“Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar”
(Tanto mar, Chico Buarque, 1975)
É com esta música que as curadoras portuguesas Bárbara Coutinho e a brasileira Adélia Borges nos convidam à visitação da exposição “Tanto Mar, Fluxos Transatlânticos do Design”. São mais de 160 peças dos dois países expostas, selecionadas a partir da ideia de que, além da língua e do mar que nos une, compartilhamos uma história de design. E é através dos fluxos e trocas ao longo da história que o olhar da curadoria se amplia a países africanos, de forma significativa e determinante.
Estamos no Museu do Design e da Moda – MUDE, em Lisboa, do qual Bárbara é diretora e fundadora. Avançamos pelas salas do Palácio dos Condes da Calheta, próximo à Torre de Belém, que abrigam os objetos selecionados: projetos urbanos, móveis, embalagens, peças gráficas, joias e vestuário. É preciso dizer que a seleção também avança – como não poderia deixar de ser, ao falarmos de design – para um território híbrido, entre design, artesanato e arquitetura. É assim que se cruzam nomes como Carmen Miranda, Oscar Niemeyer, Agostinho da Silva, Burle Marx,
Joaquim Tenreiro, Athos Bulcão, Adriana Varejão e tantos outros.
Entrada da exposição. Foto: MUDE.
A exposição inicia-se a partir de dois lugares: a praça do Rossio, em Lisboa, e o calçadão da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Em comum, as “Ondas”, que são um padrão das calçadas de pedra, originalmente desenhado em Portugal no século XIX, conforme evidencia Bárbara. Mantendo os materiais originais (calcário e basalto), as ondas foram ampliadas e redesenhadas no Brasil. Hoje estão presentes no calçadão, nas capas de discos bossa nova, nas estampas das Garotas do Alceu, na moda e muito objetos de uso contemporâneo, que Adélia Borges, jornalista e curadora especialista em design, segue nos mostrando. “A ampliação da escala, por meio do design, aumenta o seu impacto (das “ondas”), a ponto de se tornar um ícone”, diz Adélia. Esse é um bom exemplo de como o design pode promover a “apropriação do signo”, que se torna um elemento da identidade nacional e da memória coletiva, continua a curadora brasileira.
Os fluxos e as contaminações entre os países também são determinados pelos artesãos, designers, artistas e arquitetos que transitam, ora para um lado, ora para o outro. Bárbara destaca que, durante a época da ditatura em Portugal, muitos portugueses mudaram-se para o Brasil em busca de espaços de maior liberdade – e essa mudança reflete-se nos processos criativos, que incorporam materiais e elementos locais. Assim, alguns portugueses, como por exemplo o fotógrafo e artista plástico Fernando Lemos, se tornam mais conhecidos no Brasil do que em Portugal. Hoje, aos 92 anos e com uma vasta obra, Lemos mora em São Paulo. É de autoria dele o cartaz da exposição Tanto Mar, conta Adélia.
Sem seguir um percurso necessariamente cronológico, a exposição avança a partir da língua portuguesa à cultura imaterial e material, em um diálogo territorial. É o caso dos azulejos portugueses, que na verdade são de origem árabe e receberam influência da Itália, da França e de Flandres, como destaca Bárbara. O clássico branco e azul ganha novos ares nas mãos de designers que reescrevem texturas e superfícies e, assim, trazem-no para o contexto contemporâneo. E, indo além do da base cerâmica, os azulejos vão se abstraindo em porcelanas e tecidos.
“Não se fala do mar a qualquer pessoa”: obra criada por Manuela Pimentel (1979, Porto) para a exposição. Acrílico e verniz sobre cartazes de rua. Foto: MUDE.
Crescendo: Obra criada por Add Fuel (1980, Lisboa) para a exposição, com motivos que criam ironia e subversão, como aponta BC. Foto: cortesia do artista.
Um outro material destacado na seleção feita pelas curadoras é a madeira, que ganha protagonismo em joias e objetos, como “ouro vegetal”. Adélia percorre conosco a ampla sala, mostrando peças de Heloísa Crocco, Rodrigo Calixto, Cláudia Moreira Salles e tantos outros, nas quais o design traz visibilidade ao material, evidenciando a sua natureza.
Lingotes Eldorado, 2014. Rodrigo Calixto (1979, Rio de Janeiro, RJ). Produção: Oficina Ethos. Série limitada que utiliza pau brasil, peroba do campo e braúna vindos de uma construção de 1866 no Rio de Janeiro. As cores das madeiras representam as três principais contribuições à formação do povo brasileiro: indígenas, portugueses e africanos. Foto: Oficina Ethos.
Xiloteca Afetiva, 2017. oEbanista / Ricardo Graham (1974, Rio de Janeiro, RJ) e Maria Eduarda Carneiro da Cunha (1975, Rio de Janeiro, RJ). São 14 ovos de pau marfim, pau mulato, pinho de riga, cabriúva vermelha, peroba do campo, mogno, tamarindo, sucupira, ipê, freijó roxinho, muirapiranga, jacarandá da Bahia e braúna, também maciços. Foto: oEbanista.
Entre tantos objetos, algumas releituras contemporâneas podem ser destacadas. Os balangandãs de metal, tão adorados por Carmem Mirada, voltam ao uso no olhar sensível e nas mãos hábeis da designer de joias brasileira Renata Meirelles. A cestaria e a cerâmica, técnicas tão tradicionais em Portugal, no Brasil e na África, aqui se combinam de forma inovadora nas jarras criadas pela designer portuguesa Eneida Carvalho, resultando em objetos originais.
Balangandã, 2015. Design e produção: Renata Meirelles (1964, São Paulo). Releitura contemporânea do balangandã feita em tafetá. Foto: Renata Meirelles.
Jarras Caruma. Eneida Tavares (1990, Barreiro), produzidas pela Vicara. Foto: Vicara.
Tanto mar é uma exposição de objetos e de suas trajetórias. Uma forte dimensão política está presente, como não poderia deixar de ser quando falamos das relações entre design e território. E, nessa exposição, curada por duas mulheres, as narrativas surgem entremeadas, traçando uma história em que cabem várias perspectivas e aponta para o futuro.
Para quem passar por Lisboa, fica a sugestão!
Tanto Mar. Fluxos Transatlânticos do Design
De 10 Mar. 2018 à 15 Jul. 2018
Museu do Design e da Moda – MUDE
Curadoria: Bárbara Coutinho e Adélia Borges
Design expositivo: Rita Filipe
Design de comunicação: Vivó Eusébio
Local: Palácio dos Condes da Calheta, Lisboa
Parceria Universidade de Lisboa – Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNAC)
http://www.mude.pt