Espanto, surpresa, experimentação. Itu, cidade do interior de São Paulo, referenciada como o lugar em que os objetos urbanos são gigantes, fora da proporção, guarda mais do que os valores históricos dos casarios, as inúmeras igrejas e praças, as ruas estreitas nas quais é possível caminhar sem sustos. O museu Fábrica de Arte Marcos Amaro (Fama) oferece o inesperado. Instalado no prédio da Companhia de Fiação e Tecelagem São Pedro, construído em 1911, na Vila São Francisco, o espaço reúne um vasto acervo de arte moderna e contemporânea brasileira que pode ser visitado a céu aberto ou em salas expositivas. Além de garantir deleite e conhecimento, o Museu Fama provoca reflexões sobre trajetória artística, colecionismo e a atuação de mecenas daquele que dá nome à iniciativa.
A fábrica São Pedro, produtora nos anos 1970 do tecido denin índigo blue, encerra as atividades em 1990. Em 2003, o expressivo conjunto de galpões, de rara beleza, é tombado pelo Estado. Em 2012, o artista Marcos Amaro instala o seu ateliê no galpão IV e, em 2017, transfere sua coleção de arte brasileira para, um ano depois, inaugurar o museu que atrai visitantes de todo o país.
Os 25 mil metros quadrados abrigam prédios, alguns em ruínas que, em constante processo, são transformados para ampliar o museu e acolher as cerca de 2 mil obras de arte, as de grande escala sobretudo no jardim e as demais em salas com amplo pé direito e dentro das normas de museologia. Com infraestrutura adequada, convida a um passeio de um dia – no mínimo – para conhecer a coleção de Marcos Amaro, presidente da Fundação Marcos Amaro. Em diferentes galpões estão instalados a recepção, loja, restaurante, sete salas – quatro já denominadas como Tunga, Marcos Amaro, Rolim Amaro e Almeida Júnior, artista nascido em Itu, importante nome da história da arte brasileira. Há ainda o Labirinto, o Galpão, banheiros, jardim, um parque escultórico linear. Com atividades culturais permanentes, a instituição mantém um núcleo educativo, composto pelo Observatório de Criação, que desenvolve pesquisa e referência, e a equipe da comunicação.
A visitação requer uma boa caminhada, cheia de descobertas não só pela poética das propostas tridimensionais distribuídas no jardim Dona Helena (avó de Marcos Amaro), mas também pelas questões suscitadas pelas obras, a vida e o colecionismo. Quem é esse artista que compra e compartilha a coleção de modo tão singular? Pulsante e orgânico, o museu aproxima a arquitetura, a história da arte e da cidade, o patrimônio e a memória, a arte e a natureza, leva a pensar sobre o tempo e a luz.
Monumental, a antiga fábrica tem salas expositivas fechadas, aclimatadas e seguras; e o Galpão, a céu aberto, entre quatro paredes, amplo espaço destelhado com janelas e portas semidestruídas pelo desgaste temporal. A arquitetura do século 19 em estado bruto. O prédio é pele – obra também. As cicatrizes do passado expõem cortes, rasgos, fissuras, aberturas. Volumetrias, madeira, ferros e tijolos à vista – texturas, cores, vísceras. As paredes se impõem como um corpo vivo e vibrante que abraça o sonho ou aquilo que move um colecionador, no caso avidez pela grandeza e conhecimento sobre arte brasileira.
O acervo do museu inclui esculturas, instalações, desenhos, gravuras, pinturas e fotografias. Reúne trabalhos de consagrados como Amilcar de Castro, Emanoel Araújo, Franz Weissmann, Hugo França, José Resende, José Spaniol, Leon Ferrari, Mestre Didi, Mario Cravo Júnior, Nicolas Vlavianos, todos com forte vocação escultórica. Há ainda Abraham Palatnik, Alex Flemming, Alfredo Volpi, Cildo Meirelles, Farnese de Andrade, Franz Krajcberg, Iran do Espírito Santo, Henrique Oliveira, Lasar Segal, Nelson Leirner, Nuno Ramos, Sérgio Romagnolo, Véio, Waltércio Caldas, entre outros. O conjunto de gravuras incorpora Aldemir Martins, Goeldi, Regina Silveira, Renina Katz, Djanira e 450 matrizes da coleção de Guida e José Mindlin.
Mestre do barroco brasileiro
Se pensarmos em plataformas afirmativas, descoloniais e antipatriarcais, sob o ponto de vista feminino, o acervo abarca Adriana Varejão, Amélia Toledo, Ana Maria Tavares, Anita Malfatti, Carmela Gross, Fayga Ostrower, Frida Baranek, Jac Leirner, Laura Lima, Leda Catunda, Iole de Freitas, Tomie Ohtake, entre outras representações não menos significativas. A produção masculina não consegue produzir o apagamento do feminino. Na mesma conexão, porém sob outro prisma, na Sala Almeida Júnior destaca-se a emblemática “Nossa Senhora das Dores”, de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, provavelmente criada no século 18. A peça preferida do colecionador Marcos Amaro, feita de madeira entalhada e policromada, em tudo remete à dor feminina. Dentro de uma caixa de vidro, o rosto traz um olhar incrédulo, punhal cravado no peito, mãos abertas, uma obra com alto teor dramático. A escultura do mestre do barroco brasileiro irradia uma força magnética e secular. Garante, também, amplitude temporal à coleção que alcança o século 18, o 19, o 20 e o 21.
A tela “O Descanso da Modelo” (1885), de Almeida Júnior, estabelece outra ponte histórica em diálogo com o contemporâneo. Sem rigidez, as montagens em diferentes salas estabelecem atravessamentos entre a produção moderna e contemporânea, com obras que embaralham os limites temporais, os da linguagem e das técnicas adotadas pelos artistas. Enfim, é recomendável pensar o tempo todo em dialéticas paradoxais. O que dizer, por exemplo, do “Pássaro” (2015-18), de Laura Lima em coautoria com Zé Carlos Garcia, trabalho feito de espuma, tecido e penas? Pungente, a escultura gigantesca da ave negra jaz no chão da sala. Impõe silêncio e interrogações. Híbrida, em linguagem expandida até pode se confundir com uma gravura impressa no solo, uma força que antagoniza a vida e a morte.
Em outro viés, a coleção pode ser pensada sob o ponto de vista político e os efeitos da consultoria prestada por Ricardo Resende, curador respeitável com vasta experiência. Mestre em história da arte pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), conduz a carreira centrada na área museológica. Entre 1988 e 2002, atua entre o Museu de Arte Contemporânea da USP e o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, quando desempenha as funções de arte educador, produtor de exposições, museógrafo, curador assistente e curador. Desde 1996, coordena o Projeto Leonilson. Dirige o Museu de Arte Contemporânea do Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura (2005-07), em Fortaleza (CE), e, também, o Centro de Artes Visuais da Fundação Nacional das Artes, do Ministério da Cultura (2009-10) e o Centro Cultural São Paulo (2010). Desde 2014, é curador do Museu Bispo do Rosário no Rio de Janeiro.
O pensamento curatorial da mostra inaugural do Museu Fama – “O Tridimensional na Coleção Marcos Amaro: Frente, Fundo, em Cima, Embaixo, Lados” – contamina tudo o que se vê na fábrica São Pedro. Ao expor a coleção Amaro, Resende pontua a diversidade e a libertação das amarras conceituais: “É uma organização livre que busca escapar ao academicismo contemporâneo que rege a arte, pautada por teorias de estética, de filosofia, de sociologia e de mercado. É mais uma organização que joga luz sobre relações políticas, históricas, estéticas e plásticas encontradas na coleção”.
Na visitação é possível rever trabalhos emblemáticos expostos em bienais. “111”, a instalação de Nuno Ramos, apresentada na Bienal de São Paulo de 1992, lembra o assassinato de 111 detentos pela Polícia Militar no presídio do Carandiru em São Paulo. A obra, que ajudou a projetar o artista internacionalmente, é composta por 111 lápides em forma de paralelepípedos, cobertas de asfalto e uma listagem das vítimas. Inclui ainda um recorte de jornal com a notícia do massacre, cinzas de páginas da Bíblia e, na parede, um texto com letras de parafina em superfícies de vidro, também preenchidas com folhas bíblicas queimadas.
Outro trabalho com forte conexão política é “Ar”, de Rubens Gerchman. Criada em 1967, a partir do desejo utópico de devolver o significado de certas palavras, a obra integra a série em que o artista projeta letras gigantescas formando as palavras “Lute”, “Ar” e “Terra”, uma das mais representativas do neoconcretismo brasileiro. “Lute” atrapalha o trânsito na avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, e chama o público para a luta contra a ditadura militar. Da mesma forma, no Museu Fama, “Ar” referencia os anos de chumbo em que a repressão perseguia, encarcerava, torturava e matava. “‘Ar’, de acordo com Resende, “pode ser um grito, um suspiro, um pedido de socorro”. No Galpão, a céu aberto, “Ar” dialoga com “Senzala” (2011-17), de José Resende.
Ainda nesta perspectiva, as gravuras de Renina Katz e de Aldemir Martins estão na mesma clave política quando abordam a seca, a dureza da labuta braçal nestas condições, as agruras do homem do sertão nordestino.
Entre outras obras importantes, criadas para certames significativos do circuito de arte brasileiro, como é o caso de “111”, de Nuno Ramos, Marcos Amaro também adquiriu “A Cachoeira” (1985) de Leda Catunda, vista pela primeira vez na 18ª Bienal de São Paulo.
SC na coleção
O que há de Santa Catarina no acervo? Uma pena que “Sem Título” (1991), exposta neste momento, não dá a exata grandeza do ilhéu Ivens Machado (1942-2015), mas muito importante que esteja lá. E, em breve futuro, o joinvilense Sérgio Adriano H deve deixar um trabalho por razão contratual referente à conquista do edital Fama Museu 01/2021 – Incentivo à Produção Artística Contemporânea no Estado de São Paulo. A iniciativa assegura a inclusão no acervo e a mostra individual – “Não Consigo Respirar”, aberta até o próximo dia 4 de abril.
Interesse pelo tridimensional
A criação de outras noções e relações com o tempo, a memória e os espaços de percepção individual e coletiva são paradigmas do contemporâneo que estão na produção do artista Marcos Amaro. O museu abriga o seu ateliê e parte de sua coleção distribuída pelo jardim e em salas nas quais fica evidente o seu interesse pela tridimensionalidade. Paulista, nascido em 1984, é também empresário. Formado em economia pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) e em filosofia pelo Instituto Gens Educação e Cultura, começa a carreira profissional na empresa TAM Aviação Executiva, onde integra o conselho da TAM Linhas Áreas. Como artista tem inúmeras exposições no currículo, entre elas a SP Arte, Art Basel, Art Zurich e das bienais de Salerno e Curitiba. Em 2020, foi indicado ao prêmio de melhor museu e equipamento cultural pelo governo do Estado de São Paulo. Atualmente é sócio fundador e presidente do conselho da Amaro Aviation, e sócio das empresas LogBras e Galeria Kogan Amaro. É também presidente da Fábrica de Arte Marcos Amaro e membro dos conselhos do MAM e Museu de Arte de São Paulo (Masp).
“O desejo de criar expande-se para o de colecionar, que inspira a criação artística e a vontade de mostrar obra e coleção. Essas são as forças viscerais e circulares que alimentam Amaro”, escreve Ricardo Resende, no livro “A Força do Tridimensional – Coleção Marcos Amaro”. O imaginário da aviação marca a materialidade e a representação das imagens do artista que desenha, pinta e elabora formas curiosas ao se apropriar de carcaças de velhos aviões e outras sobras sucateadas. Em colagem, agrega elementos díspares como uma asa de aeronave e as rodas de madeira de um carro de boi. Matéricas, as esculturas sofrem a ação do tempo, misturam-se à vegetação.
O ready-made “Fóssil” (2020), apropriação de uma máquina de extração de petróleo que supera em altura o muro do museu, chama a atenção. A bomba cavalo de pau – uma vareta de sucção – se impõe intacta, serve como um disparador de questões sobre tecnologia, o meio ambiente, a economia neoliberal, tendo em vista os custos internacionais do precioso óleo preto. A ferrugem e o evidente desgaste denunciam o obsoleto equipamento que projeta pensamentos sobre o fim das fontes de energia no planeta. Monumental, em contraposição solar a peça desenha contornos nunca vistos no espaço aéreo – o céu azul. A intenção primordial do artista de mudar a função inicial da peça incomoda alguns espectadores. Já o museu, em seu site, menciona o formato peculiar que lembra “um dinossauro habitando a antiga fábrica de tecidos – por isso o título ‘Fóssil’”. Descreve ainda: “Uma lápide de parte da nossa história que aponta para a antiguidade da transformação”.
As imagens de Marcos Amaro brotam do imaginário da própria infância quando vivia entre tecnologias e peças industriais de grandes proporções: os aviões da empresa do pai, o capitão Rolim Amaro. A memória afetiva sedimenta a produção. No caso de “Fóssil”, não há interferência, colagem, acúmulo, corte, dobra, sobreposição. Só deslocamento, fossilização do passado.
Complexa, trata-se de uma atuação desdobrada entre a produção artística e o colecionismo que o aproxima do papel desempenhado por um mecenas interessado em experimentações, algo raro no Brasil. Marcos Amaro não apenas legitima a sua obra, mas também a de outros pares, acompanhando com atenção as questões do mercado. Na posição de investidor, amplia a própria coleção e dá luz sobre obras emblemáticas da história da arte brasileira. Seu projeto estimula negócios artísticos, novos colecionadores e também artistas fundamentais, alguns dos quais às vezes ficam marginalizados ou esquecidos.
No âmbito experimental, uma infinidade de propostas. Neste sentido, o paulista Rodrigo Sassi chama a atenção com a escultura “Tríptico”, viabilizada pelo 4º Edital de Ocupação da Fábrica de Arte. A escultura está incrustrada em uma das paredes de uma área destruída de um dos galpões da fábrica. O artista impressiona com os grafismos alcançados com madeira compensada e preenchida por concreto, cujo resultado lembra uma espécie de parasita vegetal. Rústico, emaranhado, meio camuflado, o trabalho insere-se na arquitetura e na paisagem, de modo que alguns visitantes sequer percebem o trabalho.
Por fim, para quem conhece Santa Catarina, em especial Joinville – situada ao Norte e que tem o maior PIB do Estado, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não deixa de lembrar da Cidadela Cultural Antárctica, um complexo histórico localizado no centro da cidade. Comprado pela Prefeitura em 2000, o espaço está desde 2012 destinado por lei, pelo Plano Municipal de Cultura para atividades da cultura, do lazer e do turismo. Destruído por um deslizamento de terra, em 2008, no morro que fica nos fundos da antiga cervejaria e recentemente um incêndio, há um silêncio constrangedor sobre o assunto. Além do descaso político, a própria comunidade parece não ter a exata dimensão sobre a importância do acervo arquitetônico que poderia ter acolhido, em recente passado, o Museu de Arte Contemporânea Luiz Henrique Schwanke (MAC Schwanke), cujo projeto arquitetônico e seus complementares são finalizados em 2011. Mas isso já é uma outra história, melhor é ficar com o belíssimo exemplo da cidade de Itu que se mostra mais culta e sensível em relação ao valor da cultura.