Este é o segundo artigo da arquiteta Maria Pilar Arantes, que atualmente mora na Espanha onde cursa História da Arte. Pilar é colaboradora do portal ArqSC para o qual escreve apontando seu olhar para o país. Pilar é pós-graduada em Arquitetura e História das Cidades pela Universidade Federal de Santa Catarina e fundadora e diretora do Centro de Artes e Design, um centro de pesquisa, formação e difusão do design de interiores e das artes, em cujos cursos já se formaram, desde 1999, mais de 5 mil pessoas. É escritora e registra suas viagens por meio de fotografias.
Acesse aqui o primeiro artigo Olhar sobre Espanha – arquitetura e arte na península ibérica
AS ORIGENS – pré-história, povos íberos, romanos e visigodos
A partir deste segundo artigo desejo iniciar uma viagem no tempo da arquitetura e da arte espanhola, para a qual seleciono uma amostra significativa de cada fase do desenvolvimento artístico do país. inicio por uma época muito remota, a das cavernas. Passarei depois pela chegada de povos do Oriente próximo em tempos anteriores a Era Cristã, até a ocupação dos romanos e depois dos visigodos já em nossa Era. Em seguida, o fio da história nos contará sobre há a invasão do Islam em 711 d.C., que deixa marcas profundas na cultura e arquitetura espanhola para sempre. Sob a bandeira do cristianismo, a partir do século VIII a conquista dos territórios ocupados pelos muçulmanos, a religião leva a profundas transformações políticas com efeito direto sobre a arquitetura e as artes, e então florescem períodos históricos mais conhecidos e difundidos nos estudos de história das artes, iniciando pela arte românica e arte bizantina, e assim por diante.
Será uma faixa de tempo larga, mas que dará uma visão diacrônica importante e esclarecedora sobre a evolução do povo e da arte espanhola, para que nas postagens vindouras possamos continuar avançando no tempo até chegar na Espanha do século XXI. Muita arquitetura e arte do espetacular ao comovedor passará por estas postagens. É um privilégio ter tanta história para contar, como a tem o povo espanhol.
Arte pré-histórica na Península Ibérica – o marco zero
A constatação da presença do homem na região que hoje conhecemos como Espanha remonta a mais de 1 milhão de anos atrás. Os registros da arte pré-histórica espanhola são riquíssimos. Desde os primeiros espécimes do gênero Homo até a chegada do Homo sapiens, as cavernas, pedras e demais sítios arqueológicos espalhados principalmente pela costa norte (Cantábria) e costa sul (Levante – faixa mediterrânea) espanholas estão entre as manifestações mais importantes do mundo.
A arte rupestre é formada por todas as representações gráficas intencionais realizadas sobre suportes rochosos fixos. Ela se diferencia por diferentes cenários ou suportes sobre os quais se manifestam:
– Interior de covas onde a luz solar não penetra, podendo encontrar-se pinturas nas paredes, teto e, em menor quantidade, no chão.
– Abrigos rochosos ou áreas externas das cavidades, onde a luz ilumina as imagens e o Sol pode alcançar em alguns momentos do dia. São também conhecidos como “santuários externos”.
– Superfícies rochosas de afloramentos litológicos ao ar livre, onde não há proteção para as pinturas ou gravados, uma vez que estão feitos sobre estas pedras de grande porte e monolíticas.
Além da arte rupestre, há grande riqueza de achados arqueológicos de arte mobiliar pré-histórica (pequenas esculturas, adornos, utensílios domésticos e armas de caça).
A cova mais famosa está na Cantábria (costa norte da Espanha), descoberta em 1868 por um morador da região: a cova de Altamira, maravilhoso exemplar da arte rupestre do período do Paleolítico superior (são várias épocas que estão ali representadas pelos desenhos e objetos deixados, sendo a mais antiga datada de 36.000 anos, e a mais recente 13.000 anos). São 270 metros de cova onde se encontram os desenhos e gravados. A “grande sala”, parte da cova que alberga as pinturas mais impressionantes recebeu o apelido de “Capela Sistina da Arte Rupestre”.
Os povos íberos – habitantes fora das cavernas, a organização social e avanços do conhecimento
Depois que o homem deixou de viver em covas e passou a construir casas e a criar rituais de enterramento mais elaborados, toda a estrutura do seu entorno também se adaptou ao novo estilo, passando a criar locais de armazenamento de água e alimentos, bem como a organizar o espaço da casa para as funções domésticas. O gérmem das cidades.
A denominação “Cultura Ibérica” faz referência às características culturais em comum de povos política e culturalmente diferentes que ocuparam a área mediterrânea e o sul da península Ibérica desde mediados do século VI a.C. até o século I a.C.. Ou seja, um período no tempo depois de superada a época da vida em cavernas, de populações que haviam assimilado hábitos e parte da cultura de outros povos centro-europeus, além de também receber influência de fenícios e cartagineses (por volta do século VIII a.C.) e gregos (por volta do século VII a.C). As artes, principalmente a funerária e a religiosa, demonstram estas influências e são as mais representativas e as que permaneceram devido aos materiais utilizados – pedra e barro. Os costumes dos íberos se diferenciavam dos povos do interior da península, pois estavam mais sujeitos aos intercâmbios culturais com o restante do Mediterrâneo.
Os povos íberos e outros povos proto-históricos, se agrupavam em pequenos núcleos. Suas casas geralmente eram de pedra retiradas do próprio local, aproveitando o solo rochoso para a base. Cavavam a rocha para colocação da primeira fiada de pedras que firmaria a construção. Também cavavam buracos de diferentes diâmetros (a partir de 50 cm) para armazenagem de água e de secos. Tinha sistema de escoamento e direcionamento de águas pluviais. O sítio arqueológico de El Catllar, na Catalunha, conserva restos de uma parte da estrutura de casas de um povoado que esteve presente entre os séculos VIII e V a. C., correspondente à época final da Idade do Bronze, início da Idade do Ferro.
Figura 3: à esquerda, restos de construção de povoado íbero, em El Catllar.
Os romanos e os visigodos – transformação e desenvolvimento cultural da península
Entre os séculos III e I a.C. Roma e Cartago eram as duas grandes potências do Mediterrâneo Ocidental. Após combater Cartago pela conquista da costa sul da península, os romanos obtém êxito e ampliam seu império de forma impressionante, deixando marcas no território espanhol que impressionam até hoje. Apesar de muitos monumentos terem sido arrasados após muitas guerras (várias delas já na época moderna), traçados urbanos, circos, anfiteatros, vilas, mausoléus, esculturas, mosaicos, pinturas e muitas obras de engenharia como pontes e aquedutos permanecem visitáveis e se sustentam imponentes em várias regiões da Espanha atual.
Os romanos tinham sua organização militar espetacular, e isso lhes garantiu durante séculos a expansão do Império. Aproveitavam elementos naturais para defensa, como este paredão rochoso que serviu de muralha de defensa para a antiga Tárraco, atual Tarragona, na Catalunha, sobre a qual se pode debruçar atualmente para apreciar a linda vista do Mar Mediterrâneo.
Os romanos ampliaram seu império pela península e pelo mediterrâneo com grande impulso até o final do século IV d.C., quando então chegaram os visigodos – originários dos godos, grupo de tribos germânicas do norte de Europa e que já haviam conquistado várias regiões ao largo do Mar Mediterrâneo. Romanos e visigodos conviveram de forma não totalmente pacífica, mas com boas políticas, ao ponto de que os visigodos se romanizaram e inclusive se cristianizaram. Os visigodos foram considerados uma das monarquias mais importantes da Alta Idade Média europeia (princípios da Idade Média). Um dos legados arquitetônicos impactantes que deixaram os visigodos foi o arco de ferradura, posteriormente muito usado na arte islâmica. A cidade de Toledo foi um importante reino visigodo em Espanha, e se manteve firme até o ano de 711 com a invasão muçulmana que alterou drasticamente todo cenário político e cultural da Península Ibérica.
Desde o ano 313 d.C. os cristãos gozavam de liberdade de culto, e com a conversão de imperadores ao cristianismo, o desenvolvimento da arquitetura religiosa cristã foi gigantesco na Espanha, fazendo com que esta influência perdurasse até hoje na cultura espanhola, o que se percebe nas festas que inundam o calendário deste povo animado.
Nesta postagem paramos com o visigodos. O próximo artigo será um mergulho na arquitetura românica, estilo que goza de grande representatividade na Espanha, com monumentos arquitetônicos impressionantes que unem técnica e esforço com a espiritualidade máxima. A contínua guerra religiosa a partir do século V vai gerar uma explosão de construções de culto importantíssimas e riquíssimas.
Fontes das imagens:
Figura 1: colagem de figuras a partir de: http://www.elmundo.es/ciencia/2014/02/28/530f9ab522601df85e8b457b.html
Figura 2: colagem de figuras a partir de: http://www.man.es/man/exposicion/recorridos-tematicos/arqueologia-muerte.html ; https://www.turismocastillayleon.com/es/arte-cultura-patrimonio/yacimientos-arqueologicos/toros-guisando.
Figuras 3 a 6 : fotos de Maria Pilar Arantes
Referências:
MENÉNDEZ, M., Más, M. y Mingo, A. El Arte en la Prehistoria. Madrid: UNED. 2009.
LADERO QUESADA, M.F. y LÓPEZ PITA, P.. Los siglos medievales del Occidente europeo. Madrid: Ed. Ramón Areces, 2016.
Museu de Altamira: http://www.mecd.gob.es/mnaltamira/cueva-altamira/arte.html
RTVE: http://www.rtve.es/television/20140607/pinturas-altamira-mitad-invisible/480284.shtml