A arquiteta e urbanista Silvia Lenzi é referência quando o assunto é urbanismo em Florianópolis. Graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1976, Silvia mora há mais de 30 anos em Florianópolis e dedicou a maior parte da sua trajetória ao planejamento urbano – foi presidente do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (1985-1987). Além do currículo e da extensa participação ativa no que se refere aos temas relacionados a cidadania, é também uma das fundadoras do Movimento Traços Urbanos, grupo multidisciplinar com 200 participantes aproximadamente, cujo propósito é a realização de ações coletivas para qualificar espaços públicos de Florianópolis.
Leia entrevista exclusiva com Silvia Lenzi concedida ao jornalista Cristiano Santos para o portal ArqSC.
Nos últimos anos temos visto as ocupações tomando forma em diferentes momentos e espaços. O que elas significam?
Ouvi, num seminário que tratava da revitalização dos centros urbanos, em Porto Alegre, que a burocracia para se obter as licenças exigidas para a realização de algum evento em espaços públicos é tão complicada que, muitas vezes, a alternativa é ocupar o espaço sem pedir licença.
É evidente que o atendimento aos regulamentos é necessário, mas não deveria tornar-se um fim em si mesmo. Quanto mais as prefeituras atuarem como balizadoras de iniciativas de movimentos cidadãos, reconhecendo sua importância e apoiando-os, mesmos naquilo que contribui para a revitalização das praças e das ruas das nossas cidades, todos saem ganhando com isso.
De onde vem esse empoderamento?
Entendo que uma das formas de empoderamento do cidadão ocorre por meio da participação em movimentos coletivos devidamente organizados. O Traços Urbanos é composto por um grupo heterogêneo de pessoas, de distintas formações, e desde o início acreditamos na possibilidade de trabalharmos de formas convergentes partindo do objetivo comum de contribuir para uma maior qualificação dos espaços públicos de Florianópolis.
Na medida em que fomos conseguindo concretizar e divulgar algumas idéias, mais pessoas foram aderindo a este Movimento, e os resultados positivos reforçam nossas convicções. Com esta nossa ainda incipiente experiência é possível afirmar que a apatia aparente das pessoas pode ser superada na medida em que elas passam a identificar outras pessoas com preocupações e motivações similares e com capacidade de se articularem para chegarem a algum resultado esperado.
Naturalmente, o momento histórico e político do país contribuiu para isso?
Sim. Isso também tem que ser considerado. Mas eu diria que o acelerado processo de urbanização nas últimas décadas vem gerando sociedades mais complexas, mas bem informadas e com um maior número de reivindicações.
O aumento do número e da diversidade dessas demandas vem pressionando os poderes públicos no sentido de oferecerem formas mais ágeis e compartilhadas de gestão urbana com os demais atores sociais. Os gestores que tiverem a percepção da importância e da urgência dessas mudanças e assumirem esta nova postura, com certeza, farão toda a diferença. .
Muitos dos movimentos surgiram e ganharam bastante visibilidade por meio da internet. Qual é a real força do digital na vida do cidadão e suas transformações?
Certamente, sem o apoio das mídias digitais provavelmente não teríamos alcançado tanta visibilidade. Estes recursos potencializam o trabalho de divulgação dos jornalistas, designer gráficos, técnicos de informática e outros tantos voluntários que integram o nosso Movimento.
Esta força do digital direciona holofotes tanto para as iniciativas coletivas como para as individuais. Mas num mundo saturado de informações, o reconhecimento e a valorização das mesmas, por aqueles que têm um posicionamento mais crítico, depende da consistência dos conteúdos expostos.
Você foi presidente do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF) no final do anos 1980, entre outras atuações da área. Ou seja, tens uma boa percepção de como estava e como está a Capital em relação ao planejamento urbano. Melhoramos ou pioramos?
Fui presidente do IPUF na gestão de Edison Andrino, primeiro prefeito eleito depois da ditadura militar. Esse período de abertura política trouxe novos ares, animando grupos de cidadãos a buscarem uma participação mais ativa, reivindicando direitos ou se dispondo a contribuir na fiscalização das áreas de preservação como no caso da Associação dos Surfistas do Campeche.
Desde então, mesmo que o progresso tenha sido lento, acho que avançamos em alguns aspectos no que se refere aos assuntos urbanos. Citando alguns exemplos: atualmente, existe no Estado um número significativo de doutores nessa área atuando no meio acadêmico; vários empresários catarinenses com visão mais progressista contratam equipes multi diversificadas para desenvolverem seus planos de urbanização e as pessoas, cada vez mais, vêm demonstrando interesse e participando de discussões sobre políticas públicas. Paralelo a isso, os órgãos de planejamento municipais vêm sendo sucateados ou extintos e os que permanecem têm suas equipes sub-dimensionadas.
Mesmo com o agravamento das condições das principais funções urbanas, dentre as quais a mobilidade é um dos exemplos mais gritantes, isso evidencia que o planejamento urbano ainda ocupa uma posição secundária no âmbito das administrações públicas.
Em meio a tanta tecnologia estamos fazendo um caminho de retorno? Essa preocupação com a praça em frente a nossa casa (ou a calçada, algo tão simples e ainda tão mal elaborado na maioria das cidades), por exemplo, vem daí?
Eu procuro olhar para a tecnologia como uma grande aliada, quando adequadamente utilizada. Sem prevalência de um sentimento de nostalgia carrego os aprendizados da vida e sigo em frente com os recursos que disponho. Acredito que o nosso desafio é avançarmos preservando o bom legado e incorporando o que encontramos de melhor pelo caminho: amigos, afetos, tecnologia, conhecimento, sabedoria… Só não consigo entender como coisas tão óbvias como calçadas confortáveis e praças amigáveis ainda são conquistas tão escassas e tão remotas.
Como dar valor aos espaços urbanos? Todo cidadão pode atuar?
A participação massiva de pessoas em programações realizadas nesses lugares é o sinal mais significativo de sua valorização. Também o aumento de pessoas que vêm adotando um estilo de vida menos dependente do carro, optando pelos percursos de bicicleta e pelas caminhadas a pé consagram a sua importância e oportunizam maiores interações sociais, tornando as cidades mais humanas.
Além da contribuição através da adoção desse estilo de vida, existem inúmeras outras possibilidades da maior ou menor grandeza para se atuar, ainda que de forma individual, na composição de espaços urbanos mais qualificados e consequentemente mais valorizados.
A incorporação e disseminação de boas práticas cidadãs cotidianas, a tomada de consciência do impacto da nossa “pegada ambiental urbana”, a contribuição na modelação dos espaços públicos através do tratamento “amigável” das fachadas das nossas casas e locais de trabalho são alguns dos exemplos que podem ser dados.
Em que momento se encontra o Movimento Traços Urbanos?
Num momento de reavaliação do que realizamos neste primeiro ano de atuação, identificando os nossos desafios e as maiores possibilidades de contribuições para a cidade. Isso passa pelo reconhecimento do potencial do Movimento composto por um coletivo de pessoas oriundas de diversas áreas de conhecimento e pelas limitações intrínsecas de um trabalho voluntário. A partir disso estaremos definindo as nossas ações para este ano.
No início do ano passado, a partir do grande grupo foram criados grupos menores responsáveis por atividades específicas. A nossa estratégia foi começar com ações possíveis de serem concretizadas num prazo de até três meses e irmos avaliando o processo e os resultados atingidos.
Quais suas esperanças no sentido da mobilização de múltiplas competências para o futuro das cidades?
Cada vez mais eu acredito que o momento da nossa história é o do fazer coletivo. Nenhuma das questões postas nestas reflexões serão resolvidas por uma única mente brilhante. Ao contrário, é na troca de saberes, nas atitudes solidárias e no entendimento de que toda a sociedade compõe um único organismo que necessita ser atendido na sua totalidade, é que poderemos superar muitos dos problemas agora enfrentados.