Quando a série ENTREVISTA começou a ganhar forma, o nome do estúdio logo me veio à mente para uma primeira troca. Esse espaço tem o propósito de aproximação e diálogo com arquitetes, artistes, artesãs e designers em, por e de Santa Catarina. ENTREVISTA vai acontecer mensalmente, publicada no Substack e no ArqSC e de forma alternada com a COLUNA.
ENTREVISTA surge da ideia de aprender na conversa e na troca, e de colocar em palavra e registro práticas criativas catarinenses. É também a continuidade de meus estudos em curadoria e editoriais de arquitetura e artes centrados nas trocas entre afeto, palavras e experiências, baseada nas práticas curatoriais de Hans Ulrich Obrist e Raphael Fonseca.
Em 2008, eu e a Maielli Tigre nos conhecemos como estudantes de arquitetura da UDESC em Laguna. Por cinco anos, partilhamos a sala de aula e alguns bolinhos que ela e a (também arquiteta) Aline Peiter faziam quando eram minhas vizinhas. Algum tempo passou, e a Maielli conheceu o Miguel e, juntos, agregaram amor, conhecimento e vontade de criar para fundar o Mart Studio, em 2015. O estúdio junta as habilidades técnicas, ancestralidade e sensibilidade de ambos, lapidando, com muita topia e natureza, projetos de arquitetura, design e artesania que desfrutam do exercício do improviso, como a Maielli e o Miguel mesmo colocam.
Recentemente, fotografei uma série de balanços que eles projetaram para o Jardim Raízes na CASACOR/SC, do Terraço Paisagismo (do também amigo Rodrigo Gheller) e foi a ocasião para começarmos o primeiro diálogo da série. Os balanços disco, cria e balanço de dois são uma amostra do talento e versatilidade do duo, além de o resultado da união da artesania com o faro criativo.
A entrevista aconteceu no começo de Outubro de 2024 via mensagens de texto e áudio e pesquisas no acervo de imagens do estúdio, atravessando do litoral ao meio oeste catarinense.
Quem é o Mart Studio?
Mart Studio – Somos um estúdio criativo multidisciplinar de arquitetura, design e artesania. Projetamos espaços que traduzem histórias, inspirados pela observação cuidadosa do cotidiano. Desenvolvemos ambientes comprometidos com a vida humana e com a natureza, diversos nas possibilidades de interação e que possam ao longo do tempo promover o bem estar na vida das pessoas.
Criamos mobiliários e objetos com desenho autoral que nascem do equilíbrio entre processos automatizados e técnicas manuais, sempre respeitando a essência do trabalho artesanal. Trabalhamos em colaboração com arquitetos, designers e artistas, integrando uma variedade de estilos e influências em nossos projetos. Essa abordagem diversificada permite que o estúdio não apenas expanda seu portfólio, mas também cultive um ambiente fértil que celebra trocas.
Aperfeiçoamos a técnica com o intuito de ampliar as possibilidades. Desenvolvemos habilidades artísticas a fim de expressar e provocar sensações. Não limitamos o traço, a escolha do material ou qualquer coisa. Nosso trabalho é orgânico e plural, porque assim também é a vida. Nosso estúdio foi fundado na primavera de 2015, em Florianópolis, e hoje estamos situados em Catanduvas-SC.
O MART Studio se caracteriza por projetos autorais de design e arquitetura que vinculam natureza, afeto e processos. Como se dá o processo de projeto de vocês? Algum de arquitetura que vocês podem destacar?
MS – Devido à diversidade de demandas com as quais trabalhamos, nosso processo criativo não se restringe a um único padrão, mas tende a ser linear quando atendemos as necessidades externas. Nesses casos utilizamos ferramentas e métodos baseados em estudos e na constante observação de cada experiência que vivenciamos. As etapas incluem identificação da necessidade que acontece através de questionamentos, conversas e visitas; busca de referências – imagens, filmes, sons, objetos, qualquer coisa que represente aquilo que desejamos expressar; contextualização ambiental, social, cultural e histórica, consideramos que um projeto sempre estará vinculado ao ambiente, as pessoas e ao momento, é necessário analisar como se darão essas interações; geração de ideias, onde definimos o conceito e esboçamos propostas; validação e aprovação, acontece por meio de apresentação e discussão, onde garantimos que todas as partes estejam alinhadas; prototipagem, criação de uma representação física de um produto ou de partes dele (ferramenta utilizada principalmente no design); aperfeiçoamento, quando trabalhamos nos ajustes, mais especificamente nos detalhes; execução, é o momento em que o projeto se materializa, seja através das nossas mãos ou por meio de parcerias.
Esse processo, flexível e adaptável, nos permite criar soluções significativas, sempre com olhar e escuta atentos às particularidades de cada demanda.
Um projeto que podemos destacar é uma residência unifamiliar, feita para um jovem casal, que está em construção na Palhoça – SC. Essa casa está imersa numa paisagem exuberante do vale do Maciambú Pequeno. Com planta em “U”, o projeto tem inspiração em elementos da arquitetura japonesa – espaços amplos e interconectados, varandas que se abrem para o jardim interno, painéis deslizantes que dão privacidade. Sentimos grande satisfação e um carinho especial por esse projeto, que foi desenvolvido em colaboração e plena sintonia com os desejos e necessidades dos clientes.
Vocês trabalham com as escalas do objeto e da arquitetura. Como que um se diferencia do outro e como que um se aproxima do outro?
MS – A arquitetura é sempre multifuncional e fala da experiência humana numa escala maior. Se relaciona com o entorno, tem regulamentações, exige planejamento e tem impacto social. É uma prática colaborativa que exige trocas; complexa porque demanda compreensão de diferentes áreas de conhecimento; e conciliadora pois, na maioria das vezes, pretende atender as necessidades e expectativas de um grupo de pessoas. Já o design, na escala do objeto, considera a experiência do usuário em uma interação imediata, direta e pessoal. Ele é concebido para atender a funções específicas, direcionadas a públicos distintos. No contexto da artesania, encontra espaço para o improviso, resultando em criações mais artísticas.
Ambas as práticas se influenciam e se complementam de maneira dinâmica. Surgem de um processo criativo que demanda pesquisa, experimentação e a busca por soluções inovadoras. Além disso, tem a intenção de criar experiências significativas para os usuários, utilizando a estética como meio para transmitir emoção e funcionalidade.
Nos projetos de design, normalmente o Studio produz peças únicas ou vocês trabalham com séries?
MS – Nos dedicamos a criação de peças únicas e pequenas séries. Essa prática possibilita o exercício constante de criatividade e busca fazer uso eficiente dos materiais, reaproveitando e reduzindo o desperdício. Essa mentalidade se traduz em produtos singulares, que carregam histórias e refletem a dedicação empenhada em seu processo de produção.
“Quando temos em mãos a madeira bruta, é possível imaginar e até projetar o desenho final de uma peça, mas o resultado é consequência de uma experiência manual, e, portanto, sensível do trabalho”.
Partindo dos processos para os objetos de trabalho, vocês poderiam comentar um pouco sobre a história, processo e desenho da Gamela em Pé.
MS – A gamela em pé foi inspirada em referências visuais cotidianas de aparadores e gamelas, especialmente aquelas utilizadas como fruteiras. O desenho, rabiscado em croqui, baseou-se no o formato natural de uma peça de madeira, cuidadosamente garimpada. Foi modelada com ferramentas manuais através de processos que buscam intencionalmente evidenciar as marcas do tempo e das mãos. É uma peça artesanal, experimental, que desfruta do exercício do improviso.
Nossa abordagem quando se trata destes pedaços raros de madeira é preservar a sua naturalidade, trabalhando nos acabamentos necessários para que seu uso seja funcional e confortável. Quando temos em mãos a madeira bruta, é possível imaginar e até projetar o desenho final de uma peça, mas o resultado é consequência de uma experiência manual, e, portanto, sensível do trabalho.
A criação da luminária Concha envolveu acaso, observação e transformação. O projeto buscou evidenciar as falhas e ranhuras esculpidas de maneira orgânica pela natureza, através do contraste com a precisão da escultura mecânica.
E sobre a Luminária concha, como esses processos aconteceram?
MS – Trabalhar com luz é uma das coisas que mais nos encanta. Luminárias ajudam a criar diferentes atmosferas nos ambientes, complementam a estética e dão personalidade ao espaço. A criação da luminária Concha envolveu acaso, observação e transformação. O projeto buscou evidenciar as falhas e ranhuras esculpidas de maneira orgânica pela natureza, através do contraste com a precisão da escultura mecânica.
Para isso, trabalhamos inicialmente no desenho de um centro de mesa (ou gamela) de formato circular e arredondado, pois nos daria o melhor aproveitamento da madeira. Com acabamento liso na parte de dentro onde seriam apoiados alimentos ou objetos decorativos, e com uma textura regular, inspirada em conchas, na parte de fora. Quando ficou pronta, observamos que o uso que determinamos para essa peça acabava escondendo o trabalho detalhado e minucioso que idealizamos.
Passamos algum tempo pensando em um novo projeto e, após percorrer por algumas ideias, optamos por fazer uma luminária pendente. Essa nova abordagem permitiria explorar os detalhes em diferentes ângulos, especialmente por estar numa altura próxima do olhar. Voltamos ao projeto, buscamos referências, esboçamos ideias, lapidamos, detalhamos e executamos aquela que nos pareceu mais interessante.
Uma concha, de cabeça para baixo que flutua no ar. No lugar da pérola, luz!
A ideia dessa série de entrevistas é estabelecer um diálogo entre arquitetes, artistes e designers em Santa Catarina. Você tem alguma inspiração local (contemporânea e/ou de outros períodos) para indicar? Alguém que toparia uma entrevista?
MS – Temos inspirações que transitam por essas áreas. Conhecemos e acompanhamos profissionais dedicados, atentos e comprometidos em criar e atender necessidades e expectativas das pessoas. Admiramos e ficamos felizes por compartilhar experiências com alguns deles: Estudioteca Arquitetura, Terraço Paisagismo, Arqo Arquitetura, arquitetas Luciana Lamego e Paula Knabben, Tereza Arte e Design, Pancália.
No entanto, somos seres observadores, por vezes nostálgicos e reconhecemos em nós as práticas diárias daqueles que nos trouxeram até aqui. Nossos avôs que trabalharam na área da construção, que faziam mobiliários, reaproveitavam materiais e tinham oficina em casa. Assim como nós, antes de nós, Eduardo Dutra, artista plástico, escultor, professor, tio. Suas obras estão nas memórias de infância do Miguel. Sua dedicação acadêmica, no aprendizado, ensino e pesquisa, suas habilidades e a escolha de um caminho que compartilha conhecimento nos inspiram e instigam a refletir sobre a nossa jornada.