Há sempre diversas razões para se trazer à discussão as obras do arquiteto teuto-brasileiro Hans Broos (1921-2011) – tendo em vista a coerência de suas propostas, a profunda adequação ao seu meio, ou a ambiência que geram -, como intenta fazer, brevemente, este artigo. Num momento em que a arquitetura deixou de ser tema de relevância cultural, e passou a objeto medido na ponta do lápis os ganhos (financeiros) possíveis, suas obras nos convocam à reflexão, por um lado, como exemplos que possuem na cidade e no urbano seu fim. Por outro, o olhar sobre sua produção também se renova, quando temos cada vez mais pesquisadores debruçados em investigar o contexto catarinense, e lançar novos nomes ao debate.
Conteúdo exclusivo publicado no Anuário ArqSC 2016.
Através de seu trabalho o arquiteto deixou marcas profundas na paisagem construída de muitas cidades catarinenses, em sua longa produção, que teve início nos anos 1950, quando chega ao Brasil, em Blumenau, e se estendeu por quase cinco décadas. Sua obra vem precisamente em um momento de crescimento econômico de muitas cidades, de procura de modernização das estruturas que se refletia na busca de uma imagem de modernidade, que competia à arquitetura instaurar e, alcançava, em última instância, boa parte do país. Também coincide com um momento de grande projeção e renome internacional da arquitetura moderna brasileira. Conciliando saberes pragmáticos, teóricos e influências de sua formação, Hans Broos tentou dialogar francamente com ela.
Dentre as muitas obras dignas de menção, que constituiriam marcos anônimos na paisagem, senão pela boa arquitetura que revelam, pretendo explorar aqui uma obra que, seguramente, pode ser considerada uma de suas maiores realizações: A Fábrica Matriz da Companhia Têxtil Hering (1968-1975), em Blumenau. Trarei algumas questões para reflexão que são pontos altos deste projeto e, de modo geral, extensíveis a toda sua obra.
O projeto
A Companhia Hering se constitui em um dos mais surpreendentes exemplos de planejamento industrial do país, através de um processo contínuo de desenvolvimento e apropriação do espaço, em que o arquiteto também toma parte da história da formação da empresa. Foi o primeiro projeto fabril de grande porte realizado por Hans Broos no país, e com ele dá início a uma parceria de mais de vinte anos de colaboração com a empresa, na função de arquiteto e consultor, que lhe rendeu inúmeros projetos industriais e também o renome de “arquiteto industrial”, uma experiência que tivera seus passos iniciais em sua curta carreira alemã.
A premissa fundamental do projeto refere-se ao desejo da empresa em permanecer no sítio original, o vale do Bom Retiro, preservando a história e a arquitetura da época de fundação da empresa. Para a ampliação de seu núcleo foi adotado, então, o sistema de unidades satélites; ao todo, seis, localizadas em Blumenau e proximidades, responsáveis pela costura das peças dentro do processo de produção, e que também ficaram a cargo do arquiteto.
No projeto do complexo foi encomendada a construção de vários edifícios fabris a serem construídos junto ao vale estreito e cercado por morros, ladeando alguns edifícios remanescentes com características tradicionais da imigração alemã que datavam do final do século XIX. Estas eram apenas algumas das especificidades que envolveram o projeto que, além disso, deveria ser previsto em etapas, onde apenas alguns edifícios antigos permaneceriam no local, enquanto outros teriam apenas uma sobrevida, até que fossem substituídos pelos novos prédios.
Para os novos edifícios, Broos trouxe referências várias: a própria obra – como a Igreja de São Bonifácio em São Paulo, projeto imediatamente anterior ao da Hering e um dos primeiros quando estabelecido naquela cidade -, obras em que colaborou na Alemanha, no escritório de Egon Eiermann, além de outras deste arquiteto. O concreto foi utilizado como material predominante nos blocos, deixado aparente e utilizado como meio expressivo também, ao tirar partido das marcas impressas pelas formas de madeira. Os volumes bastante simples, em geral, lineares e características horizontalizantes, ostentam a marcação da estrutura em seu exterior, gerando uma modulação que reafirma um método projetual que tem na estrutura seu elemento definidor – mas não limitador – dos espaços. Também são externos os acessos, corredores e passarelas, por vezes, também com o uso de brise-soleil. As aberturas, sempre pontuais, bem marcadas e com formas nada casuais ou convencionais, conferem características inconfundíveis aos prédios simples. Nesse sentido, o arquiteto também tira proveito estético dos elementos técnicos, como as gárgulas, deixadas à mostra.
Arquitetura e paisagem natural
Num primeiro momento, o que é especialmente surpreendente neste projeto é a noção de conjunto que os edifícios assumem e sua integração à paisagem natural. Na Hering Matriz, obra natural e construída formam uma unidade viva, se complementam e diferenciam reciprocamente – as curvas sinuosas da paisagem e as duras linhas e a decidida presença dessa arquitetura, numa relação harmônica entre os prédios e destes com a natureza. Mesmo com seus traços geométricos, essa arquitetura se adequa ao entremeio dos morros, preenchendo os espaços vazios, se moldando a eles e dando-lhes vida, formando um tecido orgânico que se desenvolve naturalmente de acordo com as exigências funcionais do conjunto.
Broos concebe ali um local de vida, uma arquitetura que responde às demandas específicas, mas também ao existente amplo senso – materiais, cultura, o natural e o construído. O arquiteto cria um verdadeiro espaço urbano: ruas, passagens, por entre os jardins de Burle Marx, em que o valor não está concentrado em cada edifício, apesar da clara qualidade arquitetônica, mas no ambiente, no espaço “urbano” e coletivo que cria. A fábrica não se insere apenas, ela estrutura o espaço. Mais importante que as fachadas, são as relações volumétricas entre os edifícios e os espaços criados através da arquitetura, que tem na praça histórica, centro geográfico e coração do conjunto, um espaço coletivo de convivência e encontro.
O antigo e o novo
Na mesma praça histórica, o novo prédio da Costura, atual Administração, chama atenção pelas soluções que apresenta e nos convida a outras reflexões. Um exame destas proposições nos diz muito sobre o pensamento de seu autor.
Neste edifício, ladeando o antigo prédio da costura de 1890, Broos admite como fechamento uma simples empena de concreto suspensa do chão, realçada em sua ínfima espessura, que ao mesmo tempo, faz a vedação a leste, e assume uma neutralidade em favor da arquitetura antiga. Esta empena funciona como um plano sobreposto ao edifício, em cujo interior há uma espécie de segunda fachada, recuada, com aberturas de vidro que permitem iluminação e ventilação naturais em seus espaços. E através dos pequenos orifícios presentes na empena avista-se o terraço-jardim de Burle Marx localizado à frente.
Interessante notar que, para uma situação que seria apenas provisória – o prédio histórico seria substituído por outro igual ao novo edifício em uma próxima etapa das obras – o arquiteto propõe uma solução de respeito às características da obra, como escala e ritmo, para formular uma nova arquitetura, que se remeta tão somente a sua época, numa atitude de sublimar os tempos atuais, sem desvalorizar o passado. Broos pretende, assim, criar uma arquitetura contemporânea que responda de maneira adequada aos pressupostos funcionais e formais que lhe são colocados; que respeite a arquitetura antiga sem a ela subjugar-se ou procurar reproduzir, de uma maneira falsa (como só poderia ser) as formas que retratam sua essência – afinal, toda arquitetura é o retrato de uma essência que lhe deu origem; e tal essência, jamais reproduzível. Não deve ser confundida como uma atitude de negação ao passado. Ao contrário; é o respeito e o credo de que somente respostas condizentes ao seu tempo podem valorizar o passado, garantir “a continuidade da evolução, que se chama também de ‘tradição’”, como toda boa arquitetura o fez em sua respectiva época.
Não parece à toa, tendo-se em vista tal pensamento que se configurou em prática reflexiva, que um dos primeiros trabalhos que viria a realizar no Brasil – por conta da revalidação do diploma, pela então Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro – seria um levantamento das construções dos colonizadores açorianos no litoral catarinense, com detalhes construtivos das técnicas populares. Editado em 2002, nas primeiras páginas do livro Broos assinala: “no meu íntimo, cultivo grande respeito pelas expressões formais do passado”, mas adverte que esta relação possui caráter pragmático, diverso à de um historiador: “[…] como arquiteto, me habituei a entrar em contato com o tempo e a vida por meio de resultados formais, não pela pesquisa de livros e documentos.”
De certa forma, toda sua obra vai ostentar esta postura: conciliatória entre o novo e o antigo, não transgressora quando confrontada com a arquitetura histórica, apesar de reivindicar sempre o papel que lhe cabe, adequado a seu tempo. Pensamento este que se refletirá também no espaço urbano, como o demonstram os espaços do conjunto fabril da Hering. E mais surpreendente é a época de sua proposição, quando comparado aos equivalentes nacionais. Antecipa-se mesmo a projetos como o SESC Pompeia (1977-1986), de Lina Bo Bardi, considerado marco de um novo pensamento urbano no Brasil, pela aceitação à cidade, o convívio do moderno com o existente. Muito embora na época de sua construção ao complexo da Hering não cabia o entendimento de espaço “urbano”, e diferia do contexto denso da proposta de Lina, aquele projeto também encontrou uma situação já formada, onde o arquiteto teve de lidar com os prédios históricos para a inserção dos novos edifícios. Ademais, concorre para tal noção, o tratamento dado na concepção do conjunto, pensado como um espaço coletivo, e uma unidade funcional integrada e em perfeita continuidade com a cidade.