Quando olhamos para as vanguardas artísticas repletas de grandes nomes, em sua maioria homens, nos questionamos: onde estavam as mulheres? No construtivismo russo não poderia ser diferente. Quando iniciamos o contato com este movimento, nos deparamos com grandes nomes como Malevich, Tatlin, Rodchenko, Naum Gabo. Mas, e as mulheres? Ainda que sejam citadas, Liubov Popova ou Varvara Stepanova, as mulheres construtivistas russas aparecem, com sorte, como uma sutil nota.
A arte construtivista foi inspirada pelas conquistas do novo estado operário russo, utilizando as técnicas e materiais modernos a favor de objetivos sociais e da construção de um mundo socialista. Ocorre que esse novo estado operário não teria sido possível sem a luta feminina, uma vez que foram as trabalhadoras e chefes de família que foram as responsáveis por uma consciência coletiva de que a fome e a pobreza eram culpa da guerra e dos políticos que a conduziam. Elas pegaram em armas e suplicaram aos homens que se juntassem a elas. Essa resistência das mulheres nos relatos históricos sobre a Revolução de Fevereiro não foi tão exitosa na história da arte.
Ao analisarmos o papel da mulher na revolução e, por conseguinte, o papel da revolução na vanguarda artística do construtivismo russo, percebemos logo que as mulheres não foram uma pequena nota em sua história e sim artistas que construíram o movimento da mesma maneira que aqueles sempre lembrados. Ao contrário do que muitas vezes conta a história, as mulheres estiveram lado a lado dos homens e revolucionaram a arte da mesma forma que estes.
Os bolcheviques e as mulheres russas
Antes da Revolução de Fevereiro de 1917, mulheres e homens viviam em uma relação de extrema desigualdade, entretanto, as artistas vanguardistas que contribuíram com o construtivismo russo eram vistas como iguais perante os artistas homens, tendo suas obras e textos expostos e debatidos por toda a classe. Então, se as relações entre homens e mulheres na Rússia eram desiguais, o que permitiu a inserção e atuação das artistas mulheres nos movimentos artísticos?
Acredita-se que o primeiro passo foi a inserção das mulheres nos meios acadêmicos. Em 1858 o governo russo criou a primeira rede de escolas secundárias para mulheres e em 1871 a Academia Imperial de Artes em St. Petersburgo começou a admitir estudantes mulheres. Ainda que as mulheres não tivessem acesso ao mesmo ensino formal que os homens, já que eram direcionadas para as artes decorativas como bordado, tecelagem e pintura cerâmica, sua presença nos espaços acadêmicos possibilitou a criação de estúdios e ateliês independentes dos espaços formais de ensino. Em 1899, Elizaveta Zvantseva abre o primeiro atêlie a permitir que homens e mulheres desenhassem nus no mesmo espaço e é neste ateliê que estuda Olga Rozanova, importantíssima artista do construtivismo russo.
Ainda que tenha sido um grande avanço, a inserção das mulheres nos meios acadêmicos não era a realidade da maior parte das russas. As escolas e academias se localizavam em sua grande maioria nos centro urbanos, tornando impossível o acesso por parte da população camponesa, que naquele período compunha 80% da população na Rússia. A realidade das mulheres russas naquele período era de miséria, a maioria analfabetas e acumulavam jornadas exaustivas de trabalho, atuando nas indústrias e sendo responsáveis pelo trabalho doméstico e cuidado com os filhos. Somente após a Revolução de 1917, com a instauração da Nova Política econômica de Lênin, que passa a ser discutida uma mudança estrutural nas relações entre homens e mulheres, promulgando-se leis pela igualdade de gênero, construção de campanhas e projetos pelo fim da submissão das mulheres.
A exposição 0.10 e as transformações da arte russa/soviética
O estudo da relação de igualdade entre artistas homens e mulheres no período pré e pós-revolução de 1917 pode ser melhor exemplificado com a Exposição 0.10, da onde partiu nossa busca pelas artistas mulheres das vanguardas russas. Organizada por Ivan Puni no fim de 1915, após a repercussão das obras de Tatlin e Malevich, a exposição 0.10 tem como pretensão reunir as obras futuristas para uma última mostra comemorativa a inauguração de uma nova forma de arte, uma arte não objetiva, livre de qualquer significado, na qual é enfatizada a pureza da forma. Esse rompimento é um marco para a nova Rússia que está se construindo, bem como para um tipo de arte característico, com artistas icônicos e mundialmente conhecidos.
O número 0.10 refere-se a uma figura do pensamento. O Zero, porque se esperava o ano zero após a destruição do velho mundo e os artistas expositores queriam encontrar o cerne da pintura, o zero da forma, a fuga da arte acadêmica, a liberdade do artista e das formas da natureza. O Dez, por sua vez, seria o número de artistas expositores que, ao final, foram 14. É neste sentido que se dá outro marco importante: metade dos expositores eram artistas mulheres. Isso reflete o novo mundo imaginado pelos modernistas russos, o mundo que conduzia a uma ampla redefinição dos papéis do homem e da mulher. Pela primeira vez na história, as mulheres como artistas estavam em situação de igualdade com os homens, num grau que só foi atingido na Europa ou na América bem mais tarde. Considerando a já mencionada grandiosidade dessa exposição, olharemos agora com mais profundidade para cada artista, percebendo suas contribuições para revolucionar a arte.
As protagonistas da arte e a história da revolução
Olga Rozanova (1886 – 1918) nascida em Melenki e vinda de uma aristocracia provinciana, chegou a Moscou e se envolveu nas vanguardas artísticas, primeiro com o futurismo. Neste período de experimentações é que a artista lança seu tratado teórico no artigo “Bases da nova criação e razões para sua incompreensão”, de 1913. Em 1916 Rozanova se junta ao grupo Supremus de Malevich, passando a focar seu trabalho na pintura através de composições abstratas.
A partir de 1917 seus trabalhos vão ficando mais refinados e originais, colocando seu traço distintivo em evidência: a cor. Sua grande contribuição para a arte foi a discussão sobre a cor, a “colour painting” (pintura colorida).Se olharmos para a história da arte, algo semelhante acontecerá 30 anos depois com os campos de cores de Rothko e as linhas verticais de Barnett Newman. E mesmo tendo revolucionado a arte, porque não vemos seu nome mencionado ao lado de tantos outros artistas?
Nadejda Udaltsova (1886 – 1961 – vinda de uma família de oficiais militares, foi através da pintura francesa que se interessou pela arte. Iniciou com as vanguardas de Moscou, indo para Paris em 1912, juntamente de Popova, onde entram em contato com o cubismo. Udaltsova passa a desenvolver seu próprio estilo cubista, com uma riqueza incomum de tonalidades e nuances de cor e uma certa racionalidade mais característica da arte russa. Entre 1916 e 1917 juntou-se ao grupo Supremus e passou a pintar diversas composições puramente geométricas, porém, sua maior contribuição foi através de suas obras cubistas. Enquanto os artistas do movimento abandonam a pintura de cavalete, Udaltsova se recusa e se opõe ativamente a essa questão. Junto com o marido, nos anos de 1930, passa a pintar paisagens em estilo expressionista.
Liubov Popova (1889 – 1924) – influenciada por uma família de comerciantes têxteis que possuíam grande envolvimento com as artes. Popova teve contato com o cubismo quando esteve em Paris e com o futurismo, na Itália. Através da síntese desses dois movimentos, a artista passa a produzir o que irá chamar de “arquiteturas pintáveis” e inicia seu caminho rumo à abstração. Em 1916 Popova participou da organização do grupo Supremus, porém, depois juntou-se ao construtivismo de Tatlin e aderiu aos objetivos revolucionários. Nas obras desse período, Popova demonstra que mesmo tendo envolvimento com o suprematismo estava mais interessada na pintura como projeção da realidade material, onde seus planos sobrepostos e suas cores demarcadas possuem a presença objetiva da materialidade e do real. É com Varvara Stepanova que inicia os projetos na primeira estamparia estatal de algodão, onde as duas desenvolveram um grandioso trabalho de estampas. Além disso, Popova trabalhou com projetos cenográficos – com o dramaturgo Meierhold -, com tipografia para livros e com desenhos para o jornal LEF (revista da Frente de Esquerda das Artes). Sua trajetória é abruptamente interrompida pela escarlatina e morre em 1924, deixando um imenso legado e acervo de suas obras.
Vera Pestel (1887 – 1952) – envolveu-se com as vanguardas quando viajou pela Alemanha, Itália e França, produzindo obras influenciada pelo cubismo e futurismo. A partir de contato com Malevich, aprofunda-se nos planos geométricos e aborda elementos heterogêneos, como números, letras e fragmentos de objetos. Com a influência do suprematismo, torna-se cada vez mais abstratas, com uma grande sensibilidade no uso das cores e delicadeza nas construções. Porém, ela sempre irá inserir nas obras elementos concretos, como esboço ou parte de objetos como leques, instrumentos musicais e letras do alfabeto cirílico. Na década de 1920 e até sua morte, a artista abandona a não figuração e se dedica ao design teatral.
Ksenia Leonidovna Boguslavskaya (1892 – 1972) – por conta do pai oficial, morou em vários lugares como a China. Ingressou na Academia de Artes e conheceu Ivan Puni, retornando para São Petersburgo em 1913. Seu apartamento e estúdio era uma espécie de “salão”, um ponto de encontro de artistas e poetas, artistas de vanguarda e futuristas. Seu sangue revolucionário estava sempre em evidência, já em 1914 a artista lança uma coleção futurística, junto a Puni, chamada “Roaring Parnassus”. Esta coleção foi detida em janeiro de 1914 e quase totalmente destruída, pois a censura viu nela “sinais de blasfêmia e pornografia”.
A importância histórica da artista é mais amplamente encontrada na literatura. Poucas são as obras catalogadas e a maioria são de fontes de comércio de arte na internet. Sua imagem é frequentemente associada à do marido artista, com quem realizou diversas obras em parceria. É sabido, contudo, que Ksenia trabalhou como artista gráfica de livros, produziu capas para editoras alemãs e russas, além de se dedicar à cenografia, contribuiu com movimentos como o cubo-futurismo, futurismo, suprematismo, construtivismo, com uma habilidade única de transitar entre novas e velhas tendências.
Maria Ivanovna Vassilieva (1884-1957) – nasceu em uma família próspera, por isso foi estudar medicina e artes plásticas na capital, recebendo uma bolsa da Imperatriz Viúva Maria Feodorovna para estudar em Paris em 1905 – estudou com Henri Matisse e frequentou aulas de arte na Academia de La Palette. A biografia de Vassilieva é uma daquelas que nos remete a filmes cheios de drama, ação e aventura: a menina burguesa que corta os cabelos e abandona uma sólida e abastada família para distribuir panfletos revolucionários na rua. A artista é mencionada na biografia de Matisse como aquela que apareceu de surpresa em sua porta, após conhecer sua obra em uma exposição, para aprender, tendo vivido em seu sótão por certo tempo enquanto sobrevivia de bicos jornalísticos e traduções. Posou para Modigliani, recebeu proposta de casamento de Henri Rousseau, pintou retratos de Jean Cocteau e Picasso. Se tornou a chefe da Academia de Arte Russa em Montparnasse, transformou seu estúdio na Academia Vasilyeva, agindo sob o princípio do trabalho livre, sem ensino. Seus convidados frequentes no estúdio: Picasso, Braque, Modigliani, Soutine, Zadkine, Max Jacob, Juan Gris e Henri Matisse.
Palestrou sobre arte contemporânea, trabalhou como enfermeira na Cruz Vermelha Francesa na Primeira Guerra Mnudial, utilizou sua Academia para servir sopa para artistas necessitados. Suas obras refletem essa transição entre mundos, artistas e vanguardas. Teve influência óbvia de Paul Cézanne e Henri Matisse, se tornou uma seguidora do “cubismo feroz e lírico”, como Braque e Picasso. Na exposição 0.10, exibiu seis de suas obras cubistas, na obra “Composição rayonista” torna visível as vibrações do objeto, conforme preconiza o estilo de Larionov e Goncharova, mostrando que mesmo em Paris, seus laços com a Rússia ainda eram estreitos.
Criou cenografia, figurinos e máscaras para o balé sueco, onde vemos uma arte mais planificada, incluindo elementos místicos ou surreais. Apareceu em exposições em Paris, Londres, Chicago, além de produzir máscaras e fantoches satíricos que foram exibidos em várias cidades da Itália. Por fim, ainda ousou abrir um Museu de arte particular (Musée du Montparnasse, fechado em 2015). Vassilieva se recusou a deixar sua história ser apagada. Percebemos que a memória da artista está viva graças, além de seu esforço e ousadia particular, ao fato de não ter permanecido na Rússia.
Ana Kirillova (1886 – 1967) – é a última artista da exposição 0.10 a ser retratada e também aquela que abre caminhos para uma discussão futura: o problema das fontes. Como seguir uma pesquisa pelos rastros deixados na história da arte? As informações biográficas sobre a artista são extremamente escassas. No ano de 2016, a Fundação Beyeler lançou a Exposição “Em busca da 0,10: A Última Exposição de Pinturas Futuristas”, em homenagem aos 100 anos da primeira edição. No catálogo pós-exposição, uma curta biografia informa que a artista morreu em Leningrado no ano de 1967, porém, não há registros de sua existência após o ano de 1946.
Filha de uma família aristocrata de São Petersburgo, frequentou uma escola para meninas e foi admitida em 1906 na Academia Imperial de Arte, sendo expulsa seis meses depois por baixo desempenho. Depois de receber aulas particulares, leciona em escolas de níveis mais baixos. Expõe 17 obras em São Petersburgo pela Associação de Artistas Independentes, e regularmente na galeria de Nadezhda. Nenhuma obra exposta na 0.10 pela artista sobreviveu. Segundo a Fundação, só há uma obra da artista, a aquarela “The Toy’s Ball”, a qual não se tem acesso à imagem em nenhum lugar. Informações dão conta de que tal obra se encontra na Biblioteca Nacional da Rússia, cujo acervo físico ou digital estão indisponíveis.
Entre as camadas da memória e os protagonistas da história
É importante destacar sobre a dificuldade do acesso às obras e biografias de artistas, que após a imposição do realismo socialista por Stálin a partir da década de 1930, muitas obras e acervos dos artistas se perderam. Ainda assim, quando olhamos para os artistas homens vemos a investida no resgate de suas obras e legados, o que não nos parece ocorrer com as artistas mulheres. O percurso das artistas russas aqui abordado demonstra que as mulheres da vanguarda russa gozavam de liberdades em suas vidas pessoais, criativas e sociais que não eram comuns no resto da Europa nesse período, numa dinâmica de camaradagem que operava dentro dos círculos artísticos, além de uma relativa ausência de ciúme profissional e grandes parcerias como no caso da 0.10.
Malevich certa vez reconheceu sua dívida com a tradição da arte local, ao descrever as roupas e tecidos produzidos pelas meninas camponesas ucranianas, afirmando que “a arte pertencia às mulheres mais do que aos homens”.
Se o triunfo da vanguarda russa é impensável sem a participação das mulheres artistas, que contribuíram diretamente para o seu desenvolvimento, por que é tão difícil encontrar referências de seus trabalhos? Nós estudamos tanto Kandinsky, Malevich, Rodchencko, Tatlin e Lissitsky, estudamos, também, por vezes, Goncharova, Rozanova e Popova, mas quantas vezes ouvimos falar de artistas revolucionárias como algumas aqui retratadas e tantas outras sequer mencionadas? Não há nada errado em estudar os ícones habituais, mas porque não relembrarmos os nomes femininos praticamente desconhecidos pelo público?
É fundamental voltarmos nossa atenção para as artistas russas, sermos sensíveis a este protagonismo e às camadas da história que fazem com que o passado possa continuar sendo um rico manancial de experiências humanas que nos permite pensar nosso tempo e a nós mesmos de modo mais inclusivo e diversificado. Assim, esperamos que as reflexões apresentadas nesta pesquisa sejam consideradas, tanto como fonte de informação para outras pesquisas, como também de inspiração e alento para a história sempre inconclusa de conquistas sociais em sentido mais amplo e possibilidades culturais em sentido mais pleno.
Luiza Melo tem 24 anos, é natural de Blumenau e mora há 6 anos em Florianópolis. Estudante de Artes Visuais na UDESC, realiza seus trabalhos na área de fotografia, gravura e escrita, abordando temas como memória, cotidiano, política e resistência. Atua ainda como professora em um projeto social.
Karoline da Silva tem 31 anos, é natural de Florianópolis. Estudante de Artes Visuais na UDESC e advogada, encontrou nas políticas públicas culturais um campo de atuação necessário. Na vida acadêmica realiza seus trabalhos na área de fotografia e escrita, abordando temas como acervos, arquivos, memória local e política. Atualmente está como Secretária Adjunta da Casa Civil de Florianópolis, onde é responsável pela elaboração e execução das políticas públicas do município.
Referências:
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BOWLT, John E. (ed). Russian Art of the Avant-Garde Theory and Criticism 1902-1934. New York: The Viking Press, 1976.
LEITE, Tamires Moura Gonçalves. As estampas de Liubov Popova e Varvara Stepanova e o novo modo de vida soviético. 2019. 74 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Têxtil e Moda, Usp, São Paulo, 2019.
SCHNEIDER, Graziela. A Revolução das Mulheres: Emancipação feminina na Rússia Soviética. Artigos, atas, panfletos, ensaios. São Paulo: Boitempo, 2017.
YABLONSKAYA, Miuda. Women Artists of Russsia’s New Age 1900-1935. London:
Thames and Hudson, 1990.