Digno de atenção, sensível e apreciável, adjetivos sinônimos da palavra notável, são adequados à produção e à trajetória do artista Ricardo Ramos, lageano nascido em janeiro de 1964, morador da Ilha de Santa Catarina, e um dos mais significativos nomes do cenário de artes visuais de Santa Catarina. A exposição “Sobre Minha Mãe”, aberta até 23 de abril, no Museu Victor Meirelles, em Florianópolis (SC), reúne pinturas, fotografias e objetos criados entre 2019 e 2022 a partir do descarte de bulas, cartelas e embalagens de medicamentos usados por Zilda S. Ramos, 91 anos, mãe do artista que sofre com Alzheimer e participa da mostra com obras produzidas por ela entre 2008 e 2017.
A curadoria de Juliana Crispe, o texto crítico de Fernando Boppré e a inserção da mostra na agenda de uma das mais importantes instituições de arte do Brasil, na casa onde viveu Victor Meirelles (1832-1903), configuram uma legitimação que dignifica ainda mais um currículo pontuado de exposições coletivas e individuais expressivas. Por sua envergadura, nos três grupos de obras do conceito expográfico de “Sobre Minha Mãe” destacam-se as 14 pinturas figurativas. Vigorosas, feitas em grandes folhas (190 x 135 cm em média) compostas a partir de bulas, o artista reproduz a imagem da mãe em 14 peças em que ela aparece em diferentes figurinos usados em passeios pelo centro de Florianópolis.
Enquanto as embalagens acolhem um conjunto de fotografias em que Zilda aparece em cenas performáticas, na intimidade do lar, as cartelas servem ao tridimensional com obras que impressionam pela simplificação, leveza, expansão e curiosos efeitos óticos. Insubordinados, esses objetos em diferentes formatos às vezes escapam da parede, flutuam no ambiente, ganham o chão, ousam ser belos num contexto em que a beleza é defenestrada. Florais e alegres, os trabalhos de Zilda afirmam-se e dialogam com o todo em uma expografia límpida, em que as telas respiram e convidam à reflexão sobre um tema raro no universo das artes visuais de Santa Catarina, a velhice. Pela coragem do artista Ricardo Ramos, pela potência das obras e da montagem, inegavelmente é uma das exposições mais interessantes que se dá no entrecruzamento de 2022 e 2023.
Graduado em desenho e em artes visuais e pós-graduado em pintura pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), Ramos cursou pintura mural, pintura e desenho na Faculdade de Belas Artes, na Universidad Complutense de Madri, na Espanha. O currículo demonstra uma constante inserção no circuito de arte nas três últimas décadas, entre as quais destacam-se a participação no 1º Salão de Artes de Itajaí (1992), o 2º Guinter de Pintura no MAC/SP (Museu de Arte Contemporânea/SP/1995) e a mostra na Galeria Universidad Complutense de Madri, na Espanha (1996).
Mais recentemente, entre outras realiza “Sobre Minha Mãe” (2021), na Galeria do Sesc, 2021, Concórdia (SC); “Demasiadamente Humano” (2019), no Tralharia Café Bar, “Sobrevoo” (2016/17), na Sala Martinho de Haro do Museu Histórico de Santa Catarina e “O Eu e o Outro” (2005), na Galeria Municipal de Arte Pedro Paulo Vecchietti, as três em Florianópolis.
Nesta entrevista exclusiva, o artista Ricardo Ramos aborda a difícil condição de um artista em Santa Catarina e a singularidade dos guetos do circuito na Capital, comenta a delicada relação com a mãe e o tempo pandêmico, dos entrelaçamentos entre vida e obra, fala dos procedimentos adotados na criação dos trabalhos. “Ser artista no Brasil é difícil. Assim, ser artista em Santa Catarina é mais difícil ainda. Faltam recursos e legitimação para a maioria deles, consequentemente pouco acontece”, diz ele que compreende a própria profissão como “sempre uma coisa de alma, de precisar ser. Se não, você desiste e vai viver outra vida”.
Carecemos de legitimação, que é o artista estar em sintonia com produtores e curadores para que as coisas aconteçam. Há poucas ações voltadas às produções locais e, quando ocorrem, favorecem menos da metade do que se produz. É a construção parcial da história da arte.
O que é ser um artista em Santa Catarina?
Ricardo Ramos – Há alguns pontos bem importantes e problemáticos. Ser artista no Brasil é difícil. Assim, ser artista em Santa Catarina é mais difícil ainda. Faltam recursos e legitimação para a maioria deles, consequentemente pouco acontece. Os incentivos são mínimos e as ações de Estado não nos favorecem. Não quero dizer que aqui não existam pessoas que vestem a camisa e lutam por mudanças, mas essas dependem de outras esferas, como a federal que é detentora de políticas publicas que dão o rumo para ações efetivas. Carecemos de legitimação, que é o artista estar em sintonia com produtores e curadores para que as coisas aconteçam. Há poucas ações voltadas às produções locais e, quando ocorrem, favorecem menos da metade do que se produz. É a construção parcial da história da arte. Acho maravilhoso que o Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura exista, mas precisamos de mais ações. Quanto mais editais, mais artistas são beneficiados e mais eventos culturais estarão disponíveis à comunidade. Fora o Elisabete Anderle e o Salão Nacional Victor Meirelles, os editais locais estão muito aquém das necessidades do artista para viver e manter o ateliê com materiais para seu trabalho. A oferta de R$ 1 ou 2 mil muitas vezes não supre a elaboração de obras que possivelmente custou mais ao artista. Outro empecilho de alguns editais é o excesso de exigências documentais e burocráticas. A maioria das pessoas com quem conversei não se inscreveu na última edição do Salão Victor Meirelles por achar complicado e trabalhoso. Assim, ótimos trabalhos são eliminados e não são vistos ou analisados pelo corpo curatorial. Há ainda o fato de que a população de um modo geral não frequenta salas de exposição, fundações e museus. É sempre coisa de gueto, grupo de afins que vão e sabem sobre o mundo das artes. Quando há pessoas fora da bolha, é porque estão ligadas ao artista, aos familiares e tal. A publicidade dessas agendas deveria partir do Estado, ampliando informações sobre as mostras e salas expositivas à comunidade, fazendo esses espaços interessantes para o público, além de intermediá-los aos institutos de educação, tornar a ida ao museu um passeio habitual e corriqueiro. Seria bacana o artista poder bancar sua arte, mas não é assim que funciona, a maioria não tem esse cacife. Faltam-nos marchands, aqueles que intermediam a arte com possíveis compradores. O marchand que idealizo é aquele que abraça a causa do artista, promove-o em exposições e feiras. Usa o nome da galeria para mobilizar e intermediar eventos junto a empresas, tirando encargos do artista. Isso aqui não acontece. Então, ser artista é sempre uma coisa de alma, de precisar ser. Se não, você desiste e vai viver outra vida. Espero que com esse governo que começa em 2023, as coisas mudem, facilitem e ampliem a vida cultural das cidades catarinenses e do Brasil afora.
Vida e obras entrelaçadas – essa exposição afirma um dos paradigmas da arte contemporânea. Fale um pouco sobre Zilda, a sua mãe, e sobre você em relação à Zilda?
Ramos – A exposição “Sobre Minha Mãe” é um divisor de águas. Sempre me vi como protagonista do meu trabalho. Nunca falei do outro. Digo isso sem pretensão, é só uma observação. Sempre falei de minhas agruras e dificuldades, desejos e sexualidade, uma maneira que achei de ser eu. Então, nesse momento em que estamos vivendo uma história muito, mas muito intensa, Zilda veio espontaneamente reivindicar esse protagonismo. Temos 13 anos desse nosso “reencontro”. Sou o cuidador da mãe que sofre com Alzheimer em que sua memória está em acelerada regressão, tem problemas no coração, refluxo sanguíneo na válvula mitral. Assim, temos dias menos gozosos e leves. Minha sorte (e a dela) é que a mãe é muito boa gente, tem alegria no viver, quer participar, quer acontecer, brincar, dançar, adora estar na rua. Eu sou aquele que calhou de estar aqui, facilito seu dia a dia e ela ajuda o meu. Assim, continuo com vida e obra entrelaçadas, pois quando falo de minha mãe, falo de mim também.
Sobre o processo de criação: teve algum medo de ser piegas ou isso não ocorreu em razão da clareza do que estava a ser dito?
Ramos – A primeira coisa que flui no criar é uma intuição, e ela não viaja sozinha, depois vai se elaborando, agrega (coloca) e lapida (tira) até conseguir um resultado no mínimo satisfatório. O olho nos dá, pelo olhar se sabe se o trabalho está finalizado, o que ele tem ou não para apresentar. A respeito desta exposição, em momento algum isso passou pela minha cabeça. Sabia todo tempo que estava criando o registro de uma história, a nossa história. Claro que sou cuidadoso, pois que certas vivências eu não traria à tona, a público. Tem coisas que são nossas. Outras, posso dividir com as pessoas e, ainda, respeitar a intimidade e individualidade da mãe. Ali não tem nada forçado.
Os materiais adotados já foram incorporados por outros artistas como Asp – só para citar um exemplo. Como se dá esse processo na escolha? A repetição de um mesmo material (bula e caixas de remédio) chega a ser uma preocupação ou isso não importa?
Ramos – Primeiro vale dizer que material de reaproveitamento para criação artística sempre ganhou minha atenção e muitas vezes dá um suporte único e diferenciado para um trabalho. Já trouxe material para casa que não deu em nada. Na famosa limpeza de final de ano, descartei. Mas no geral tenho algum resultado. Tenho um trabalho que fiz do aproveitamento de uma embalagem que o Teatro Álvaro de Carvalho (TAC) descartou, uma caixa baixa, como aquelas de camisa, só bem grande, 190 x 150 cm. Trouxe na hora em que vi, pintei em cada um dos lados um rosto grande apresentado em Florianópolis, na Galeria Municipal Pedro Paulo Vecchietti, na exposição “O Eu e o Outro”. Noutro momento, achei uma série de plantas baixas, de diferentes tamanhos, novas e perfeitamente dobradas. Imaginei ser o resultado de uma reunião malsucedida. Frustrado, o arquiteto enfia-as na fresta entre um poste e um cano. Quando vi, logo me interessou. Desenhei nelas. Minha série “Miss Godê”, pintadas nas tampas e potes plásticos usados para misturar tinta, mostram também o quanto se pode evitar no descarte, transformando o lixo em uma peça de arte. É uma saída contemporânea de consciência ecológica. Voltando a essa exposição, com uns cinco anos no papel de cuidador, percebi um rico material descartado mensalmente. Com alguma variação de ajustes dos médicos, a mãe toma a cada mês uns 17 medicamentos, o que representa 17 caixas, 17 bulas, e cerca de 50 cartelas (blister). No ateliê, depositei em três caixas distintas as bulas, as embalagens e as cartelas, um material incrível para algo que eu não sabia o que seria. Tinha um problema a resolver. Depois de uns dois anos, fiz a primeira folha de bulas, ao fixá-la na parede não sabia o que fazer com ela, fiquei preso, acabou o dia, abandonei o ateliê. Como o sono resolve certos problemas, ao voltar no dia seguinte, fiquei em frente àquela folha e entendi que só uma coisa caberia ali. As caixas de medicamentos, agora caixa de fotografia, vieram com a pandemia, quando ficamos exaustos pelos efeitos do isolamento, pois estava tudo muito confuso, não havia vacina e a mãe na idade avançada. Ela exausta, não havia familiares outros, passeios cortados, tudo em casa, só em casa. Assim, veio a série de fotografias. Sua alegria está naquelas fotos. Mas há tensão também. Estávamos meio doidinhos naqueles anos. Esclareço que não sou e nem me sinto fotógrafo. A fotografia veio como um recurso para a solução de um fazer artístico. Só nesses dois últimos anos, trabalhei com as cartelas. Ali pedia volume, então trouxe a linha de pesca, uma velha conhecida que uso há muito tempo. É com o que fecho minhas bolsas e livros de pintura. Então, não tem nada a ver com o que vi na produção de outras pessoas. Admiro muito o trabalho do Asp, mas não me senti motivado por sua produção e nem a de ninguém, pelo menos direta e conscientemente.
Você realizou algum estudo específico ou foi movido pela fluidez da criação? Lógico que com a pergunta não desconsidero o seu conhecimento técnico, sobre a história da arte e a longa experiência. O que chama a atenção é a simplificação entre o que está dito e o não dito, há uma limpeza que impressiona tanto nas formalizações discursivas quanto na montagem. Como alcançou isso, o que pensa a respeito?
Ramos – Como já comentei, a intuição é algo forte na minha produção. Eu acredito e invisto sem pensar no que será, no que dirão. Se encontro resultado, mostro. Se não, guardo e continuo na lapidação, aprofundo a pesquisa. Muita coisa começo e paro no caminho, muitas nunca retorno, alguma é descartada. Quando fiz a primeira folha de bulas, não sabia o que caberia ali. Quando fiz a série de fotos pandêmicas, não havia a ideia de ligá-las às caixas de medicamentos ou a um fazer artístico, era só um jogo de passatempo para desanuviar as ideias e a dureza daquele momento. Já a expografia é algo mágico que acontece na montagem. É um acordo entre o material a ser exposto e o espaço físico. Assim, se criam lógicas conforme as peças e o espaço. A pessoa chega com sua produção e tenta esse ajuste. Alguma coisa sempre fica de fora, no caso das três séries apresentadas, só as pinturas da mãe ficaram todas como o previsto. No caso dessa exposição, eu resolvi sozinho. Assim, conversando com a equipe do museu, disse que faltaria uma parede para dispor todo material, prontamente criaram uma.
O crítico Jayro Schmidt observou e escreveu “tendo a oportunidade de conhecer a formosa Zilda, que se parece com uma atriz veterana que volta à infância e assim se comporta no dia a dia com o filho responsável, que a chama com nomes diferentes como maneira de amenizar suas esquisitices ou exotismos”.
“Sobre a Minha Mãe” reúne trabalhos de pintura, fotografia e objetos. Mas há também registro de performance – tanto nas pinturas quanto nas fotografias. Quando percebe o caráter performático dos passeios, quando começa esse processo? Conte um pouco dos bastidores, dos preparativos, sobre a escolha dos figurinos, as ações dentro de casa. O ponto de origem das performances está em Zilda ou em você? Zilda é também uma artista performática?
Ramos – A fotografia tem grande importância nessa exposição. Os desenhos de bula e as caixas de fotografia têm base em fotos que nunca foram feitas com esse objetivo. De modo privado, criava registros da mãe que cuido. Nos passeios ou em casa, queria guardar os momentos. Como característica desses tempos, todos temos sempre uma câmera na mão, o que não nos torna fotógrafos. Já a mãe sempre foi (é) muito bonita e muito vaidosa. Sempre gostou de se vestir, se sentir bonita. Então, ainda que eu a ajude na escolha das roupas, são as roupas dela. Como sei que gosta de estar arrumada me dou ao trabalho, mas isso é ela. Talvez sua atual condição médica possa ter-lhe deixado mais aventureira, mais relaxada e performática, mas acho que isso é da nossa vivencia também. Desde que não temos mais uma relação de mãe e filho, somos aqueles amigos que dividem um apartamento. Isso nos deu outros limites de intimidade, e, sendo ela meio teatral, engraçada algumas vezes, dramática em outras, tem a comédia e o drama equilibrados. Assim, o crítico Jayro Schmidt observou e escreveu “tendo a oportunidade de conhecer a formosa Zilda, que se parece com uma atriz veterana que volta à infância e assim se comporta no dia a dia com o filho responsável, que a chama com nomes diferentes como maneira de amenizar suas esquisitices ou exotismos”.
A velhice vem sendo analisada por diferentes campos do saber, mas muito pouco nas artes visuais do Estado. Como é possível analisar essa questão?
Ramos – É isso mesmo. Ser velho em nossa sociedade tem como tradução a ideia do abandono, como na expressão, caducou. O jovem, em geral, não fala ou representa a velhice em seu fazer artístico. Nem o velho artista fala de sua condição. Parece haver um tabu aí. Eu estou tendo a graça e a chance dessa vivência. Estar com ela é sempre surpreendente. Tudo que ela quer é participar, estar junto, podem ser coisas pequenas como ir à farmácia, ao supermercado. Até ir a um barzinho encontrar amigos ela curte. Ela quer se sentir viva. Nunca esquecida.
Você consegue enveredar com Zilda numa construção identitária de sujeito social. Na exposição há obras produzidas pelos dois. Ao pensar no Alzheimer, é possível falar neste caso da arte como possibilidade terapêutica? Ou não tem nada a ver porque Zilda é uma artista, assim como o filho? Como vê a questão?
Ramos – A mãe não é uma artista no sentido daquele que produz por anos, décadas ou a vida inteira. É uma artista de momento, Performática? Num hiato da vida, entre 2008 e 2017, ela teve uma experiência muito proveitosa do fazer artístico. Me vendo produzir, se sentiu confiante e pintou florais intensos de cor em acrílica sobre tela. Isso lhe despertou as pequenezas da vida, detalhes e cor, incidência de luz, olhar poético para os cantos. Muito lindo ouvir seus relatos e experiências nesse campo ótico, poético e por que não filosófico? Com o tempo e o avanço da idade perdeu o interesse. Estava esquecendo as ações necessárias ao ato de pintar, confusão mental, falta de firmeza nas mãos, então parou. Ainda deixei sua mesa de pintura posta por um ano ou mais até perceber que realmente aquilo tinha passado. Tempo mágico, cheio de alegria e pontuado, um lindo momento e essa terapia a ajudou no desacelerar de sua condição. Paralelo, coloriu aqueles livros que vêm desenhados. Ficou tudo no tempo.
A escolha pelo texto de Fernando Boppré como apresentador – como se dá isso?
Ramos – Fernando tem um texto maravilhoso. É um homem educado e inteligente que admiro. Conhece meu trabalho já tendo escrito sobre ele em outra ocasião. Mas a escolha, a ideia de chamá-lo foi da Juliana Crispe, o texto original da exposição de sua autoria só abarcava os trabalhos das bulas. Então, ele entra para fazer a reflexão desse novo momento, perpassa todos os trabalhos com maestria, faz um paralelo com as “Quatro Estações”, de Vivaldi (1678-1741), percebe o que eu intuía nos “bichos”, as obras feitas das cartelas.
Qual o seu maior sonho como artista? Como vê o futuro?
Ramos – Sonhar o sonho impossível se faz todo dia, o dia inteiro. Mas resistir a realidade é outra conversa, bem mais denso, uma atmosfera pesada que te expulsa do chão. Para ser artista, os pés têm de estar no chão, enquanto que a cabeça longe dele. É difícil. Poucos conseguem, mas se estamos sonhando está valendo. Jayro Schmidt recentemente disse que era hora de minha arte ter projeção nacional. Então, isso poderia entrar como um sonho, um desejo. Uma projeção que até aqui não se mostrou possível ou viável. Claro, precisaremos de uma equipe e recursos para isso acontecer, quem sabe. Esse governo (federal) que saiu foi muito prejudicial não só para as artes visuais, mas à cultura em geral: Perseguiu artistas, por exemplo quando não assina o diploma, não reconhece a entrega do prêmio Camões concedido a Chico Buarque de Holanda, em 2019; fechou exposições, como a “Queermuseu, Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” (2018). Ainda que tenha acontecido pouco antes do governo de Bolsonaro, aquela turba já trazia sua alma; limitou fundos à arte e educação; empossou um secretário de cultura com texto notadamente copiado de discurso nazista. Desastre do começo ao fim. Espero que o novo governo mude todo esse quadro. Assim é o futuro que desejo.
Que significado assume em sua trajetória expor num espaço tão ambicionado quanto é o Museu Victor Meirelles?
Ramos – De profunda felicidade e agradecimento. Confesso que quando mandei o projeto solicitando a sala, em abril de 2022, não tinha muita esperança, porque sabia da fama apurada e exigente curadoria daquele espaço. Quando veio a resposta, soube que havia sido por unanimidade. Toda a equipe gostou com sinal de ok para a exposição “Sobre Minha Mãe”. Na época o Rafael de Moura estava na direção. Meu contato e conversas sempre foram com a Rita Matos Coitinho, a atual diretora. Toda gratidão à direção, aos funcionários e colaboradores do museu por aceitar minha proposta, por abraçá-la e trabalhar para que tudo acontecesse.
Em recente exposição no Espaço Lindolf Bell, uma de suas obras com representação de nus causou o desconforto de um espectador professor acompanhado de alunos. O fato obrigou uma tarja classificatória. Como foi o episódio, como analisa a questão inédita em Santa Catarina?
Ramos – Classifico como lamentável o episódio. Acredito não ter sido um dos trabalhos e sim todos eles os geradores do faniquito do tal professor. Todas as obras ali tinham como característica a representação do nu. Posso ressaltar também o modo errático do professor, como não visitou a exposição antes, sozinho, para saber onde levava seus alunos? Imagino ser ele um professor de artes por pensar que professores de outras áreas levam seus alunos a outros lugares: observatório, praia, campo, indústria, mangue, centro histórico, fortificações. Então, só posso imaginá-lo dando aula de artes plásticas. E, se sim, o que dizer de um mestre com uma atitude tão provinciana? Não tem consciência de que todos os museus do mundo expõem representações do nu em obras de todas as épocas, de todos os estilos? Vale registrar que não foi a primeira vez que enfrento um despautério desses, já ouvi de galerista não querer meus nus em sua galeria. Na exposição “Disnexo”, uma coletiva na qual apresentei a série “Exército de Inúteis”, que é dividida em três partes: “Guia Ilustrado Do Acompanhante Para Dias Tristes”, “Encenando um Nu” e “Sala de Exibição”. O nu aparece como denúncia e não como agente sedutor. Não há nesse trabalho a mínima ideia ou intenção de sensualidade ou erotismo. Assim os personagens se enfileiram e encaram o observador no intuito de desestabilizar a relação obra/observador. Queria pensar a liberdade de expressão (ou a falta dela) dentro de espaços expositivos. Um questionamento de até onde se pode chegar/dizer na abordagem artística. Qual o limite da arte? Arte tem limite? Esse trabalho foi motivado pelo triste episódio que culminou no cancelamento da performance “La Bête”, do artista carioca Wagner Schwartz, no Museu de Arte Moderna (MAM/SP), em 2017. Fato que até hoje traz problemas ao artista. No meu trabalho “Sala de Exibição”, represento o Wagner ao lado de Lygia Clark (1920-1988), num claro aceno poético, e a criança que tocou seu pé. Com esse acontecimento no MAM, e outros gerados por um excesso puritano que assolou o Brasil, criaram normas “para classificação indicativa de idade para eventos e exposições”, o documento que rotulou meu trabalho. Eu fui falar de um trabalho censurado, em que criaram um estatuto para classificar eventos e exposições, e por final, fui engolido por ele. Foi tão equivocada a tal tarja classificatória para a exposição que a administração da Sala Lindolf Bell feita pela Fundação Catarinense de Cultura (FCC) depois de uma semana retirou o aviso da porta de vidro que dá acesso à sala.
OUTROS TEXTOS DE NÉRI PEDROSO
Serviço
O quê: Exposição “Sobre Minha Mãe”, de Ricardo Ramos com participação de Zilda S. Ramos
Onde: Museu Victor Meirelles, rua Victor Meirelles, 59, Centro, Florianópolis (SC)
Quando: até 23.4.2023, terça a sexta, 10 às 18h; sábados, 10 às 15h
Quanto: gratuito
Equipe técnica
Curadoria: Juliana Crispe
Texto crítico: Fernando Boppré
Produção gráfica: Vanessa Schultz
Fotografia: Sérgio Vignes