No momento em que vivemos, as chamadas de vídeo passaram a fazer parte do nosso cotidiano, tornando-se um dos principais meios pelos quais nos relacionamos com quem não podemos nos encontrar presencialmente. Diferente de outras formas de contato virtual, como áudio ou texto via aplicativos de comunicação, as chamadas de vídeo nos proporcionam a sensação de estarmos vivendo uma relação momentânea próxima, verdadeira e afetiva. Provavelmente, essa percepção é ocasionada porque podemos ver o rosto da pessoa com quem conversamos, podemos reagir as suas expressões e aos detalhes específicos de sua face, podemos ver certos trejeitos, detalhes de seus cabelos e adornos. Esses elementos constituem a cabeça, uma das partes do corpo humano que, em praticamente todas as culturas, nos permite identificar aquilo que constitui o que podemos considerar como marca importante de nossa singularidade.
A cabeça é a parte do corpo humano mais reproduzida enquanto imagem, basta contarmos os inúmeros relevos gravados nas moedas ou as impressões em selos. Ela fascinou muitos artistas e se apresenta como membro importante para diversos rituais religiosos. Tentar transformar a cabeça em objeto de culto religioso ou artístico foi uma prática importante em diferentes épocas. No Renascimento, por exemplo, os estudos antropométricos fizeram parte dos interesses de Leonardo da Vinci e Albert Dürer. Os dois artistas gostavam de estudar a cabeça humana de diversas maneiras, sendo elas simétricas ou disformes. Para eles, a cabeça era a parte mais importante dos estudos relacionados às proporções corporais, tendo como objetivo alcançar a beleza através das medidas da cabeça, considerando também que ela servia como uma forma de conhecer as diferentes fases da vida e os distintos tipos de emoções humanas.


Os estudos da antropometria da cabeça não deixaram de ser um problema para os artistas ao decorrer dos anos. Mesmo as vanguardas do século XX, cujo interesse não era o corpo humano ou os assuntos da estrutura orgânica, as cabeças estiveram presentes. Vejamos o caso de dois artistas russos engajados na estética construtivista: Naum Gabo (1890-1977) e Alexander Rodchenko (1891-1956), onde as cabeças são interessantes como um tipo de montagem, pretexto para investigar materiais, experimentar e construir novas visualidades.
Construtivismo
Naum Gabo e Alexander Rodchenko estiveram vinculados ao movimento que se desenvolveu após a Revolução Bolchevique de 1917. A denominação construtivista surge de uma exposição feita em janeiro de 1931 em Moscou, em março do mesmo ano Rodchenko e sua companheira Varvara Stepanova (1894-1958) criaram o Programa do Primeiro grupo de trabalho construtivista. A palavra construção esteve em voga em alguns grupos de artistas do período entre guerras, para muitos deles a arte deveria estar vinculada às diversas formas de modernização como a indústria, ciência e tecnologia. Assim, o uso de materiais utilizados nas fábricas como metal, ferro, vidro, era corriqueiro na construção das obras de arte. A ideia de “construção” também estava associada ao projeto de desenvolvimento da União Soviética. A maior parte dos artistas construtivistas questionavam os principais meios da arte, como a arte de cavalete que para eles estava associada ao individualismo burguês. Alguns artistas envolvidos com o construtivismo não se reconheciam como artistas, se denominavam construtores ou pesquisadores.
Alexander Rodchenko
Alexander Rodchenko foi motivado por alguns desses pensamentos. Como a maior parte dos artistas de vanguarda ele tinha o propósito de criar um novo modelo de arte. Seu primeiro ponto de mudança estava relacionado à cor e à pintura, e sua intenção era reduzir a pintura as cores básicas como fez na obra Pura cor vermelha, Pura cor amarela, Pura cor azul (1921) na qual criou um tríptico com telas pintadas de uma só cor. A ideia de redução da pintura foi inspirada nas obras de Kazimir Malevich (1879- 1935) e foi um dos aspectos que retornam na produção de seus cartazes e fotografias.

A antropometria como questão de Rodchenko, se expressa antes de tudo em suas fotografias, onde explora as medidas como na obra Escadas (1929) onde o corpo de uma mulher se exibe centralizado em meio a diversas linhas de uma escadaria. As linhas atravessam em uma diagonal o corpo que é enquadrado em um ângulo incomum para o período. O corpo aparece geralmente vinculado às linhas da arquitetura ou construído pelos padrões geométricos, sendo que para Rodchenko a linha era um elemento básico, uma espécie de carcaça ou esqueleto. A linha, no entanto, deveria ser realizada com precisão, traços feitos com régua. Alguns construtivistas acreditavam que o desenho de linhas feito à mão livre poderia ser associado ao ornamento, sua função era apenas decorativa, crítica que aponta para o caráter racional da proposta.

Junto com as linhas, as cabeças também aparecem nos seus cartazes de publicidade, geralmente a partir das suas próprias fotografias recortadas e coladas em uma composição inusitada. Podemos observar esses aspectos na famosa fotomontagem de propaganda da editora Lengiz ,que traz Lilya Brik (1891-1978) com a mão na boca, dentro de um círculo ao lado de uma composição com outras formas geométricas, linhas, cores puras e palavras escritas. A cabeça é um elemento primordial nas montagens de Rodchenko, sendo exibidas em seus trabalhos publicitários, fazendo parte de uma composição gráfica.
Naum Gabo
Outro artista que se aventurou com os experimentos da cabeça foi Naum Gabo, que apesar de ter relações com os construtivistas, também teve longa vivência com artistas da vanguarda do entre guerras por toda a Europa. Gabo e seu irmão Antoine Pevsner (1884-1962) que também era artista reconhecido no meio das vanguardas, criaram o Manifesto Realista defendendo a importância de uma mudança na cultura russa. Acreditavam que a arte deveria ser para a apreciação do povo e não deveria conter abstrações superficiais, nem servir apenas para fins propagandistas como era o caso do realismo socialista. Para ambos “Estados, sistemas políticos e econômicos morrem sob o impulso dos séculos: as ideias desmoronam, mas a vida é robusta; ela cresce e não pode ser rasgada, e o tempo é contínuo na verdadeira duração da vida.” (Trecho do Manifesto Realista de 1920)
Sua problemática estava voltada a desenvolver formas mais eficientes que perdurariam o tempo, promovendo a arte cinética. Esses pensamentos estão relacionados à série de cabeças construídas (1916) de Naum Gabo, cujas esculturas não possuem massa, sendo apenas chapas de metal ou madeira que se entrelaçam como linhas estruturais. Refutando a massa na escultura, acreditava que com materiais baratos e reutilizados era possível produzir o mesmo efeito no objeto. A primeira cabeça construída foi criada com a lataria de um avião, depois dela foram criados diversos modelos com materiais diversos. Nessas cabeças confluem a estrutura básica dos estudos da antropometria da cabeça. Nelas avistamos as linhas que criam a arcada, a sua forma oval, os riscos da face que não são detalhados e a massa que é constituída da sombra dos materiais vazados.
Apesar de Naum Gabo e Alexander Rodchenko seguirem padrões, estruturas esquemáticas e racionais estabelecidas por uma perspectiva construtivista, seus trabalhos são carregados de conceitos relacionados à precisão e a geometria. Em Rodchenko isso se revela através de suas cabeças recortadas e sobrepostas às formas geométricas, embora as expressões humanas da face transbordem das linhas. Nas obras de Naum Gabo observamos o inverso, a tentativa é transformar as características da cabeça humana em forma, em linhas e sombra, elementos que sobrevivam ao tempo. De todo o modo, os dois colocaram a cabeça no centro do estudo do corpo. Este não seria um modo reprimido de fazer voltar os traços daquilo que seria algo que seguia sendo um aspecto tão importante para pensar nossa humanidade?
Parceria
O texto de Kethlen Kohl é um desdobramento da parceria do Portal com os pesquisadores do projeto Acervos e Arquivos Artísticos em Santa Catarina, Implicações e Conexões, da disciplina Teoria e História da Arte, do Ceart/UDESC, coordenada pela professora doutora Rosângela Cherem. A primeira etapa iniciou com a participação no colóquio “Vanguardas do Entreguerras e Desdobramentos Contemporâneos”, conversas abertas sobre arte, que teve o apoio também da Helena Fretta Galeria de Arte e da Livraria Humana Sebo. Acreditamos na democratização da informação e queremos contribuir, de alguma maneira, para encurtar a distância entre o potente conteúdo da academia e a comunidade do entorno, criando pontes fundamentais à formação crítica.
O texto de Kethlen integra a segunda etapa dessa parceria, que se propõe a promover uma ponte entre a universidade e o público interessado em arte.
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Kethlen Kohl é Doutoranda em Artes Visuais na Universidade do Estado de Santa Catarina (CEART-UDESC) e Mestre em Artes Visuais pela mesma universidade. Cursou especialização em História da Arte na Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE e é Graduada em História na mesma instituição. Atua como pesquisadora, curadora e professora. Atualmente vive e trabalha na cidade de Joinville – SC.