Qual o papel da arquitetura no presente, enquanto projeta futuros possíveis? Esta reflexão é justamente um dos focos do Congresso Brasileiro de Arquitetos da Região Sul (CBA Sul), que acontecerá de 21 a 23 de outubro, em Florianópolis. A intenção é reforçar a atuação e a responsabilidades da arquitetura na esfera pública, por isso o tema “Lançar mundos no mundo: processos de construção social”, formulado a partir de interpretação da letra da música “Livros”, de Caetano Veloso, feita pelo arquiteto Guilherme Wisnik.
O professor Doutor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) é um dos convidados do congresso para debater sobre Novos horizontes para a profissão de urbanista e os movimentos de conquista do espaço público. Em entrevista ao Portal, ele falou sobre a tendência que temos em ver os espaços públicos privatizados, segregados e violentos. Wisnik, que foi Curador do Pavilhão do Brasil na Expo 2020 em Dubai, em 2021, irá apresentar um panorama a respeito da esfera pública desde a conceituação, alguns dos movimentos neste lugar de disputa como o Occupy Wall Street, em Nova Iorque (2011), o movimento Occupy Estelita no Recife, e o florescimento do desejo pelo espaço público em São Paulo com a Virada Cultural.
Wisnik também abordará sobre o papel das universidades e a percepção sobre os jovens arquitetos. “Os jovens têm entendido que a cidade é a grande arena da disputa política, em vez do lugar mais protegido e recuado do arquiteto autoral, profissional liberal, artista com seu traço”, afirma o arquiteto que foi Curador-Geral da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo, em 2013.
Congresso Brasileiro de Arquitetos da Região Sul
Data: 21 a 23 de outubro
Onde: Unisul – Rua Antônio Dib Mussi, 366 – Centro, Florianópolis
ArqSC – O que você quer dizer com “novos horizontes para a profissão de urbanista” e o que considera nesta análise?
Guilherme Wisnik – O meu tema é sobre a esfera pública brasileira. Num registro histórico, a gente pode dizer que o Brasil é um país com fraca tradição de espaço público, dado que na nossa história colonial e escravocrata, a gente pouco desenvolveu o senso de esfera pública, com esse termo burguês, europeu, ocidental que remonta à Grécia clássica. A gente tem uma tendência a ver os nossos espaços públicos sempre privatizados, dominados, segregados, gradiados, violentos. Então, a primeira questão é a conceituação disso. Então, a primeira questão é a conceituação de esfera pública.
A segunda questão é a percepção de que a gente tem pouca tradição de uso do espaço público, tirando-se a tradição da praia nas cidades litorâneas, e a praia do Rio de Janeiro é o símbolo, por excelência dessa ideia de espaço público bem sucedido no Brasil, de encontro de classes, de diversidade. Já a criação de Brasília é quase que a prova disso pelo avesso, é uma cidade toda pública, cujo sentido do espaço público também tem dificuldade de funcionar por falta de contraste, é uma cidade inteira pública, você não sabe bem qual é o sentido do espaço público. Mas voltando, se a gente tem uma tradição mais ligada ao privado, daí o sucesso dos shopping centers para nós, o uso extensivo do automóvel, quer dizer, as pessoas de classe média e alta morando em condomínio de subúrbio, se deslocam de automóvel individual e vão sociabilizar no shopping. Esse seria o contexto da nossa sociabilidade.
Porém, alguma coisa aconteceu nos últimos 10, 20 anos que muda esse cenário. Há crescentemente, no Brasil, um desejo por espaço público e manifestações em prol do espaço público.
Quero situar esse momento junto com as manifestações políticas, tanto de esquerda quanto de direita, tomando o palco das ruas e avenidas do Brasil, e junho de 2013 como epicentro disso, e também a polarização e a disputa pelo espaço público como lugar dessa aparência que é festiva e é também política.
ArqSC – Quais movimentos?
GW – Movimentos de ocupações que vem na esteira do Occupy Wall Street, em Nova Iorque (2011), das primaveras árabes e dos movimentos por espaço público como o de Estambul contra o shopping a favor do parque, a Porta do Sol em Madrid, e tantos outros casos. A gente pode nomear, no Brasil, o movimento Occupy Estelita no Recife, Praia da Estação em Belo Horizonte, vários em São Paulo, como o Parque Augusta, que foi um movimento vencedor, ou o Parque Minhocão, que acontece informalmente aos domingos, atualmente um movimento pelo Parque do Bixiga.
Eu localizo em São Paulo esse florescimento do desejo pelo espaço público ligado a certas precedências que são a Virada Cultural que a prefeitura da cidade criou com shows no centro durante dois dias e uma noite, a Parada Gay, que hoje é a parada LGBTQIA+, e o Carnaval de rua, que no caso de São Paulo era quase inexistente e hoje é muito forte. Considero que esses movimentos deram eclosão a coisas como a paulista aberta, que foi uma política da prefeitura de Fernando Haddad, o fechamento de avenidas importantes para carros e o uso para pedestres no fim de semana, com grandes manifestações.
Quero situar esse momento junto com as manifestações políticas, tanto de esquerda quanto de direita, tomando o palco das ruas e avenidas do Brasil, e junho de 2013 como epicentro disso, e também a polarização e a disputa pelo espaço público como lugar dessa aparência que é festiva e é também política.
Os jovens têm entendido que a cidade é a grande arena da disputa política, em vez do lugar mais protegido e recuado do arquiteto autoral, profissional liberal, artista com seu traço. É mais ou menos esse o panorama que eu quero desenhar.
ArqSC – Como as mudanças no perfil das universidades impactam a formação e os horizontes da profissão?
GW – De que maneira isso toca na questão dos arquitetos urbanistas e, sobretudo, dos estudantes e dos jovens? O que me parece é que até o fim do século passado, início desse século, o horizonte de desejo de um estudante que se formava arquiteto urbanista era ser um arquiteto autoral, abrir o seu escritório como profissional liberal e fazer encomendas para o poder público, ou sobretudo privado, e ter projetos assinados com a sua marca de distinção. E, cada vez mais, nesse processo que eu descrevo, no qual se inscreve também a crise financeira de 2008 e a crítica à arquitetura espetacular, arquitetura muito formalista e etc., há uma mudança de perspectivas e a arquitetura passa a se engajar muito mais nos problemas sociais, nas questões emergentes da sociedade, das suas precariedades. Os jovens arquitetos abandonam um pouco aquele sonho e passam a se organizar em coletivos que não são só de arquitetos, mas também de artistas, geógrafos, antropólogos, e que, através de ONGs, se engajam em trabalhos e criam a própria demanda, tem uma postura muito mais proativa do que o modelo anterior, e tem se envolvido nesses movimentos de disputa pelo espaço público. Os jovens têm entendido que a cidade é a grande arena da disputa política, em vez do lugar mais protegido e recuado do arquiteto autoral, profissional liberal, artista com seu traço. É mais ou menos esse o panorama que eu quero desenhar.
E aí você me pergunta, e eu concordo, a mudança da Universidade Pública é fundamental para isso. As políticas de ação afirmativa dos últimos 10 anos mudaram completamente o perfil do estudante. Na arquitetura e urbanismo eu vejo isso claramente, negros e impardos, indígenas, pessoas com outra origem social, com outras ideias e outros desejos, tornando muito mais política a presença na universidade e inclusive o debate dos conteúdos que ali são oferecidos.