Poderia uma obra de arte do século 19 ter sido incômoda em seu tempo? Pode ser agora? A partir da exposição física “Invitadas – fragmentos sobre mujeres, idelología y artes plásticas en España (1833 – 1931)”, na agendo do Museo del Prado, em Madri, diferentes especialistas em arte e antropologia foram convidados a gravar curtos vídeos sobre o significado de algumas das obras expostas. A exposição pretende oferecer uma reflexão sobre a forma como os poderes instituídos, durante aquele século que abrange a exposição, defenderam ou propagaram o papel da mulher na sociedade através das artes visuais, e qual impacto que estas obras têm na atualidade depois de tantas lutas e mudanças pelas quais passamos para abrir e ampliar os horizontes da atuação feminina.
Invitadas – fragmentos sobre mujeres, idelología y artes plásticas en España (1833 – 1931)” deixa a pergunta em aberto: em seu tempo, determinada obra poderia refletir uma realidade instituída e aceita. E na atualidade, poderiam nos chocar? Chocam a você? Apresento aqui nove das obras da exposição com uma resenha dos comentários dos especialistas traduzidos por mim. E também o vídeo da obra no canal do Youtube do Museo del Prado.
Fotos do acervo do Museo del Prado.
La esclava, de Antonio María Fabrés y Costa (h. 1886), obra comentada por Aída E. Bueno Sarduy, antropóloga, NYU, Middlebury College y Boston University.
Representa uma mulher condenada por ter roubado as joias que estão penduradas à sua frente, conforme confirmado pela placa escrita em árabe acima de sua cabeça: morte de um ladrão. Embora a nudez seja reduzida aqui ao peito, a imagem do prisioneiro tem forte conotação sexual. Se era uma ladra, para quê exibir-lhe o seio?
Este tipo de humilhação pública era comum na época, apesar de que praticamente todos os países já terem abolido a escravidão.
Assista o vídeo.
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Una esclava en venta, de José Jiménez Aranda (h. 1897), obra comentada por Aída E. Bueno Sarduy, Antropóloga, NYU, Middlebury College y Boston University.
Uma jovem escrava, completamente nua e sentada em um tapete, exibe o pôster em grego “Rosa de 18 anos à venda por 800 moedas”. A mulher está à venda em um mercado oriental. A visão do nu feminino nem sempre esteve ligada à ideia de prazer indulgente, como evidencia a abundante iconografia de escravas, que conferia à mulher o papel de objeto e vítima das fantasias masculinas.
A antropóloga Aída Sarduy comenta:
É um mundo onde os homens lucram com o corpo das mulheres. Transformam os corpos em objeto de compra e venda. É uma estética ofensiva tratando-se de uma escrava à venda, pois nunca em um mercado de escravos se deixava uma pessoa em tal situação. Que pensam as pessoas que vão ao museu e veem a esta obra?
Assista o vídeo.
Desnudo de mujer, de Ignacio Pinazo Camarlench (1895). Obra comentada por Aída E. Bueno Sarduy, Antropóloga, NYU, Middlebury College y Boston University.
No século 19, a arte evitava representar a genitália feminina, o que, com poucas exceções, constituía um tabu invisível que os artistas ocultavam por meio de vários dispositivos. A obra de Pinazo é um exemplo inusitado de nudez frontal dentro da tradição espanhola, exibindo com ousadia o sexo da modelo, que é enfatizado pela ausência de tinta na camada de primer, um vazio que a torna, paradoxalmente, o ponto focal da composição.
O rosto da mulher se camufla com o fundo alaranjado. Seria a perda de sua identidade?
Assista o vídeo.
El primer beso, de Salvador Viniegra (1891), obra comentada por Carlos Reyero, Catedrático de Historia del Arte.
A tela de Viniegra trata a imagem de Eva como a introdutora do pecado original e a causa da expulsão do ser humano do Paraíso. O foco está em seus abundantes cabelos esvoaçantes, tradição ligada à sedução feminina, considerada responsável, ainda no final do século 19, pela perda da inocência masculina.
Todavia, nesta obra Adão não está adormecido, como disseram alguns críticos do século XIX, simplesmente se deixa levar pela sedução de Eva, e está em atitude passiva, ao contrário do que era retratado tradicionalmente em que Adão adota uma atitude mais ativa como se lutasse para evitar o pecado. A serpente aqui adquire um simbolismo com conotações fálicas. Em vez de um pecado de desobediência, se parece mais a um pecado de luxúria.Tendo em vista os debates feministas da atualidade, como você interpretaria esta obra?
La rebelde, de Antonio Fillol (h. 1914) , obra comentada por Aída E. Bueno Sarduy, antropóloga, NYU, Middlebury College y Boston University.
Uma jovem é expulsa pela família do acampamento onde mora, em meio a reprimendas e sinais óbvios de abuso. Nesta composição, que assistiu à Exposição Nacional de 1915 e foi adquirida pelo Estado, Fillol alude com grande força emocional tanto à violência contra a mulher como à incompreensão de uma sociedade patriarcal baseada em tradições ancestrais – aqui encarnadas pelos ciganos – dos desejos femininos pela emancipação e autonomia.Em todos os lugares há mudanças, ao contrário do que costumamos pensar de que somente no mundo ocidental ocorrem mudanças e avanços.
Atualmente há uma mensagem implícita na pintura que pode representar o ímpeto que muitas mulheres tiveram ao longo da história em romper com os estabelecidos, quando estes não mais respondem às novas demandas do seu mundo interior, pese às dores desta ruptura. Romper e continuar caminhando, é a sina de muitas mulheres que deram o primeiro passo para uma sociedade mais justa para seu gênero.
Assista o vídeo.
Falenas, de Carlos Verger (1920), obra comentada por Aída E. Bueno Sarduy, antropóloga, NYU, Middlebury College y Boston University.
O termo falena – uma borboleta noturna de corpo esguio e asas largas e fracas, fatalmente atraída pelo fogo, é aqui associado às mulheres que se ofereciam como companheiras em elegantes cenáculos. Verger concentra-se no olhar de uma delas, que revela aquela suposta instabilidade mental que as teorias higienistas atribuíam à vida desordenada das mulheres, consequência de sua falta de realização como esposas e mães.
Ao chamá-las falenas, querem dizer que são mulheres que “tropeçam na luz”, que estão doentes por não terem seguido o padrão pré-estabelecido para as mulheres “honradas” da época. Se elas tropeçaram, em quê tropeçaram os homens que estão aí e são a causa para que elas estejam neste papel? Estes homens que aparecem em segundo plano, na sombra, o que produzem neste mundo? Qual seria o equivalente no mundo dos insetos para estes homens?
Assista o vídeo.
La infanta Paz de Borbón, de Franz-Seraph von Lenbach (1894), obra comentada por Amaya Alzaga, Historiadora da Arte, Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED).
Aluna do pintor Carlos Múgica, a Infanta Paz, irmã de Alfonso XII, foi uma pintora amadora que não abandonou esta prática após o seu casamento com o Príncipe Luís Fernando da Baviera. Na corte de Munique desenvolveu também um trabalho ativo de mecenato artístico, o que a levou, entre outras coisas, a favorecer a participação de pintores espanhóis nas exposições realizadas naquela cidade.
Pintora ativa do século XIX, participou de diversas exposições. Realizou obras literárias de sua autoria e várias traduções. Todavia, nesta tela é retratada como uma senhora cuja imagem expõe uma mulher que primava pela noção de classe e modéstia, em detrimento de uma personalidade ativa. Ou seja, apesar de tudo que era capaz de realizar, rendeu-se às aparências que a sociedade da época exigia da mulher.
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María Hahn, esposa del pintor, de Raimundo de Madrazo (1901), obra comentada por Amaya Alzaga, Historiadora del Arte, Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED).
Alheio à reivindicação da dimensão intelectual e espiritual das mulheres, Raimundo de Madrazo continuou a mergulhar na sofisticação de sua aparência externa e retratou suas clientes de uma forma que, no auge do movimento sufragista, exigia a volta aos valores e estética do século XVIII. Foi especialmente bem-sucedido entre as mulheres da alta sociedade americana, que, disfarçadas de cortesãs de Versalhes, projetaram uma imagem anacrônica e indolente de si mesmas, enterradas sob os brocados de seus vestidos.
Ao final do século XIX os retratos de mulheres tinham perdido sua função de expô-las como matriarcas, protetoras do lar e defensoras da virtude da família e de sua própria virtude feminina. Entra em moda o retrato de bourdois, no qual as mulheres eram pintadas com o mais sofisticado da moda do momento como se fossem cortesãs de Versalhes.
A crítica do momento as classifica como “mulheres aprisionadas num ninho de pássaro”, como uma alusão a perda da identidade feminina que convinha à sociedade masculina da época.
Assista o vídeo.
Después del baño (Desnudo de mujer). Raimundo de Madrazo y Garreta, cerca de 1895. Óleo sobre tela, 182 x 112 cm.
Obra comentada por Amaya Alzaga, Historiadora da Arte, Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED).
O nu acadêmico exigia um pretexto literário e um cenário concreto que lhe proporcionasse um argumento e estabelecesse uma certa distância do espaço físico e temporal do espectador. Madrazo expôs ao olhar masculino este nu refinado e sensual de uma parisiense surpresa em sua ‘toalete’. Sua estética rococó, realçada pela delicadeza do talco e da lingerie oitentista, marca aquela suposta distância com o espectador, transformado em um ‘voyeur’ do asseio feminino.
Assista o vídeo.