Este é o terceiro artigo da arquiteta Maria Pilar Arantes, que atualmente mora na Espanha onde cursa História da Arte. Pilar é colaboradora do portal ArqSC para o qual escreve apontando seu olhar para o país. Pilar é pós-graduada em Arquitetura e História das Cidades pela Universidade Federal de Santa Catarina e fundadora e diretora do Centro de Artes e Design, um centro de pesquisa, formação e difusão do design de interiores e das artes, em cujos cursos já se formaram, desde 1999, mais de 5 mil pessoas. É escritora e registra suas viagens por meio de fotografias.
Acesse aqui o primeiro artigo Olhar sobre Espanha – arquitetura e arte na península ibérica e o segundo Uma viagem no tempo da arquitetura e da arte espanhola
Um dos estilos mais representativos da Espanha medieval é o românico. Encontramos igrejas, monastérios e castelos românicos tanto no pequenino pueblo de 200 habitantes, quanto em cidades enormes como Madrid e Barcelona.
O românico surge em meados do século XI e se estende até próximo do XIII. A arquitetura, a escultura e a pintura monumental se uniram para compor o edifício religioso, experimentando um florescimento de visão de conjunto nunca visto antes no mundo cristão. Em torno do ano 1100 ocorre a maturidade do estilo na Espanha, quando existe uma linguagem plástica comum em todos os reinos cristãos ocidentais.
O século XI então, representa um ponto de inflexão na história ocidental devido ao esplendor cultural e econômico que se inicia, e impulsiona a construção de edifícios com diretrizes estéticas semelhantes e que vão dar um impulso ao cristianismo como jamais visto, iniciando uma grande fase de peregrinações religiosas que também serão responsáveis por grande parte da configuração arquitetônica das igrejas.
Na arquitetura, o românico se impõe com uma estética que impressiona pela robustez, pela força, pela qualidade artística dos relevos em suas fachadas repletas de símbolos da história do cristianismo. Recebe por isso dois apelidos significativos: “as fortalezas de Deus” – indicando que dentro da igreja (como instituição) você está protegido do mal – e para isso todo um arsenal de símbolos como as gárgulas que se projetam da fachada lembram dos perigos do pecado; os evangelistas e Jesus Cristo representados nos portais das igrejas lembram a proteção de Deus a quem tem fidelidade e leva uma vida imitando a Cristo e os mártires; e as impressionantes paredes, teto e piso construídos em pedras cuidadosamente talhadas e encaixadas, formando grossos volumes que te fazem sentir pequeno frente à grandiosidade de Deus, e suscetível às tentações do pecado se não estiver devidamente blindado pela igreja.
Outro apelido dado às igrejas românicas é “bíblias de pedra”, devido à riqueza de informações na forma de entalhe de pedra dispostos nos portais, nos capitéis das colunas, nas pinturas murais, nos retábulos das igrejas e nas esculturas, que catequizam o povo iletrado e ignorante da Idade Média. Passagens bíblicas do antigo e novo testamentos, o exemplo de vida e fé dos evangelistas, e por fim a escatologia apresentando o Cristo vitorioso sobre a morte e o mal (nesta época ainda não se representava o Cristo padecendo dores).
Todos dizem que Deus não pode ser contido dentro de edifícios, com o que eu particularmente concordo. Mas é inegável que a habilidade humana para as artes conseguiu através da arquitetura, da pintura e da escultura, emocionar as pessoas a tal ponto de transcendência que é impossível sair de uma igreja românica sem ter feito ao menos uma singela oração. Quando você tem a oportunidade de visitar uma igreja românica e sentar-se durante alguns momentos para contemplar o impressionante silêncio do qual se desfruta em seu interior, somado à penumbra que é quebrada apenas pelos pequenos fachos de luz que entram pelas pequenas aberturas, será induzido a meditar por alguns minutos pelo menos. Entrará num estado de calma interior, de quietude da mente, que te levará a elevar alguns pensamentos sobre o que há além deste mundo barulhento e materialista que vivemos.
Mesmo quando se sabe que uma das motivações para as construções das imponentes igrejas românicas tenha sido mostrar o poder eclesiástico e real, parece que Deus permitiu já desde os primórdios que a arquitetura fosse usada para levar o homem a transcender a uma dimensão espiritual muito especial. Nunca se sai de uma igreja românica com a mesma condição emocional com que entrou. E isso sem citar ainda os monastérios! Pois a maioria das igrejas românicas tiveram em sua origem a implantação de um monastério que na sequência incorporava a igreja principal além de outras capelas adjuntas.
Os impressionantes campanários românicos, com seus sinos de ferro fundido pendendo imponentes do alto e ainda ativos, são um deleite para os olhos e ouvidos quando se tem a sorte ou a paciência de esperar os quartos de hora para ouvi-los tocar.
As portadas ricamente ornamentadas com figuras da história do cristianismo, podem te fazer ficar com dor no pescoço de tanto que se tem para olhar e descobrir. Para quem conhece um pouco da Bíblia, um desfrute é descobrir a que parte se refere e como foi interpretado pelo arquiteto e pelo escultor cada passagem.
A pintura e a escultura não tinham a função de chamar a atenção pelo realismo nem pela estética, mas sim pela sua mensagem.
Praticamente todas as igrejas românicas possuíam decoração figurada. Tudo isso criava o ambiente específico da fé. As paredes pintadas ou com esculturas em relevo são um eco plástico da liturgia e envolvem o crente como uma couraça protetora e santificadora.
Os monastérios românicos são realmente um convite para o recolhimento à vida religiosa. Passear pelo claustro, visitar as salas capitulares onde se decidiam sobre aspectos da vida em comunidade e sobre outros assuntos da ordem religiosa, adentrar nas pequenas capelas internas e imaginar monges ali ajoelhados várias vezes ao dia, e principalmente conhecer as pequeninas habitações onde eles dormiam, com toda singeleza possível e o mínimo do básico para se viver, te faz ver com olhos de surpresa, admiração e respeito a escolha de vida reclusa e materialmente limitada que tantos milhares de homens e mulheres elegeram para viver a sua fé.
Nas palavras de Ricardo de San Victor (1110-1173), teólogo e filósofo escocês, “nunca se poderia elevar a razão para contemplar o invisível se a imaginação não se fizesse presente e se mostrasse as formas das coisas visíveis”.
Fontes das imagens:
Todas as fotos : fotos de Maria Pilar Arantes
Referências:
ARIAS, Inés Monteiro. Historia del arte de la Alta y la Plena Edad Media. Madrid: UNED. 2009.
LADERO QUESADA, M.F. y LÓPEZ PITA, P.. Los siglos medievales del Occidente europeo. Madrid: Ed. Ramón Areces, 2016.