Há quase um ano embarcamos numa outra realidade, cujo cenário desenhado pela pandemia do Covid-19 instaurou medos e produziu dor para além do corpo individual. Nosso corpo coletivo e social afundou num contexto viral. Como dar conta dessa maré? Navegando em um lugar ainda desconhecido, a curadora e artista Kamilla Nunes apresenta “Quando tudo isso acabar”, uma série que surgiu como forma de lidar com esse dramático momento. A partir de 11 de março, ela realiza a primeira individual na Helena Fretta Galeria de Arte com lançamento do catálogo em versão digital gratuito – o impresso estará à venda na Galeria.
“Quando tudo isso acabar” reúne a produção diária e intensa do período de quarentena, são 288 desenhos, e coloca Kamilla a experienciar o lugar de artista – sua primeira individual foi em 2019, no Memorial Meyer Filho. A seguir, uma seleção de trechos dos textos do catálogo da artista.
Essa série de pinturas surgiu, ainda, a partir de um poema de Ana Cristina Cesar, cujo verso dá título à obra. Lado a lado, elas formam uma espécie de gráfico, de tábua da maré. O mar, aqui representado com uma massa de tinta acinzentada, pesa como concreto na paisagem, de modo a deixar dúvida sobre o que ancora, de fato, essa casa: se a âncora, que aparece sempre suspensa, ou se o mar, aqui intranspassável e instransponível”. Kamilla Nunes
Nos instantâneos de ”Quando tudo isso acabar”, Kamilla Nunes, tenta fixar – em tinta e água – o acúmulo destes dias desassossegados, opera como testemunha de uma época de indefinições e suspensões, questionando e apontando o contínuo confronto entre privado e público, revelando fragilidades e rupturas sociais. A comunidade se dissipou a ponto de perder o comum, o laço, e tudo passou a ser espera e escape: Aline Natureza.
Mais de uma década depois de estudar artistas e realizar várias incursões como curadora, Kamilla Nunes se permitiu experienciar o lugar de artista. O olhar acurado para a produção alheia trouxe à tona a urgência de trabalhar suas próprias inquietações. A curadora abriu espaço para a artista, entendendo que ambas são facetas que se desdobram, intensificando uma atitude criadora crítica, agora não mais contida. Trata-se, pois, de não somente reconhecer o gesto da arte, mas se reinventar a partir dele para inaugurar outros possíveis. Sandra Nunes.
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assim mesmo, empilhado, como os corpos que vemos todos os dias nos telejornais e nas redes sociais. Sobrepor uma letra à outra foi uma maneira de não nos deixar esquecer que o AR não é apenas uma mistura de gases que compõem a atmosfera, um desenho sobre papel ou um trabalho de arte, AR é falta, é agonia, é luta. AR foi o que faltou a milhões de pessoas assoladas pela pandemia. O mesmo AR que é essencial à vida, e que só notamos quando nos falta, talvez tenha sido, contraditoriamente, o maior motivo de desespero e medo dos últimos tempos. Kamilla Nunes.
As redes de diálogo, referência e apropriação que aparecem na grande maioria dos trabalhos de Kamilla Nunes revelam, por um lado, seu vasto conhecimento de arte latino-americana contemporânea e, por outro lado, sua habilidade de pescar atravessamentos com precisão e potência, adquirida por meio de uma longa experiência como artista-curadora. Débora Pazetto.
Na seção de meteorologia do Jornal do Brasil, em 1968, dia seguinte à decretação do AI-5,foi publicada a sequinte nota: “Previsão do tempo: Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília.Mín.:5º, nas Laranjeiras”. Nesta pequena pintura, ajustada acima da altura média dos olhos do espectador, essa nota se repete com a ausência de lugar, e de temporalidade. Um texto que serviu pra driblar a censura no ano mais duro da ditadura militar, retorna acentuada em 2021, num contexto de pandemia, de ódio, de fakenews, de genocídio e de desmonte do país. Kamilla Nunes.
Como fazer arte quando se assiste diariamente um genocídio [que segue tendo cor, gênero e classe]? “Todas as razões para fazer uma revolução estão aí. Não falta nenhuma” – todo dia um desastre pra acumular – “de nada somos poupados, nem mesmo de estar informados sobre isso” [Comitê Invisível]. Quando tudo isso acabar se oferece como testemunho: covas abertas, caixões de papelão, neofascismo, fake news, florestas incendiadas, falta de ar, falta de sol, falta de esperança. E os canalhas de sempre. Débora Pazetto.
“Que é, pois, o tempo?” Intuir a temporalidade da existência – problema metafísico primário de Santo Agostinho a Arnaldo Antunes. Contra o tempo cronológico da sucessão de minutos, o tempo existencial é REC OME ÇAR, é AGORA, é QUANDO tudo isso acabar, é HOJE ficamos por aqui, é HAY QUE SEGUIR soñando. Quando, hoje, agora, hay que são lastros poéticos de um tempo no qual os dias têm escorrido pelas mãos ou vazado dos calendários. Débora Pazetto.
Dois corpos, um abraço. Imagens que sintetizam muitos dos sentimentos que vivemos durante o período de confinamento social. Se por um lado o abraço guarda a memória do contato, do afeto, do desejo, do encontro, por outro passou a ser também o espaço do contágio, do medo e, por isso, do distanciamento. Quantos abraços deixamos de dar todos os dias? Kamilla Nunes.
Kamilla Nunes – Artista, curadora independente, crítica de arte e professora, atualmente doutoranda no Programa de Pós-Graduação do Ceart/Udesc. Foi gestora do Espaço Embarcação, em Florianópolis [2015 a 2018], curadora do Espaço Cultural O Sítio [2015] e diretora do Instituto Meyer Filho [2010 a 2014]. Integrou o grupo de curadoria de Frestas Trienal de Artes [SESC, 2014, Sorocaba] e idealizou a Rede Artéria em parceria com o artista Bruno Vilela [arteria.art.br]. É curadora do programa de exposições do Memorial Meyer Filho desde 2008 e autora do livro “Espaços autônomos de arte contemporânea”, lançado em 2013 através da Bolsa Funarte de estímulo à produção crítica. Atualmente pesquisa e ministra aulas sobre Arte Brasileira Contemporânea e está desenvolvendo um processo de criação que fricciona campos do conhecimento, como a psicanálise e o materialismo histórico, por exemplo. Interessa perceber como os sistemas de linguagens se revelam, quais relações existem, hoje, entre o indivíduo e o coletivo, entre o pessoal e o político.
Serviço
O que? Exposição individual “Quando tudo isso acabar” de Kamilla Nunes
Quando? de 11 de março a 10 de abril |
Horário? seg a sex – 9h às 18h30 | sáb – 9h às 13h
Onde? Helena Fretta Galeria de Arte | Rua Presidente Coutinho, 532. Centro, Florianópolis, SC.
Contato? (48) 98408-2345 / www.helenafretta.com.br
Fonte: catálogo e assessoria de imprensa.