Somos um design a mais na história da Mãe Natureza. Esta afirmativa pode ferir nosso ego, tendo em vista o quanto nós nos desenvolvemos frente a outros ocupantes deste planeta. Mas é o que somos: um design que se destacou, mas que continua dependente de outras formas vida que não dependem de nós, mas às quais podemos fazer muito mal. Em contrapartida ao mal que podemos fazer, estas outras formas de vida nos pagam com paz, equilíbrio, beleza, alimento e saúde sempre que precisamos delas, consciente ou inconscientemente.
A natureza tenta continuamente romper o ciclo daninho que “causamos a nós mesmos quando causamos mal a ela”…é quase um paradoxo! Nos afastamos da natureza sem perceber década após década, e cada vez mais nos isolamos em espaços fechados, ao ponto de que passamos 90% do nosso dia em interiores artificiais (de acordo com a OMS). Somos chamados a “Indoor Generation”, e o pior: nos deparamos com a triste realidade de que passamos muito tempo habitando em espaços internos físico e mentalmente insalubres e antinaturais.
Muitos de nós estão empenhados em criar ou resgatar saberes multidisciplinares para proporcionar o equilíbrio nos espaços construídos. Áreas do conhecimento tais como a neurociência, a psicologia e a biologia formam a base da terminologia BIOFILIA, cujo conceito vai mudando com o tempo e com as novas tecnologias. A etimologia da palavra é philia (amor) e bio (vida): amor à vida, amor pelo que é vivo e é um caminho espetacular para alcançar o equilíbrio. Aplicada à arquitetura e ao design de interiores, a Biofilia abraça um desdobramento da neurociência: a neuroarquitetura.
De acordo com a arquiteta mexicana Jimena Fernández, sócia de um escritório especializado em projetos nos quais aplica os conceitos da Biofilia, esta se aplica no design de interiores utilizando-se de conhecimentos de três âmbitos interdependentes: a física e biologia, a psicologia e a ciência da cognição.
Outros importantes escritórios de arquitetura e design de todo o mundo estão recorrendo aos conceitos da Biofilia e adaptando-os graças aos estudos da neurociência para realizar projetos que transformam ambientes em espaços saludogênicos, ou seja, geradores de saúde, curadores. São ambientes que aumentam o estado de consciência e de confiança dos usuários, que respeitam a diversidade social e cultural (por exemplo, os projetos do arquiteto africano Francis Kéré).
Francis Kéré projetou o pavilhão de Tippet Rise inspirado nas estruturas sagradas de madeira e palha de Toguna nas comunidades Dogon na África Ocidental. Aninhado em uma floresta de choupo e choupo adjacente a Grove Creek e ao campus central do centro de arte, o Xylem é construído a partir de ponderosa e pinho sustentável e de origem local e possui um dossel vertical de toras, que filtra os feixes de luz nas áreas de descanso. As formas orgânicas dos elementos do assento são inspiradas em parte por pinturas abstratas criadas pela artista e co-fundadora Tippet Rise, Cathy Halstead, com base em formas de vida microscópicas, além da topografia sinuosa das colinas circundantes. (Fonte: www.kere-architecture.com)
Outros, há décadas e até séculos atrás, já intuíram sobre a necessidade de trazer os padrões da natureza para o papel e levantaram edifícios que são verdadeiras obras primas. Analise a Basílica da Sagrada Família (Antoni Gaudí, início em 1882 e inacabada) em Barcelona e a Igreja de Sainte Chapelle (1248) em Paris e verá como a natureza pode se manifestar na arquitetura religiosa em grande escala e de formas tão diferentes.
Muito além da vegetação
Trazendo a natureza para dentro dos espaços internos não se resume, absolutamente, em apenas incluir vegetação. Aliás, mesmo utilizando o conceito de biofilia há espaços que não têm nenhuma planta, mas ainda assim são ricos em referenciais visuais da natureza percebidos consciente ou inconscientemente. Por isso, a Biofilia aplicada ao design também é conhecida como a “2ª natureza”.
Nosso cérebro é capaz de reconhecer padrões da natureza que estão gravados em nossa memória. Quando reproduzimos certos desenhos, texturas e proporções que estão presentes nas formas em micro ou macro escala da natureza somos transportados inconscientemente a uma sensação de bem estar natural. Um exemplo disto é a sequência Fibonacci, que está presente em uma infinidade de formas da natureza e os fractais. O profissional deve ter este conhecimento. Os revestimentos de piso, paredes e teto ajudam muito neste sentido, reproduzindo padrões que nosso cérebro reconhece na natureza, sem ser necessariamente algo figurativo como uma folha ou flor, mas as também as formas abstratas que se geram na natureza como os fractais.
Nosso cérebro necessita de cores: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, violeta e de todas as terciárias, não necessariamente todas juntas. Existe na natureza algum lugar em que não haja presença de alguma delas? Até nos polos, onde impera o gelo aparentemente branco, se pode apreciar o azul do céu. As cores estão presentes na natureza e variam conforme as horas do dia, conforme o ciclo de vida dos seres vivos e das estações do ano.
A biofilia também está presente quando reproduzimos nos ambientes aromas, sons e texturas naturais: água, canto de pássaros, som de árvores ao vento, cheiro de terra, grama cortada, flores e essências diversas.
A empresa Mohawk Group cria coleções com desenhos baseados em padrões encontrados na natureza para dar descanso ao nossos olhos cansados pelo estresse digital. Utiliza arte, ciência e design para criar desenhos inspirados nos fractais, e agregar a seus produtos parte da essência da natureza que o ser humano reconhece instintivamente.
Envolvimento e Cuidado
Trazer a vegetação para dentro deve ser algo muito além do mero efeito decorativo. Dentro do conceito da Biofilia, para que o usuário tenha realmente interação com o verde, as plantas devem ter uma função prática e o usuário deve se envolver em seu cuidado. Desta forma se pode projetar pequenas hortas, cultivar árvores em vasos, enfim, envolver o usuário nos cuidados com o espécime vegetal e que ambos se beneficiem desta colaboração.
No artigo intitulado “Nature-Based Design: the New Green” (Design baseado na natureza: o novo verde), encontramos a impactante informação sobre os Padrões Fractais: “Há evidências de que as geometrias irregulares e auto-semelhantes que ocorrem em todos os lugares da natureza têm um papel significativo a desempenhar na criação de ambientes construídos que contribuem para o desempenho e bem-estar humano. Como afirma Lance Hosey, chefe diretor de sustentabilidade no escritório de arquitetura RTKL e autor de The Shape of Green: Aesthetics, Ecology, and Design: “Respondemos de forma tão dramática a este padrão que ele pode reduzir os níveis de estresse em até 60 por cento – apenas por estar em nosso campo de visão”. Sugere incorporar formas fractais – particularmente aquelas que remetem aos padrões formados pelos limos, galhos e ramos das acácias na Savana africana – sempre que possível. Projetos têxteis, arquitetônicos o de móveis detalhando formas semelhantes que repetem em escalas, qualidade da natureza que os humanos consideram simultaneamente estimulante e repousante.”
Biofilia em hospitais
Muitos estudos já comprovaram a importância do conceito da Biofilia quando aplicado a espaços críticos como, por exemplo, os hospitais. A arquiteta Marilice Costi já nos alertou em seu livro “A influência da luz e da cor em corredores e salas de espera hospitalares”, EDIPUCRS, 2002, de que os familiares reduziam seu nível de ansiedade pela espera quando as áreas comuns tinham cor, iluminação planejada, elementos naturais como aquários e plantas, dentre outras estratégias. Outros estudos falam de pacientes internados, os quais se curam antes ou necessitam menos medicamentos quando se encontram em ambientes onde há presença real ou sugerida da natureza e onde há abundância de luz natural.
Os princípios da Biofilia aplicados aos espaços interiores podem reduzir a possibilidade dos trabalhadores de desenvolverem “burnout”. As pessoas são mais criativas e produtivas quando estão felizes, o que nos leva à conclusão óbvia de que as empresas devem querer trabalhadores felizes. A Biofilia aplicada nos projetos comerciais tem um potencial imenso e incrível para atingir a muita gente e em pouco tempo.
A designer Rosalyn Cama conta que com frequência em suas palestras faz uma rápida enquete entre os presentes, pedindo que pensem numa situação estressante a qual foram submetidos nos últimos dias. Em seguida, os desafia a pensar para qual lugar fugiriam para se afastar daquela situação estressante. O resultado que observa há anos é que 95% das pessoas afirmam querer escapar para um local ao ar livre. Em sua opinião, “representar as preferências dos humanos por um habitat natural em um ambiente urbano por meio da imitação é o próximo passo lógico em um movimento de ecodesign”.
O International Journal of Environmental Health Research de 2011 compilou resultados de várias disciplinas diferentes para desenvolver 12 “recomendações de contato sobre a natureza com base em evidências” a fim de “criar locais saudáveis”. Entre eles estão: cultivar solos naturais para visualizar, manter jardins medicinais, aceitar animais dentro de casa, iluminar salas com luz natural resplandecente, fornecer uma visão clara da natureza exterior, exibir uma fotografia da natureza ou uma arte realista da natureza. É um desafio estimulante pensar como os arquitetos e designers podem incorporar criativamente tudo isto ao projeto.
Biofilia como recurso para o bem-estar
Como arquitetos sempre nos perguntamos: qual é o futuro da arquitetura e qual é nossa responsabilidade como profissionais? Queremos com nossos projetos ajudar a criar sociedades mais empáticas, justas e felizes. A Biofilia é um caminho que promove a conectividade entre pessoas, a natureza e a espiritualidade, através de soluções aplicáveis desde o urbanismo até ao design de produto. Soluções estas que se alinham com nossos instintos naturais e permitem que as pessoas se sintam bem, trabalhem melhor e mais felizes.
Se as pesquisas em neurociência já demonstraram os benefícios dos princípios da biofilia para o ser humano, o que estamos esperando para por em prática em nossos projetos aquilo pelo qual nosso cérebro evoluído ao longo de milhares de anos está pedindo que façamos? Abramos nossa mente, estudemos mais sobre o assunto, e mãos à obra! Nossos genes estão à procura de profissionais que abracem esta causa.
Para saber mais
- Livros do matemático Nikos A. Salíngaros, que é reconhecido por seu trabalho sobre teoria urbana e arquitetônica, filosofia do design. (há vários vídeos dele também)
- Livros de Stephen R. Kellert professor de ecologia social na Escola de Yale de Silvicultura e Estudos Ambientais (F&ES), cujas pesquisas e escritos aumentaram a compreensão da conexão entre os humanos e o mundo natural. Em um de seus livros “Projeto biofílico: a teoria, a ciência e a prática de dar vida a edifícios”, apresentou uma lista de seis elementos de projeto biofílico e 72 atributos de projeto biofílico que criam uma diretriz para quem busca alcançar um projeto biofílico em um ambiente de construção moderna.
- Escritório do arquiteto colombiano Trino Sánchez
- Textos e entrevistas de Linda Sorrento, conceituada designer de interiores americana.
- Site do escritório de arquitetura Hopkins Architects do Reino Unido:
- Observar as obras do arquiteto catalão Antoni Gaudí também é mergulhar nos princípios da biofilia através de seus padrões biomórficos.
- Veja este delicioso vídeo com imagens de fractais formados pelas marés: “Armonia fractal de Doñana y las marismas.
Maria Pilar Arantes é arquiteta e pós-graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Fundadora do Centro de Artes e Design em 1999, um centro de pesquisa, ensino e difusão do design de interiores. Colabora com revistas e portais especializados em arquitetura e design de interiores. Autora do livro “Fundamentos da Estética em Design de Interiores” lançado pela Editora MSPublishers. Estudiosa de História da Arte pela universidade espanhola UNED e colaborado do ArqSC desde 2018.