Na filosofia clássica, no iluminismo e em algumas cosmologias indígenas do Brasil, o fogo era tanto o símbolo da verdade, como o símbolo da iluminação e da transcendência. A imagem é um complexo sistema óptico e subjetivo que depende de luz e tem evocado diálogos sobre a verdade e existências humanas. Então, fogo e imagem podem ser entrelaçados para discutir o papel incendiário que as imagens de arquitetura (e do mundo) tem nos legado.
Estar constantemente escrevendo sobre o projeto dos outros e emprestando minha voz para paredes, vidros, tijolos e mãos, me faz, às vezes, precisar de um espaço pra escrever sobre as minhas coisas, minhas imagens, minhas paredes, minhas mãos. Resulta que, junto à escrita, o trabalho de fotografia também é um trabalho solitário. Cabem a mim, portanto, trabalhos de um contínuo exercício de empréstimo: emprestar a letra, emprestar a voz e emprestar o olho. Mas, talvez, no desaterrado mar da incerteza, o empréstimo pode ser uma arma de resistência em um mundo de trocas marcadas por dar, pagar, obter, usurpar. Trocas duras que ateiam fogo e que degradam até a destruição.
Coluna
Começo propondo esse espaço de algumas palavras como um campo de experimentação para mim e de conexão com pessoas que queiram ler e debater sobre uma arquitetura que se faz na imagem, na escrita e no espaço. Essa será uma coleção de palavras, links e caracteres na tentativa de colocar um pouco do que eu absorvi no espaço de uns 30 dias – que, às vezes, coincide ser um mês.
Nomeei essa série de textos de COLUNA porque é uma palavra que insiste em sambar pela semântica e tem dias que é vertebral, outro estrutural ou e, habitualmente, jornalística e opinativa. O samba-enredo da COLUNA vai falar de fotografia e imagem, projetos de arquitetura, arte, experiência do mundo, desesperos e muitas maravilhas coletivas. COLUNA vai estar disponível mensalmente no Substack e no Portal ArqSC.
Para produzir arquitetura, uma quantidade imensa de energia que consome o nosso planeta é requerida. Daí que continuar propagando imagens e relatos de uma arquitetura dispendiosa me parece um dos muitos atos de contribuição nas lenhas do apocalipse. O artigo da Nuria Ribas Costa no Failed Architecture fala um pouco sobre a iminência do apocalipse na arquitetura e sobre as ruínas da atualidade. Na entrevista conduzida pela autora, é discutido um apocalipse na sua dimensão cotidiana, que está na esquina, e não mais um presságio do que está por vir.
A iminência apocalíptica traz consigo reflexões para uma arquitetura após conforto, termo chave que a série After Comfort do e-flux tem explorado nos últimos anos. A posterioridade do conforto é justamente a insuficiência dos meios arquitetônicos em barrar o desconforto das crises climáticas e também o questionamento se a centralidade do pensamento em arquitetura pode deslocar-se para outros paradigmas.
Se o desenvolvimento da arquitetura moderna e contemporânea se pautou na busca pelo conforto térmico, acústico, das privacidades e das coletividades, o que nos resta quando ultrapassamos essas linhas do confortável?
Às vezes, parece que têm sido insuficientes os esforços projetuais para mitigar os efeitos das crises climáticas e éticas a partir do design. Nossos corpos em arquitetura vão vivendo um misto de imagens de confinamento e paralisia: um nu ardente de Fefa Lins sendo observado pela vitrine ascética do Edward Hopper. Evoco esse hibridismo de artistas da pintura para pensar a produção de imagens e fotografias de arquitetura em tempos de crises, conforto e apocalipses.
Na década de 1940, os americanos vieram ao Brasil financiados pela sua embaixada com a finalidade de documentar os brises e as soluções de conforto do modernismo tropical. A exposição e livro Brazil Builds (MoMA, 1943) é um apanhado de fotografias ascéticas – assim como as vitrines do Hopper – que vão do barroco mineiro ao modernismo carioca e buscam criar uma antologia da arquitetura brasileira. O livro moldou o jeito que olhamos para nossa cultura arquitetônica e a nossa produção dos últimos quatro séculos. Inclusive, a seleção de obras modernas em grandes centros e o privilégio das arquiteturas coloniais estabeleceram uma seleção canônica da arquitetura brasileira nas décadas seguintes.
Essa documentação e construção da narrativa do modernismo tropical no Brasil pelos olhos do MoMA veio com o custo caro da dominação cultural norte-americana nas décadas de 1940 e 1950, na esteira de Carmen Miranda e Zé Carioca. Brazil Builds, no fim, é uma produção-coleção de imagens que ateou fogo na construção discursiva autônoma do país – propositalmente.
E se a imagem moderna já era uma grande incendiária discursiva, como lidar com as labaredas e regulações de pequenas chamas da era das imagens digitais?
Tecnologias de edição
Desde a década de 1990, as tecnologias de edição mudaram drasticamente o resultado de imagens digitais na arquitetura, moda, publicidade e demais artes criativas. Vocês devem se lembrar da comoção e da chuva preconceituosa que foi a capa do CD Prêt-à Porter, lá em 2003. Na época, os comentários gordofóbicos e racistas se misturavam às labaredas de acusações sobre a edição da imagem, de como o tinham “photoshopado” as celulites, as curvas. Anos após a polêmica, a edição da (importantíssima) imagem de Preta fotografada por Vânia Toledo parecem jogos de criança se comparadas aos inúmeros filtros do Instagram, Tiktok, doses de ácido hialurônico e, claro, dos resultados alcançados com Inteligência Artificial.
A inteligência artificial (AI/IA) mudou nossa concepção de veracidade e foi quando o Papa Francisco II usou Balenciaga, o mundo avisou que não seria mais o mesmo depois dessas tecnologias. Os poderes instantâneos de mudança e personalização que a AI trouxe para os profissionais da imagem e na palma da mão é incalculável, como mostra a última atualização do telefone Google Pixel. Nele, é possível remover e adicionar conteúdo imagético com poucas instruções e sem nenhum preparo técnico. O que profissionais de edição e retoque demoravam dias para executar há uma década, o telefone passa a fazer em segundos. E, se por um lado, a fotografia e edição ficam mais acessíveis com essas tecnologias, por outro, também ficam mais perigosas de serem usadas para fins discursivos, como mostram as imagens da candidata à presidência norte-americana Kamala Harris vestida em uniforme comunista.
Há quem diga que a arte e a fotografia vão morrer com a AI, que não existem mais artistas e fotógrafos. Essas pessoas não entenderam que a Adriana Varejão vive no mesmo mundo que o Lucas Cordeiro e a avatar Magalu, ou que Rosana Paulino costura e fotografa para compor suas obras. Um exemplo de que a AI pode nos mostrar caminhos menos incendiários para as imagens é o trabalho da Dariane Martiól, artista visual finalista do Prêmio AF de Arte Contemporânea 2024. Suas montagens usam inteligência artificial como suporte e ferramenta de bordado, foto-performance, pintura, vídeo, genealogia. Dariane está bem viva e faz a arte (sobre)viver assim como a fotografia vive depois do cinema ou do Photoshop. Os meios mudaram e, com as mudanças, vieram também os alargamentos do sensível.
E nesse alargamento, os dias de apagar fogo de um fotógrafo de arquitetura são, na verdade, dias de explorar técnicas para regular os pequenos raios do sol que entram no sensor da câmera ou reparar as rupturas que uma imagem comercial de arquitetura não suporta: fios, manchas, cabos, pessoas indesejadas, uma luz feia, um elemento fora do lugar.
Na pós-produção de um dos últimos ensaios que fiz, passei cerca de duas horas apagando um ventilador de parede, que não combinava com a imagem. Até os elementos de conforto e de mitigação de temperatura não passam no crivo da limpeza estética. E sim, eu concordo que a imagem esteja melhor sem o ventilador.
É que, assim como informou recentemente a fotógrafa Helène Binet, todas as imagens de arquitetura parecem querer ser iguais. Seja antes ou depois do conforto em tempos de apocalipse, a imagem tem seu próprio ritmo e império. Talvez o que morre com a AI é a ilusão da confiança e da idealização de estabilidade da imagem. Entretanto, quero acreditar que é possível transcender por esse fogo antes de negar completamente seu brilho.