Matéria exclusiva publicada originalmente no anuário ArqSC 10ª edição, escrita pelo jornalista Cristiano Santos.
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A urbanista e ativista social norte-americana Jane Jacobs mudou a visão sobre como devemos analisar os fenômenos urbanos – ficou conhecida por seu livro “Morte e vida das grandes cidades”, de 1961. Para ela, e nada mais atual, o cidadão não deve ser entendido apenas como consumidor passivo de um projeto de cidade imposto. Ele precisa e deve ser ouvido.
Inspirado em outras ações pelo mundo, um grupo criou a Caminhada Jane Jacobs Floripa. Inicialmente, profissionais de diferentes áreas, arquitetura, direito e turismo, se juntaram para colocar em prática a ideia. “Lancei o coletivo junto com outras quatro pessoas, mas muitas se integraram ao longo do tempo. E ele continua sempre aberto”, explica Gustavo Andrade, arquiteto, urbanista e um dos fundadores do projeto catarinense. Sempre baseadas na relação do pedestre com a cidade, a Caminhada Jane Jacobs Floripa tem um objetivo específico para cada ação.
Nesta entrevista exclusiva concedida ao jornalista Cristiano Santos, Andrade fala do empoderamento do cidadão, do surgimento da caminhada e de bons exemplos na cidade.
O empoderamento do cidadão diante da ocupação dos espaços públicos não é um movimento recente, é?
Eu diria que a participação ativa da população na demanda por diversos âmbitos, especificamente na cidade, não é nova, viveu ondas diferentes. Internacionalmente, nos anos 1960, na França, um conceito surgiu chamado Direito à Cidade, criado pelo sociólogo Henri Lefebvre. Nos EUA, também na mesma década, apareceu outro grupo conceitualmente diferente que defendia a participação da população tendo como personagem central a ativista Jane Jacobs. Ela defendia que a população devia ser perguntada quando fosse afetada por qualquer obra de infraestrutura, como a construção de um elevado em Greenwich Village, em Nova York, que ia destruir o bairro. Era uma decisão daqueles urbanistas que estavam no governo decidindo o futuro, voltados para os automóveis, em construir auto-estradas. A principal crítica era de que ia afetar a população no sul de Manhattan. Os moradores organizaram movimentos e impediram a obra.
E como isso ocorre hoje?
Eu diria que a partir da crise norte-americana, em 2007/2008, a arquitetura e o urbanismo se viram numa crise de identidade. A arquitetura do espetáculo, com formas muito sofisticadas, como o Museu do Amanhã, do espanhol Santiago Calatrava, no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que promove uma imagem turística da cidade, pouco tem a ver com as necessidades da cidade. Fica difícil defender, enquanto calçadas seguem malfeitas e ruas sem arborização.
Nos Estados Unidos e na Europa, após este período, apareceram vários coletivos radicalmente diferentes. Com essa crise fiscal, eles não tinham mais dinheiro, os mega projetos urbanos, com patrocínio público privado, entraram em crise. E essa crise impulsionou movimentos horizontais, surgidos das necessidades. Muitos arquitetos já estavam nessa linha crítica.
Como exemplos, um terreno baldio no qual os moradores se organizaram e criaram uma horta de agricultura urbana, um playground no bairro, os parklets, que são essas ocupações de vagas de automóvel, para ampliar um pouco o espaço público, onde ele é deficitário. São vários os dispositivos e essas pequenas intervenções reverberam no seu entorno.
Há bons exemplos na capital catarinense destes movimentos?
Em Florianópolis, a reação da população, os movimentos sociais reativos urbanos, para defesa do interesse público, são antigos. Nos anos 1990, por exemplo, e pouca gente sabe, a Associação de Moradores de Coqueiros se mobilizou para transformar uma área abandonada, conhecida como Saco da Lama, em um parque, hoje o conhecido espaço do bairro. Eles arrecadaram dinheiro para promover, deram uma cara de parque. A prefeitura foi contra, na verdade, mas chegou um momento que não teve mais como impedir.
O real uso da população é muito importante para a ampliação destes movimentos…
Sim, e podemos falar do Parque da Luz, por exemplo, no Centro de Florianópolis. Eu tenho uma teoria de como melhorar aquele espaço baseada em uma proposta da Jane Jacobs. Ela conta a história de um parque em Nova York que teve um crime muito conhecido pela população, ninguém ia, ficou abandonado. O mais interessante da metodologia de intervenção é que não é baseada em obras e sim no uso, e defende que deu certo neste parque depois que um grupo de moradores começou a fazer caminhadas no local. Primeiro, um pequeno grupo, depois outro. Com o tempo, não foi preciso se organizar em grupos, de uma hora para outra o espaço passou a ser ocupado. O mais interessante desse caso foi a reabilitação.
Podemos dizer que o Centro de Florianópolis passou por algo semelhante nos últimos anos?
O Centro de Floripa mudou bastante, acabou tendo um movimento noturno. Tenho um discurso urbanístico que tem a ver com a mistura de funções, não se reduz a melhoria somente das calçadas, depende de uma mistura que tem habitação nos andares superiores, não só no horário comercial. É importante que não seja monofuncional, exclusivamente residencial ou comercial, separar essas funções dificulta a mobilidade do pedestre.
Jane Jacobs desenvolveu o conceito chamado “olhos da rua”. Como é que a gente deixa a cidade mais segura? Violência é mensurável de maneira objetiva, medo não é a mesma coisa. As pessoas se sentem com medo no Centro de Floripa porque ele fica vazio à noite, todos os escritórios fechados. É preciso essa movimentação em outros momentos do dia.
Como surgiu o Coletivo Caminhada Jane Jacobs?
Foi criado a partir de um grupo de amigos, de formações profissionais diferentes, em comum o gosto de caminhar pela cidade. A gente teve uma expansão muito grande por meio das mídias sociais. A partir do Facebook, a visibilidade fez com que se integrassem várias pessoas que pensavam e defendiam o interesse do pedestre e estavam dispersas.
A gente quer promover o pedestre na cidade, mas indo além da melhoria das calçadas. A gente se interessa por esse modelo de cidade que é compacta, que mistura usos, nos interessa o urbanismo contemporâneo coletivo de pedestres, como transformar esses temas que estão latentes, num percurso caminhável, numa caminhada lúdico-reivindicativa, para debater um tema. Tentamos uma reflexão conjunta sobre os temas escolhidos, os problemas dos pedestres, apresentamos ideias e reverberamos.
Entre as ações, chama a atenção uma caminhada feita em homenagem à Antonieta de Barros (ela foi a primeira deputada de Santa Catarina e primeira deputada negra do Brasil, além de grande defensora da educação e de uma sociedade mais justa, lutando contra o preconceito racial e de gênero). Como foi a escolha deste tema?
A Caminhada Antonieta de Barros foi muito interessante porque uniu dois temas urbanísticos: a gentrificação daquela parte do Centro de Florianópolis, o uso da escola que leva seu nome e como podemos interferir nesse processo. Outra questão foi a situação da população negra e pobre naquela região, onde historicamente, desde o século 19, se concentrava ali. O Rio da Bulha (hoje na região da Avenida Hercílio Luz) era onde se despejavam os dejetos quando Floripa não tinha saneamento básico, as pessoas não tinham esgoto, não tinham instalação sanitária em casa. Os empregados ou os escravos despejavam ali os dejetos da cidade. E era o local onde esta população morava. No começo do século, com o movimento higienista, a urbanização do rio, que foi canalizado, deixaram de se jogar os dejetos, e este moradores foram expulsos. A gente queria fazer essa discussão,incluindo a história dessas pessoas.