Este artigo exclusivo e inédito de Dennis Radünz foi publicado originalmente no anuário impresso ArqSC 10ª edição.
O Sol, a Lua, o Mundo, o Mago e a Roda da Fortuna se conjugam nas 22 cartas do Tarot Pedra Branca, de Rodrigo de Haro, o mosaico de estilo veneziano que levanta, desde a origem na argila, novas hipóteses de futuro na perenidade da cerâmica. Concebido como uma espécie de emblema da Cidade Criativa Pedra Branca – área que é o experimento vivo do novo urbanismo, como enclave de desenho urbano entre a conurbação informe de Palhoça –, o Tarot nasceu nos desenhos de Rodrigo de Haro traçados em papel-cartão, de 1986 a 2016, depois transpostos pelo artista Idésio Leal para a superfície maciça dos 22 totens de concreto.
“Tudo começa pelo desenho”, explica o artista, e a arte divinatória do Tarot encontrou nas 21 cores das peças de cerâmica a expressão de arte combinatória: a representação da Roda da Fortuna, figurada em azul, monta-se contra o fundo vermelho e verde, por exemplo. Arcanos do mosaico. E como trabalho de arte pública, a primeira apresentação – no Lugar das Artes, em dezembro de 2017 – evidenciou, na sua forma de semicírculo, um convite à comunhão ancestral, a sua vontade de convívio e de um novo anelo para a vida em comum na Grande Florianópolis.
Assim, para além da cidade-jardim, da cidade modernista ou das cidades-monumento, a Pedra Branca concilia arquitetura e arte à procura de um novo pertencimento a essa vida local que se faz entre o lazer e o labor, entre as áreas de comércio e de estudo, na cultura do reúso dos recursos naturais, com o sentimento de pertencimento a um espaço pleno de significados, como os significados latentes nas cartas desse Tarot. Eles, esses significados, são “enzima de potência e campo verde”, como De Haro escreveu no poema-arcano que é a legenda do mural O Mago.
Nesse sentido, Tarot, palavra substantiva, amplia-se no adjetivo Pedra Branca e, assim, a arte e o entorno da cidade criativa se completam, em conceito e montagem, com a valorização da cerâmica ancestral do litoral catarinense no espaço da antiga fazenda. Mas como os totens de Rodrigo e Idésio são móveis, a arte de recombiná-los como baralho nesse ambiente urbano e ainda rural, aos pés da Serra do Mar, é ilimitável (esse encontro entre a cultura e a natureza tem no Parque Inhotim, em Brumadinho, e na galeria Sonic Pavilion, de Doug Aitken, em particular, uma referência icônica entre os museus contemporâneos de arte).
Em uma página de ‘Caminhos da curadoria’ (Cobogó, 2014), o célebre curador de arte Hans Ulrich Obrist observa que a “curadoria pode ser uma forma de urbanismo, que pode tratar das mutações das cidades”. Assim, presente no espaço público de Florianópolis, Tijucas, São José, São Pedro de Alcântara, São Joaquim, Caçador e Porto Alegre, a arte mural de Rodrigo e Idésio participa das mutações de cada urbe, como o testemunho da memória coletiva que se registra em símbolos sempre abertos à interpretação (vide os dois grandes murais na Reitoria da UFSC, que historiam a América pré-colombiana e a ascendência açoriana de Nossa Senhora do Desterro). Em suma, a arte mural e o conceito de cidade criativa completam-se na Pedra Branca.
E se a curadoria pode ser urbanismo, fica evidenciada em Tarot Pedra Branca a ascensão de uma ideia de espaço urbano onde arte e arquitetura (e, no caso de Rodrigo de Haro, também a poesia) mantêm uma conversa íntima e de ‘janelas abertas’, o desenho urbano sendo outra forma de curadoria de arte. Contra a decrepitude das grandes cidades, assaltadas pelo culto ao automóvel, e contra o monumentalismo oficioso, essa coleção de mosaicos nunca estáticos ecoa a concepção de Jan Gehl, pensador do espaço público, e sua ‘cidade para as pessoas’: o Tarot pede a participação ativa de quem o consulta; o Tarot é uma espécie de código da vida urbana.
Assim, o Tarot Pedra Branca instaura uma nova fase na arte pública de Santa Catarina: “Em nossas veias conduzimos o zodíaco e de alguns símbolos erguemos cidades”, diz Rodrigo. Porque De Haro, poeta-alquimista, parece antever nos interiores e em todo o entorno as formas futuras das cidades criativas. E isso porque o construir cidades é, em muitos sentidos, uma arte divinatória. Principalmente porque cada passante e cada morador pode desvendar os futuros da vida urbana ao exercer o seu direito à cultura e à cidadania criativa: ler o Tarot é uma forma de começar, de novo, o Mundo.
Dennis Radünz é escritor e dirige a Editora Nave (Florianópolis). Editou os catálogos de arte “Tarot Pedra Branca – Rodrigo de Haro” (2017) e “Dos arquétipos: o poder das imagens – Rodrigo de Haro” (2016) e o livro-retrospectiva “Rubens Oestroem” (2015), além de dezenas de outros livros de arte e literatura.
Desenho de Rodrigo de Haro da carta O Louco, feita em mosaico estilo veneziano, e que forma 22 peças do Tarot Pedra Branca. O trabalho foi concebido em papel-cartão pelo artista, de 1986 a 2016, depois transpostos pelo também artista Idésio Leal para a superfície maciça dos totens de concreto.