve seus anos formativos ligados ao surrealismo. Em um texto em que presta homenagem à Breton, a quem conheceu na sua juventude, escreve “é ao surrealismo que devo obediência, pois me ensinou a deixar a objetiva fotográfica explorar os entulhos do inconsciente e do acaso.”[2]

O Surrealismo chamou para si alguns fotógrafos que não se consideravam surrealistas. É o caso de Eugène Atget, que fotografou sistematicamente a cidade Paris para vender suas fotos como documentos para artistas. Atget direcionou seu olhar para a Paris que estava desaparecendo em consequência de modernização da cidade na transição do século XIX para o século XX. Utilizava uma câmera de grande formato, já ultrapassada para a época, que exigia um grande tempo de exposição. Sendo assim, preferia fotografar nas primeiras horas da manhã, quando a cidade ainda estava vazia. Por esse motivo raramente vê-se pessoas em suas fotos e quando elas estão presentes, aparecem como vultos ou rastros, como fantasmas em um sonho.

Um número muito maior de artistas associados ao surrealismo utilizou a fotografia em suas obras. Essa foi apenas uma pequena seleção que tentou mostrar como a estética surrealista foi variada e ampla, e como a fotografia serviu aos objetivos estabelecidos por André Breton no manifesto de 1924. Como um movimento organizado, o Surrealismo começou a se dissolver a partir da Segunda Grande Guerra, contudo sua importância dentre os movimentos de vanguarda foi tão grande, que sua influência alcançou muitos artistas de gerações posteriores, e pode ser percebida ainda hoje na obra de fotógrafos contemporâneos. Mas isso já é assunto para uma outra conversa!
[1] KRAUSS, Rosalind. Os noctâmbulos. In:_____. O fotográfico. São Paulo: Gustavo Gili, 2014.
[2] CARTIER-BRESSON, Henri. André Breton. In:____. O imaginário segundo a natureza. São Paulo: Gustavo Gili, 2015.
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Parceria
O texto de Mário Oliveira é um desdobramento da parceria do Portal com os pesquisadores do projeto Acervos e Arquivos Artísticos em Santa Catarina, Implicações e Conexões, da disciplina Teoria e História da Arte, do Ceart/UDESC, coordenada pela professora doutora Rosângela Cherem. A primeira etapa iniciou com a participação no colóquio “Vanguardas do Entreguerras e Desdobramentos Contemporâneos”, conversas abertas sobre arte, que teve o apoio também da Helena Fretta Galeria de Arte e da Livraria Humana Sebo. Acreditamos na democratização da informação e queremos contribuir, de alguma maneira, para encurtar a distância entre o potente conteúdo da academia e a comunidade do entorno, criando pontes fundamentais à formação crítica.
O texto de Mário integra a segunda etapa dessa parceria, que se propõe a promover uma ponte entre a universidade e o público interessado em arte.
Mário Oliveira é graduado em Fotografia pela Univali, mestre e doutorando em Teoria de História da Arte na Udesc. Atua como fotógrafo e é professor do curso de graduação Tecnologia em Fotografia da Univali.