Cheio de contundências e provocações, o recém-lançado no mercado brasileiro, o novo livro do crítico Hal Foster, “O que Vem Depois da Farsa?” (Ubu Editora) é para quem está interessado na análise e compreensão das complexidades do tempo contemporâneo sobretudo no campo das artes visuais. Não é um livro fácil, porque aponta o fundo do poço, traz à tona o que oprime e deprime. O autor expõe, a cada capítulo, as agruras da ideologia neoliberal que aprofundam, em esfera global, as extremas desigualdades sociais, a precariedade dos empregos, a brutalidade humana, a desfaçatez, a necropolítica. Foster escreve sem piedade sobre terror e transgressão, sobre o 11 de setembro, sobre a crise de 2008, sobre os movimentos Occupy Wall Street, Black Lives Matter, #MetToo, Donald Trump, a era da comunicação com as redes sociais e uma mídia “dispersiva e amnésica”, cita inclusive a “súplica desesperada da vítima do policial, Eric Garner (‘não consigo respirar’)”. Não faltam, portanto, frescor e atualidade.
Voltado aos pesquisadores e profissionais da arte, a leitura se organiza em três partes e 18 ensaios de temas controversos como a produção e trajetória de alguns artistas, curadoria, museus, mercado, feiras de arte. Tendo como pano de fundo a realidade atual, o medo, a paranoia, o kitsch*, Foster compartilha amplo conhecimento em análises que abarcam a literatura, a filosofia, a história, as artes visuais, a arquitetura, o cinema, a economia, a indústria cultural. Em 224 páginas e um índice onomástico que engloba 354 nomes, o leitor mergulha em citações de amplo universo, onde só aparecem magnitudes como Walter Benjamin, o recordista em menções (17 vezes), Harold Bloom, Eric Hobsbawn, Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre, Jacques Lacan, Bertolt Brecht, Rainer Werner Fassbinder, Wim Wenders, Werner Herzog, Antonio Gramsci, Hannah Arendt, Félix Guattari, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Franz Kafka, Fiodor Dostoiévski, Jorge Luís Borges, Marcel Proust, Maurice Ravel, Michael Jackson e Björk – enfim só criadores de alto quilate. O autor também menciona nomes da arena política como George W. Bush, Donald Reagan, Donald Trump (lembrado nove vezes), Benito Mussolini e Adolf Hitler.
Numa envergadura temporal assombrosa são citados muitos artistas, entre eles Édouard Manet, Gustave Courbet, Rembrandt, Velázquez, Yves Klein, Marcel Duchamp (nove menções), Salvador Dali, Andy Warhol, Jeff Koons, Paul Chan, Jenny Holzer, Claire Fontaine, Harun Farochi, o curador Hans Ulrich Obrist, o crítico de arte Clement Greenberg.
Um subtítulo do livro na folha de rosto – “Arte e Crítica em Tempos de Debacle”, situa as chaves do pensamento de um dos mais importantes críticos de cultura da língua inglesa. O panorama é de devastação, o tempo de morte. Só ruínas compõem o cenário contemporâneo, período da história da humanidade cujo começo é impreciso, segundo o autor. “Não tem uma data exata de origem – 1968, 1980, 1989?”, indaga ele, justo no instigante artigo “Exibicionistas”, em que ele fala dos curadores.
O conceito de farsa está na citação de Karl Marx em “O 18 de Brumário de Luís Bonaporte” (1852) sobre a tomada de poder da família Bonaporte em duas ocasiões: “Em alguma passagem Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. No caso, a tragédia ocorre na posse ditatorial de Napoleão, em 1799, e a farsa, em 1851, na usurpação de poder do sobrinho Napoleão III. Para Marx, a repetição dos engodos só é possível porque a burguesia sobrepõe os princípios econômicos aos valores democráticos. “Alarmada pela Revolução de 1848, a classe dominante aceitou outro imperador, uma cópia mais ridícula do que o original”, escreve Foster.
Otimista, o autor vê brechas de revitalização nos movimentos femininos e decoloniais.
Pontos de pressão
Ao trazer a questão para a atualidade, em que uma das nevralgias está na pós-verdade, nos procedimentos de desinformação (fake news) e em contextos de disrupção, a pergunta que mobiliza o autor é sobre o que vem depois da farsa? Nada, responde já no prefácio. “Nada está garantido, tudo é luta.” Nem tudo, no entanto, é niilismo na cabeça forsterniana. Logo, em sequência, ele pensa etimologicamente a palavra debacle. Derivada do francês, ela denota queda, colapso e desastre, mas, na raiz, em sentido literal, aponta o termo libertar. Poderia, portanto, “indicar uma dialética entre romper e fazer diferente, em relação a convenções, instituições e leis”. Como e quando estabelecer rupturas? Para Foster, nas pequenas influências que cada um pode exercer de modo individual, no caso dos artistas, na esfera cultural – universidades, museus, instituições do setor -, reside uma possibilidade de “transformar a emergência disruptiva em mudança estrutural”. Otimista, o autor vê brechas de revitalização nos movimentos femininos e decoloniais.
Dedo na ferida
Se o artista não tiver a coragem visceral de mergulho nas próprias entranhas, sua arte e seu tempo não alcança estatuto ontológico. Neste sentido, museus e o mercado de arte está cheio de ciladas, poéticas edulcoradas de requinte barato ou de discursos que retiram o enigma.
Com o mundo colapsado entre paranoia e selvageria, em que fato e fabulação, verdades e mentiras se confundem, com governos transgressores, pessoas transformadas em refugos, os códigos judiciários sob suspeita, desregulamentações de toda ordem, cabe não esparramar mais bugigangas sem sentido, nem produzir trabalhos artísticos que não nasçam de uma profunda compreensão do tempo atual e da coragem de criar imagens e narrativas a partir do conhecimento de si mesmo e de noções de história, de economia, da comunidade, de outros eus. Se o artista não tiver a coragem visceral de mergulho nas próprias entranhas, sua arte e seu tempo não alcança estatuto ontológico. Neste sentido, museus e o mercado de arte está cheio de ciladas, poéticas edulcoradas de requinte barato ou de discursos que retiram o enigma.
A arte precisa ser conspiradora, deve ser fruto do entendimento sobre o rio podre a olhos vistos de sua própria cidade, a lagoa ameaçada de morte por avalanche de esgoto, as florestas nativas substituídas por pínus, a chuva invadindo as instalações que guardam a memória dos Sambaquis. A catástrofe não está fora da aldeia e nem fora de si mesmo sobretudo quando há mais de 300 mil mortes num país, com quase 5 mil vítimas diárias. No artigo “Conspiradores”, Foster reflete sobre “Rhi Anima”, exposição do artista Paul Chan que defende o “espírito de incompatibilidade”. Também aí, cita o historiador Saul Friedländer que nos primeiros anos da era Reagan pensa as justaposições nazistas de kitsch e morte, um “frisson estético” que “anima um tipo particular de servidão alimentada pelos desejos simultâneos de submissão absoluta e liberdade total”. Na citação de Friedländer, Foster vai no ponto.
Ácida análise
De volta ao pensamento de Foster que se incomoda com a disseminação da palavra curadoria, “um item assíduo das listas anuais das piores palavras; já em 2014, posta na geladeira”. Deplora também, de certo modo, o panorama em que alguns artistas atuam como curadores e curadores que se comportam como artistas, considera deprimente curadorias com pouca relação com a erudição, a crítica e sem noção de serviço público.
“O que Vem Depois da Farsa?” desnuda crueldades e hipocrisias, rende discussão e polêmica. Não à toa, o autor é premiado.
Ao refletir sobre os museus, menciona a incerteza generalizada sobre o que é arte contemporânea, o impasse criado na escala variada dos objetos artísticos e as questões decorrentes em sua exibição e guarda, um problema que não se restringe só aos aspectos arquitetônicos das salas expositivas, mas envolve os artistas, os diretores, os curadores, os críticos, os colecionadores. Por fim, comenta o modelo de museus criados a serviço da economia e do turismo cultural, como o Guggenheim de Bilbao, na Espanha, cujo projeto arquitetônico se sobrepõe à importância de todo o resto. E, pior, adequados à gentrificação humana, ou seja, a construção de prédios monumentais e icônicos, instalados em contextos urbanos decadentes que detonam um processo de deslocamento de pessoas de baixa renda para enobrecer ou elitizar uma determinada área.
“O que Vem Depois da Farsa?” desnuda crueldades e hipocrisias, rende discussão e polêmica. Não à toa, o autor é premiado. Formado em história da arte e literatura de língua inglesa, mestre em literatura de língua inglesa, doutor em história da arte pela City University, de Nova York, merece a orientação da célebre crítica de arte Rosalind Krauss. Edita as revistas especializadas em arte “Artforum” (1977/81) e “Art in America” (1981/87), fundador da editora Zones, da qual é editor até 1992. Dirige estudos de crítica e curadoria do Museu Whitney, de Nova York, leciona no Departamento de História da Arte da Universidade Cornell, em Ithaca. Entre 1991 e 2011, edita o periódico “October”. Desde 1997, é professor no Departamento de Arte e Arqueologia da Universidade de Princeton. Em 1998, recebeu uma bolsa Guggenheim da fundação John Simon Guggenheim. Integra a American Academy of Arts and Sciences e ganha o prêmio Clark, do Clark Art Institute, pela relevância de seus escritos sobre arte. Conquista também a Berlin Prize Fellowship, da American Academy in Berlim.
Por fim, chama a atenção no índice onomástico, o número reduzido de mulheres – essa uma outra questão que expõe a injusta invisibilidade feminina – um outro grave problema que precisa ser atacado com urgência.
Serviço
“O que Vem Depois da Farsa?”, Hal Foster, Ubu Editora, 224 pp., R$ 59,90. Já nas livrarias.
Néri Pedroso, jornalista, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA).
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Outras opiniões sobre o livro:
“Nenhum outro analisa de maneira tão consistente, e com tantas nuances, as trajetórias labirínticas das artes e da mídia nesta era da globalização e do capitalismo financeiro. Ao mesmo tempo, poucos compartilham de sua familiaridade desconcertante com a obra dos mais ousados artistas, romancistas, diretores de cinema, arquitetos, ou seu entendimento crítico dos desafios que eles encaram no nosso atual estado de emergência.” Jonathan Crary, autor de “24/7 – Capitalismo Financeiro e os Fins do Sono”
“Estes ensaios, principalmente os que tratam de arte (e cultura e política e violência e tecnologia) formam um relato coeso e perturbador de uma época histórica catastrófica: a nossa. Hal Foster não nos oferece consolo, mas sim sua hábil e incisiva sabedoria a respeito de como chegamos até aqui.” Rachel Kushner
“O ritmo rápido da prosa de Foster captura o momento histórico frenético sendo explorado, e sua relutância a oferecer respostas simples vem do reconhecimento de que as múltiplas possibilidades de reforma da nossa cultura hoje batem de frente umas com as outras […]. Este livro vívido e eloquente nos convence de que intervenções artísticas provocativas ainda são possíveis.” Oliver Eagleton, “The Guardian”
“Foster traça como os artistas responderam à situação política, à medida que questiona como a crítica de arte deve responder às obras, e, por meio delas, ao contexto atual […]. O título [‘O que vem depois da farsa?’] é pertinente não só porque invoca um grande problema da esquerda – como imaginar um futuro no meio do caos –, mas também porque reflete a qualidade interrogativa dos textos do livro.” Erika Balsom, “Art in America”