Certamente você já viu uma peça de mobiliário que se parece com outra vista antes. Um objeto com cores ou linhas que lembrasse a outro de um lugar que você não se lembra. E, quanto às pinturas, já se perguntou por que um mesmo tema pode ser representado de maneiras tão diferentes ao longo de vários séculos? O historiador austríaco Fritz Saxl realizou um estudo sobre iconografia e o expôs em 1947 numa palestra a estudantes da Reading University, Inglaterra, o qual chamou de “ciclo vital das imagens”. Diz Saxl que “as imagens que têm um significado especial em seu momento e lugar, uma vez criadas, exercem um poder magnético de atração sobre outras ideias de sua esfera, que podem ser esquecidas de repente e ser lembradas de novo séculos depois de seu esquecimento” (SAXL, 1947).
Este mesmo estudo, se aplicarmos à arquitetura e ao design, nos ajuda a entender os movimentos estéticos que nascem, morrem e revivem mais tarde com um novo aspecto, às vezes nos permitindo perceber a relação com seu ponto de origem, mas em outras não, tendo em vista que já estão tão transformados que só através de uma investigação é possível descobrir seu gênesis. Quando esta relação com a origem já não pode ser percebida, diz Saxl que ocorreu a “morte de uma imagem”.
O martírio de São Sebastião
Para exemplificar o exposto nos parágrafos anteriores, faço a seguir uma exposição sobre a evolução iconográfica de um tema muito recorrente na história da arte, o martírio de São Sebastião, à luz desta teoria de Fritz Saxl.
Para alguns historiados, o São Sebastião cristão tem relação direta com o deus grego Apolo.
São Sebastião (século III d.C.) era de uma família nobre, da Gália, e antes de ser considerado um santo pela Igreja Católica na Idade Média foi um oficial da guarda do imperador Diocesano e gozava de muito prestígio e confiança. Ele era cristão e por ter pregado a outros oficiais que se converteram à fé, desagradou ao imperador que ordenou que São Sebastião fosse martirizado. O amarraram a uma árvore e lhe dispararam várias flechas. Apesar disso, esse não foi o motivo de sua morte, como afirma a Lenda Dourada: “Depois que foi flechado, o deixaram lá e foram embora. Foi resgatado por mulheres piedosas, e depois de se recuperar falou novamente com o imperador sobre a perseguição aos cristãos. O imperador ficou furioso e ordenou que o matassem com paus e o jogassem na cloaca máxima de Roma.”
Nas principais fontes literárias que são os Atos dos Mártires, a Lenda Dourada (1) e as passagens bíblicas se encontram elementos importantes que serviram como fonte de consulta a artistas em diferentes épocas para representar o evento em suas pinturas. Apesar de terem basicamente as mesmas fontes de consulta, com o passar dos séculos o tema foi representado de forma muito diferente, sendo modificado conforme os padrões estéticos, morais, religiosos e evolutivos de cada momento.
Muitos séculos antes da era cristão, na mitologia grega, o deus Apolo era considerado o deus da beleza. Também era o deus dos atletas, porque instalou os Jogos Pito, que destacam os bons atributos físicos atléticos de seus participantes. No mito grego, por pelo menos duas vezes, Apolo aparece usando o arco e a flecha para realizar proezas importantes: ao matar a cobra Píton, depois de ser enganado por uma ninfa, e ao matar a Ticio a flechadas por ter abusado de sua mãe. Por excelência, Apolo era o deus das flechas.
Em pelo menos dois momentos importantes do mito, a árvore aparece em sua história. Primeiro ao se vingar de Marsias quando este desafiou Apolo sobre suas habilidades musicais. Saindo vencedor, Apolo aplicou uma punição a Marsias, esfolando-o vivo e pendurando-o em uma árvore para perecer. O segundo momento refere-se a Daphne, uma ninfa por quem Apolo se apaixonou, mas cujo pai impediu de se relacionar com o deus e, por esse motivo, a transformou em um loureiro.
Se reconhecem dois elementos fundamentais em comum entre o mito grego e o mártir cristão: a árvore e as flechas. Para Saxl o mito da antiguidade grega foi reinterpretado (consciente ou inconscientemente) pelos artistas a partir da Idade Média pelo poder que a iconografia pode exercer. O ícone cristão foi amplamente representado e passou por muitas mudanças ao longo dos séculos. Nas diferentes representações ao longo do tempo, percebe-se a diferença entre quem buscou primordialmente a beleza plástica, e quem se ateve estritamente à mensagem mística.
Como pode ser visto na figura 1 do tríptico pintado em 1370 d.C., São Sebastião aparece com o corpo coberto de flechas e cercado por seus carrascos. Nesta obra estão escritas palavras de Jacobus de Voragine (2), na Lenda Dourada, que dizem que “ele se torna um porco-espinho por causa da quantidade de flechas”. Este texto de Jacobus foi a base da primeira concepção estética seguida pelos artistas, quase que fielmente, para começar a representar o mártir, que até então nunca tinha sido pintado. Os atributos da beleza física não importavam, mas sim o sofrimento e a resistência do santo.
Do sagrado ao profano
Na metade do século XV, com os ideais do Renascimento, ocorre a primeira grande mudança na representação do mártir. Como a pesquisadora espanhola Maria Condor disse em sua palestra apresentada no Museu do Pardo ” São Sebastião, o Apolo Cristão”, na iconologia o santo “vai do sagrado ao profano; São Sebastião rejuvenesce, despe-se, torna-se uma escultura enquanto ainda é uma pintura, torna-se pagão, sedutor, homoerótico, mas ainda permanecendo um santo. Torna-se um paradigma de beleza enquanto permanece um objeto de adoração”. O interesse dos artistas renascentistas pelos ideais clássicos suscita uma intensa pesquisa para obter a expressão de uma beleza ideal, uma beleza clássica. Elementos significativos do mito grego são então resgatados, além das características típicas da arte clássica, como o corpo atlético de formas e proporções perfeitas, os elementos construtivos da arquitetura clássica presentes na cena de fundo ou emoldurando o santo, a perspectiva altamente valorizada e as características faciais típicas da escultura clássica. Outro aspecto transformador na forma de representação de São Sebastião a partir do Renascimento foi o resgate das características de personalidade do mito grego. O Apolo da antiguidade que sempre tentou a mulheres e a homens, dá então origem à figura andrógina e altamente sensualizada. O corpo nu que anteriormente se mantinha no segundo plano em relação a todo o fardo do sofrimento imputado no martírio, agora ocupa o centro do palco. O nu era para o artista renascentista sua maneira de expor sua habilidade e seu conhecimento da escultura antiga, por exemplo, as pinturas das figuras 4 e 5.
Através do exemplo do tema Martírio de São Sebastião, o que Saxl disse em seu conceito de “continuidade e variação” pode ser percebido com muita clareza. É o ciclo de vida de um ícone. Do tipo que representa a resistência da fé cristã, passado por mutações nas quais o aspecto místico, apesar de presente, dá origem ao carnal, até chegar ao ponto em que a referência total do significado do martírio está quase perdida, como pode ser percebido na Figura 6.
Nos séculos XVIII e XIX, há o declínio do tema, o mártir quase não é mais representado. Antes desses séculos, já havia um São Sebastião desprovido de todo caráter místico. Citando Maria Condor mais uma vez, “de mártir não tem quase nada. É um ícone homoerótico, parece cada vez mais jovem, sem carrascos, laico, cada vez menos flechas e menos feridas. Ele não tem nada além de uma flecha. Porém a flecha bem no coração e nas mãos implica que existe uma ambiguidade entre as flechas do martírio e as flechas do amor, tornando-se quase cupido (pois, inclusive, há iconografia de cupidos amarrados em uma árvore e mulheres jogando flechas para se vingar)”. Esta versão erotizada de São Sebastião, fundida com o mito grego Apolo pode ser percebida na pintura da figura 6.
Se não fosse a continuidade da veneração do santo pela Igreja Católica, poderíamos considerar, de acordo com o “ciclo de vida das imagens” de Saxl, a morte de uma imagem quando olhamos a pintura da figura 6?
A teoria de Saxl diz que as imagens têm vida: elas passam por um ciclo de vida de mudança, movimento e renovação, forças opostas ao longo do tempo. As influências da arte de séculos anteriores podem ser percebidas até a atualidade, porém transformadas. Ao pesquisar uma obra de arte, o fato de compreender a história das imagens representadas dará sentido ao que se aprecia e aumentará a capacidade de interação entre o expectador e a obra.
(1) e (2) – A Lenda Dourada (em latim, Legenda aurea), é uma compilação de relatos hagiográficos recolhidos pelo dominicano Santiago (ou Jacobus) de la Vorágine, arcebispo de Gênova, em meados do século XIII. Inicialmente intitulado Legenda sanctorum (Leituras sobre os santos), foi um dos livros mais copiados durante o final da Idade Média e ainda hoje existem mais de mil exemplares manuscritos. Com a invenção da imprensa, dois séculos depois, sua reputação se consolidou e inúmeras edições impressas surgiram antes do final do século XV. O texto original, escrito em latim, reúne leituras sobre a vida de cerca de 180 santos e mártires cristãos de obras antigas e prestigiosas: os próprios Evangelhos, os apócrifos e os escritos de Jerônimo de Estridon, de Cassiano, de Agostinho de Hipona , Gregorio de Tours e Vicente de Beauvais, entre outros.
Bibliografia:
SAXL, Fritz: Continuidad y variación en el significado de las imágenes en: La vida de las imágenes.
FRANCO LLOPIS, B.; MOLINA, Á.; VIGARA ZAFRA, J. A.: Imágenes de la tradición clásica y cristiana. Una aproximación desde la iconografía. Madrid, Editorial Universitaria Ramón Areces, 2018.
Outras fontes de consulta:
– Ciclo de conferencias del Museo del Prado. Conferéncia:” San Sebastián, el Apolo cristiano”, impartida por María Condor el 13 de enero de 2018. – disponible en Youtube, en el canal del museo aqui.
Museu Del Prado
Museu Diocesano
Origem das imagens:
https://www.museodelprado.es/coleccion/
https://www.museothyssen.org/coleccion/artistas/bronzino/san-sebastian
https://www.nationalgallery.org.uk/
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