Em períodos políticos conturbados, as pessoas passam a defender seus ideais com mais fervor. O Brasil de hoje é um exemplo, as discussões políticas estão dentro das famílias, no ambiente de trabalho, no transporte público, nos grupos aleatórios dos aplicativos do celular. Com frequência, artistas que alcançam grandes massas são convocados a assumir publicamente seus ideais políticos, outros tantos são perseguidos justamente por falarem o que pensam. Quantas vezes circulou nos últimos anos, nas redes sociais, o vídeo de uma entrevista em que Nina Simone diz: “o dever de um artista… é refletir os tempos”. Certamente, ela não está sozinha, muitos artistas e movimentos artísticos nos fizeram pensar sobre o contexto político em que viveram. Um deles é o movimento construtivista.
Arte a serviço da revolução
Guardadas as devidas proporções e com a devida distância no tempo, consideremos aqui um movimento que colocou a arte a serviço da revolução: o Construtivismo Russo, em especial, o cinema. Os ideais libertários, que estiveram presentes nas vanguardas artísticas de um modo geral, se ‘concretizaram’ na arte não objetiva da Rússia no pós-revolução de 1917.
Para os construtivistas russos, a produção artística deveria ser funcional e informativa, e o papel social, concreto. O marco deste movimento foi o Manifesto Realista, escrito em 1920 pelos irmãos escultores e pintores Naum Gabo (1890-1977) e Antoine Pevsner, no qual eles renunciaram a cor, a linha e a ilusão como único elemento das artes pictóricas. Os artistas comumente citados do Construtivismo Russo são o suprematista Kazimir Malevich (1878-1935), o pintor e escultor Vladimir Tatlin (1885-1953), e o pintor e fotógrafo, Aleksander Rodchenko (1891-1956), companheiro de Varvara Stepanova (1894-1958). Esta artista, nascida na Lituânia e radicada em Moscou desde a juventude, ao longo da carreira produziu pinturas e poemas gráficos não objetivos, investigou a fotografia e ainda criou figurinos para o teatro, vestimentas utilitárias para trabalhadores e esportistas e diversas estampas. Seus padrões coloridos e geométricos para a estamparia inspiraram Adolf Dassler, fundador da marca Adidas.
Nova forma de fazer cinema
No cinema, Sergei Eisenstein (1898-1948) foi o grande notável, reconhecido como um dos mais importantes cineastas da história mundial cinematográfica, suas teorias e seus filmes, como A greve (1925), Outubro (1927) e O Encouraçado Potemkin (1926), marcaram uma nova forma de fazer cinema. Pela primeira vez, a montagem foi considerada um elemento central tanto estético quanto ideológico.
Entre os documentaristas, quem se destaca é Dziga Vertov (1896-1954) – nome artístico que significa rodar sem cessar – seu filme mais conhecido é O homem com a câmera (1929), ao longo de um dia na cidade de Moscou, acompanhamos os movimentos do cotidiano. O diretor defendeu a “deposição dos reis e rainhas imortais da tela e o restabelecimento do mortal comum, filmado em sua vida e afazeres cotidianos”¹, o objetivo era “auxiliar cada indivíduo oprimido e o conjunto do proletariado em seu esforço para entender o fenômeno da vida ao seu redor”². Estes cineastas defendiam a montagem como essência poética de um cinema capaz de integrar inovação e qualidade artística, manifesto político e popularidade de massa.
A teoria mais conhecida sobre a montagem cinematográfica proveniente deste período é o “Efeito Kuleshov”. Lev Vladimirovitch Kulechov foi cineasta, professor e um dos fundadores da primeira escola de cinema do mundo, a Escola de Cinema de Moscou, e demonstrou através de uma montagem de imagens que o plano cinematográfico ganha sentido após ser inserido em uma sequência. Vemos um plano fechado do rosto de um ator, intercalado com um prato de sopa, uma criança no caixão e uma mulher deitada em um divã, ou seja, a feição do homem em uma montagem pode ser associada à fome, ao luto ou à paixão. Era a técnica cinematográfica, portanto, que ocasionava a emoção no espectador.
Em seu filme After the facts, a cineasta e pesquisadora drª Karen Pearlman refuta a expressão “Efeito Kuleshov”. A autora afirma que a história do cinema como é contada nos dá a impressão de que as inovações nas práticas e suas formas cinematográficas resultantes foram obra de homens individuais. Pearlman prefere usar o termo “Efeito das editoras(es)”³ e refaz a sequência de Kuleshov com a imagem de uma mulher que olha, seguido de um plano do que ela vê e outro plano sobre o que ela pensa. Na verdade, muitos editores do cinema soviético, boa parte mulheres, estavam presentes na ilha de edição, pensando e editando a montagem dos filmes.
Um caso interessante e pouco estudado é o de Elizaveta Svilova (1900-1975), uma força intelectual e criativa que desempenhou um papel crucial na teoria e prática cinematográfica dos Kinocs – kino (cine) e oko (olho). Afinal, ela era a montadora de um grupo cinematográfico que considerava a montagem, o elemento principal. O grupo Kinocs era formado por Svilova, seu companheiro Dziga Vertov e o irmão dele, Mikhail Kaufman, juntos produziram 23 filmes documentários de curta-metragem intitulados Kinopravda (cinema verdade).
Seu trabalho era limpar e selecionar filmes e negativos, um tipo de atividade vista como tarefa doméstica, não à toa havia tantas mulheres no departamento de edição.
Elizaveta Svilova foi montadora, diretora, escritora e arquivista. Filha de um ferroviário e de uma dona de casa, começou a trabalhar quando tinha apenas doze anos, era aprendiz em um laboratório de cinema. Seu trabalho era limpar e selecionar filmes e negativos, um tipo de atividade vista como tarefa doméstica, não à toa havia tantas mulheres no departamento de edição. O primeiro projeto solo de Svilova foi o filme Bukhara (1927), um diário de viagem de filmagens retrabalhadas da diretora que apresenta a diversidade etnográfica e cultural da União Soviética da época. Entre 1939 e 1956, Elizaveta Svilova dirigiu e montou mais de cem filmes e episódios de cinejornais, ela também lecionou no Instituto Lenin.
Outra mulher que se destacou no cinema soviético no Período Entreguerras foi Esfir Shub (1894-1959), pioneira no subgênero “documentário de arquivo”. Entre suas obras mais importantes como diretora estão A queda da dinastia Romanov (1927), Komsomol (1932) e Espanha (1939). Começou sua carreira em 1922, na maior empresa estatal cinematográfica soviética, a Goskino. A sua função era editar trechos censurados de filmes estrangeiros importados, tornando-os “adequados”. Foi neste período que trabalhou ao lado de Sergei Eisenstein.
No ano de 1927, Sergei Eisenstein e Esfir Shub lançaram filmes como diretores, Outubro e A queda da dinastia Romanov, respectivamente. O primeiro foi bem recebido pela crítica, enquanto o segundo foi criticado por ser muito pessoal. A queda da dinastia Romanov é um filme feito de imagens de arquivo e foi motivado pela escassez de registro visual da Revolução Russa, narra os períodos antes, depois e durante a Primeira Guerra Mundial, terminando com a Revolução de Outubro. A diretora ficou mais de dois meses investigando dezenas de milhares de metros de filmes, o resultado é uma grande referência para documentaristas do mundo todo.
“Sergei Eisenstein incansavelmente repetia, para que eu me lembrasse, que o cinema é uma arte, uma nova arte. E um documentário deve ser criado como tal.”
Todos os anos da vida profissional de Esfir Shub foram dedicados ao cinema documental. Ela nunca frequentou um curso, suas “universidades foram outras – a mesa de montagem, os fotógrafos, os diretores do cinema atuado e Dziga Vertov”4, embora discordasse do autor em algumas questões. Para ela, os documentários deveriam ser montados de maneira conceitualmente clara, algo que exige capacidade artística de persuasão, e, ao mesmo tempo, emocionar o público. Ela escreveu: “Sergei Eisenstein incansavelmente repetia, para que eu me lembrasse, que o cinema é uma arte, uma nova arte. E um documentário deve ser criado como tal.”5
A arte não existe extrínseca à política
O que se pode compreender a partir do caso destes artistas do movimento construtivista é que a arte não existe extrínseca à política, foi considerada representação e instrumento de uma revolução socialista libertária capaz de transformar linguagens e sociedades. O desejo era a realização de um cinema conceitual, artístico e, ao mesmo tempo, pedagógico para as classes trabalhadoras. O sonho dos construtivistas desvaneceu com o Realismo Socialista, um movimento de arte imposto pela ditadura stalinista, seus ideais já não eram mais bem-vindos e a liberdade não mais possível.
O documentarista fez de sua trajetória uma busca incessante pela compreensão dos mecanismos e das engrenagens da sociedade contemporânea, através de uma montagem crítica das imagens. Harun Farocki, de certo modo, retomou o projeto político dos artistas soviéticos, que forçadamente tiveram seus sonhos interrompidos.
O movimento construtivista teve fim, mas continuou reverberando até os dias atuais. Desde então, diversos artistas reivindicaram a arte como espaço para se refletir os tempos, fizeram do seu trabalho, instrumento de conscientização política. Nas artes visuais e no cinema, o alemão Harun Farocki6 é um bom exemplo, parece ter herdado as principais ideias defendidas pelo movimento. Ele foi montador e diretor de diversos documentários feitos de imagens de arquivo, assim como Esfir Shub, e impressionou pela maneira singular na qual montou as imagens, muitas vezes desprovidas de qualidade artística. O documentarista fez de sua trajetória uma busca incessante pela compreensão dos mecanismos e das engrenagens da sociedade contemporânea, através de uma montagem crítica das imagens. Harun Farocki, de certo modo, retomou o projeto político dos artistas soviéticos, que forçadamente tiveram seus sonhos interrompidos.
1 STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003, p. 62.
2 Idem, p. 61.
3 Em inglês, não há diferença de gênero para os artigos e a palavra editor.
4 SHUB, Esfir. Zhizn Moya – Kinematograma. In LABAKI, Amir (org.). A verdade de cada um. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 53
5 Idem, p. 60.
6 Harun Farocki (1944-2014) é um dos mais respeitados e profícuos artistas da Alemanha, produziu mais de cem obras artísticas, entre documentários, programas para TV, vídeos e instalações, além de ter realizado uma extensa produção escrita que envolve desde a análise de produções cinematográficas, inclusive as de sua própria autoria, até suas percepções de mundo e uma reflexão teórica sobre as relações de poder que as imagens operam.
Parceria
O texto de Flávia Person é um desdobramento da parceria do Portal com os pesquisadores do projeto Acervos e Arquivos Artísticos em Santa Catarina, Implicações e Conexões, da disciplina Teoria e História da Arte, do Ceart/UDESC, coordenada pela professora doutora Rosângela Cherem. A primeira etapa iniciou com a participação no colóquio “Vanguardas do Entreguerras e Desdobramentos Contemporâneos”, conversas abertas sobre arte, que teve o apoio também da Helena Fretta Galeria de Arte e da Livraria Humana Sebo. Acreditamos na democratização da informação e queremos contribuir, de alguma maneira, para encurtar a distância entre o potente conteúdo da academia e a comunidade do entorno, criando pontes fundamentais à formação crítica.
O texto de Flávia integra a segunda etapa dessa parceria, que se propõe a promover uma ponte entre a universidade e o público interessado em arte.
Flávia Person é graduada em Imagem e Som pela UFSCar e mestra e doutoranda em Teoria e História das Artes Visuais pela UDESC. Atua nas áreas do cinema e das artes visuais, elaborando e desenvolvendo projetos. Dirigiu e produziu o documentário Antonieta, sobre a vida e a trajetória de Antonieta de Barros.