Sétimo artigo da arquiteta Maria Pilar Arantes, que atualmente mora na Espanha onde cursa História da Arte. Pilar é colaboradora do portal ArqSC para o qual escreve apontando seu olhar para o país. Pós-graduada em Arquitetura e História das Cidades pela Universidade Federal de Santa Catarina e fundadora e diretora do Centro de Artes e Design (ww.centrodeartesedesign.com), um centro de pesquisa, formação e difusão do design de interiores e das artes, em cujos cursos já se formaram, desde 1999, mais de 5 mil pessoas. É escritora e registra suas viagens por meio de fotografias.
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Em seu primeiro tratado da paisagem – Introdução à pintura de paisagem, o chinês Zong Bing (375-443) diz:
“A paisagem, embora tenha uma forma material, tende ao espírito”.
Uma das primeiras paisagens que me chamou atenção ao chegar na Espanha, e que até hoje me fascina e faz refletir sobre como o urbanismo interfere no ritmo da vida, no pensamento e nas relações de vizinhança, é a imagem, vista desde longe, dos pequenos pueblos espanhóis. Um amontoado de casinhas às vezes no meio do nada, outras vezes cercadas por uma muralha. Esta característica, esta configuração dos seus pueblos vem dos tempos medievais.
Na Espanha medieval, um período histórico tão turbulento pelas campanhas de conquista de novos territórios e a necessidade de defensa dos já existentes, surgiram muitas cidades amuralhadas cheias de estratégias de defesa. Os pueblos eram pequenos. Alguns prosperaram tornando-se grandes centros urbanos, e outros se mantiveram congelados no tempo por motivos diversos: pela geografia que limitava sua expansão, pela larga distância de outras cidades importantes que as abasteciam de suprimentos, ou porque deixou de crescer com a saída dos jovens que sonhavam com a vida agitada dos grandes centros urbanos.
Esses pueblos podiam surgir de várias formas, mas sempre havia um motivo final em comum: estabelecer a posse daquele território.
O nascimento de um pueblo poderia iniciar com a implantação de um monastério. Os monges eram responsáveis por tudo: construção da edificação em todas suas etapas, cultivo da terra, e atenção aos peregrinos. O nobre que fosse proprietário daquelas terras as doaria, seja por motivos de perdão de seus pecados doando o terreno à igreja, ou porque as via estrategicamente importantes em termos de defesa para suas próprias terras.
Um pueblo também podia surgir a partir da construção de um castelo de defesa de algum nobre que queria proteger suas terras, e pouco a pouco famílias que lhe serviam iam instalando-se ao redor. Isto aconteceu muito no período de invasões bárbaras em toda Europa, e de ocupação muçulmana na Península (séculos VIII ao XV). Outros nobres cediam o uso da terra àquelas famílias para que a ocupassem e cultivassem, evitando invasão por outros indesejados. O senhor do castelo prometia proteção ao pueblo, por isso também é comum encontrar na configuração arquitetônica dos castelos medievais um grande pátio, local onde a população acudia em caso de invasão. Junto ao castelo ou anexo a ele costumava haver uma torre de vigilância com suas espilleras (aberturas na parede, em forma externa retangular que se afunilava para dentro) para poder disparar aos invasores desde várias direções.
Outra forma de surgimento dos pueblos era a partir de um acampamento militar que se instalava na região de maneira muito simples: alojamentos de madeira cercados por estrutura também em madeira, que pouco a pouco iam sendo substituídos por materiais mais resistentes.
Quando um pueblo estava já com um número suficiente de habitantes para os parâmetros da época ou do local, ou antes disso se fosse o caso de uma estratégia de defesa, a cidade era toda cercada de uma muralha. Surgia a cidade amuralhada.
As muralhas eram estrutura de pedra muito altas, flanqueadas por baluartes, torres de defesa e observação, com portas que se abriam para os principais caminhos e que regulavam a entrada e saída de pessoas e mercadorias.
O interior se constituía de um apinhado de casas construídas todas muito juntas umas às outras, muitas vezes grande quantidade delas utilizavam a própria muralha como uma de suas paredes. Dentro das muralhas se desenvolviam as atividades comerciais e artesanais: ferreiros, sapateiros, costureiros, músicos, etc. Fora do recinto amuralhado se desenvolviam as atividades agrárias, e não era incomum que famílias que não conseguiam viver dentro da cidade amuralhada vivessem nas aforas. Estas pessoas logicamente estavam isentas da proteção do dia-a-dia oferecida dentro da cidade, exceto quando necessitavam refúgio em casos de invasões inimigas, pois fazia parte do exercício das responsabilidades políticas, sociais e culturais daquele núcleo.
No centro da cidade amuralhada situa-se a Praça, onde se encontram os edifícios mais importantes: a igreja, o pátio do mercado, os edifícios públicos. O traçado urbano é sinuoso e irregular.
Dentro da cidade há diferentes bairros que agrupam a população de acordo com sua procedência, sua religião ou sua atividade. Por isso até hoje as ruas das reminiscentes cidades medievais têm nomes de ofícios: Calle de la Pescadería, Calle del Zapatero, Calle del Mercado, etc.
Quando a cidade se encontrava já saturada com necessidade de expandir-se, derrubavam-se as muralhas e as reconstruíam aumentando seu raio de extensão, e muitas vezes incluindo algumas casas que estavam nas cercanias.
A maioria dos pueblos e cidades espanholas já não têm mais muralhas, porém muitos preservaram parte delas, suas torres, suas portas, e, logicamente, seu traçado urbano.
Esta proximidade física e o sentido de pertencimento que existia entre as gentes dos pueblos medievais permanece até os dias de hoje. Para aprofundar este tema, na próxima publicação falarei das festas espanholas. Há um “sem-fim” de festas em todas as cidades e pueblos espanhóis. Além das festas, falarei como é a relação de vizinhança nos pueblos, o papel do bar na socialização e como esses costumes fazem com que o espanhol seja um povo muito familiar. Até a próxima!
Fontes das imagens:
Imagem 1: Ávila: M. Peinado – De M.Peinado from Alcalá de Henares, España – 008589 – Ávila, CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=46207436
Imagem 2: Buitrago de Lozoya: A un clic de la aventura : https://aunclicdelaaventura.com/pueblos-de-madrid-con-encanto/
Imagem 3: Espilleras. Maria Pilar Arantes
Imagem 4: Alquézar: Maria Pilar Arantes.
Imagem 5: Ureña: https://www.abc.es/viajar/top/20140902/abci-pueblos-amurallados-espana-201409011229_1.html
Imagem 6: Peralada: https://www.dondeviajamos.com/ruta-costa-brava/
Imagem 7: Ruas com nomes de ofícios. Maria Pilar Arantes.
Imagem 8: Morella. https://www.abc.es/viajar/top/20140902/abci-pueblos-amurallados-espana-201409011229_1.html