Artigo publicado originalmente no anuário ArqSC 10 edição (2018), com exclusividade para o impresso.
A fundação do Masc – Museu de Arte de Santa Catarina – se assemelha com registros em cartórios de antigamente, quando os familiares da criança podiam decidir a data de seu nascimento, dosando benefícios obtidos com a nascença. Mas, sabemos, um museu nasce e é indissociável do momento em que seu acervo é constituído, pesquisado e exibido. Neste ponto, nossa história começou no pátio do Grupo Escolar Dias Velho, em 1948, assim como, em 1905, a Pinacoteca do Estado São Paulo nascia com 26 obras em seu acervo, apresentadas na Galeria de Pintura do Liceu de Artes e Ofícios da cidade.
O que resta saber é quanto o Pátio Marques Rebelo, o primeiro museu de arte de Santa Catarina, fundado em 1948, poderia se tornar um segundo exemplo de parceria público-privada no Brasil, relativo à constituição de um museu com interesse na produção moderna e contemporânea. Resta, também, questionar o decreto como marco fundador do museu, deixando o trabalho de artistas que doaram obras em 1948 – cujas aquisições seriam impraticáveis em nossa realidade atual – à sombra da história. O gesto parece ingênuo: reconsiderar a data da fundação do Masc em 1948, revisando seu marco fundador atrelado ao decreto de 1949. Mas quero acreditar que, assim o fazendo, conquistaremos algum poder de voz e de autonomia na elaboração, condução e sistematicidade do seu programa, preservando o compromisso do museu com a sociedade, a cultura e, sobretudo, a prática artística. Pode acontecer de museus perderem seus acervos, fato ocorrido com o Museu de Arte Moderna de São Paulo, fundado em 1948, quando Yolanda Penteado e Ciccillo Matarazzo, seus fundadores, doaram-no à USP, que criaria o Museu de Arte Contemporânea (1963) com obras essencialmente modernistas. Isso porque os diretores do MAM, interessados em preservar a história, haviam decidido reconstituir a coleção perdida e manter seu nome.
Com isso o museu reergueu-se com obras essencialmente contemporâneas, causando algo inédito na história dos museus no Brasil: uma coleção moderna em um museu de arte contemporânea e o contrário, em grande medida, no que concerne ao MAM. Há, ainda, perdas envolvendo tragédias, como a de 1978, quando um incêndio no MAM do Rio de Janeiro destruiu parte considerável do acervo de 1.000 obras, adquiridas desde 1948. Recentemente, outro museu perdeu seu acervo e sua história, trata-se do extinto Museu de Arte do Paraná (1983). E como decretos não garantem a sobrevivência do museu, outro decreto, anos mais tarde, o destituiu de seu acervo, que passaria a integrar o Novo Museu (2002), atual Museu Oscar Niemeyer.
Decretos e Museus
O que nos leva a pensar sobre questões determinantes na história de um museu: podem decretos constituir e fundar museus no Brasil, quando criados em parceria público-privado? O que se espera de decretos é que reconheçam o esforço e favoreçam a constituição de uma coleção, estabelecendo, expressamente, por meio de resoluções, seu interesse pela conservação, pesquisa, difusão e, sempre que possível, pelo seu enriquecimento. Neste ponto, o decreto 433, assinado em 18 de março de 1949 no governo de Aderbal Ramos da Silva e, mais tarde, o decreto 9.150, de 4 de junho de 1970, preservam compromissos com a instituição museal criada à época. O primeiro o transformaria em Museu de Arte Moderna de Florianópolis (1949), enquanto o segundo em Museu de Arte de Santa Catarina (1970).
Caberia, contudo, restituir à fundação do atual Masc a data de 1948, pois os 69 anos que separam a assinatura
do primeiro decreto correspondem, em grande parte, à pouca autonomia da instituição e sua desestruturação
crônica. Sem isso, não parece viável o funcionamento do projeto iniciado, um ano antes, por artistas e amantes
da arte, entre os quais figuram agentes incontornáveis na história da arte brasileira do século XX. Assim, embora
a primeira das três etapas históricas do Museu de Arte de Santa Catarina seja documentada, ela parece confundida entre datas que exploram e enaltecem, antes de tudo, o reconhecimento da instituição via lei do estado de Santa Catarina. De modo a perceber urgentes o debate e a revisão historiográfica na ocasião em que o museu comemora seus 70 anos. Com relatos amplamente documentados, Biografia de um Museu (2002), publicado dez anos depois da morte de Harry Laus, que teria começado a pesquisa em 1989, contou com a organização de João Evangelista de Andrade Filho e surge com textos de figuras centrais na construção do atual Masc, a exemplo dos fundadores do Grupo Sul, de Salim Miguel e de Alcídio Mafra de Souza, que abre o primeiro texto, intitulado MAMF/MASC: reencontro meio século depois, com a reveladora frase: “a bem dizer, a decisão de lutar pela criação de um museu de arte, em Florianópolis, surgiu no início de março de 1948, férias findas.” É notável perceber que, no ano da publicação da biografia do Masc, o Museu de Arte do Paraná perdia a sua, também por decreto, vítima da política do novo que qualifica nossas iniciativas públicas, em muitos casos, nefasta e altamente destrutiva. Com isso, reconhecer o êxito da “luta” travada por intelectuais, artistas, políticos e amantes da arte como algo determinante para a formação do acervo faz dessas investidas iniciais a causa primária da constituição do museu.
Pátio Marques Rebelo (1948), primeiro museu de arte de Santa Catarina
Após o término da exposição realizada no pátio interno do Colégio Dias Velho, entre 25 de setembro e 6 de
outubro de 1948, organizada por Marques Rebelo, o primeiro museu de arte de Santa Catarina passaria a
ganhar corpo, formado com obras de grande relevância para o século XX. Nesse breve período o museu
chamou-se Pátio Marques Rebelo. Salim Miguel escreve na Biografia de um Museu: “como resultado imediato
da exposição, surgiu um pequeno Museu, o pátio Marques Rebelo, sob a guarda de Martinho de Haro. O
acervo inicial foi ampliado. Rebelo conseguiu, com o governador de São Paulo, Ademar de Barros, doação
de quadros dos principais pintores paulistas. O mesmo fizeram, se bem que em doses reduzidas, o poder
público estadual e particulares”. Um ano antes, situado ao número 230 da rua Sete de Abril, no centro de São
Paulo, o Museu de Arte de São Paulo se instalava no Condomínio das Emissoras e Diários Associados, que abrigava a recente e reduzida coleção do Masp, criado por Assis Chateaubriand, que doou ao museu, no mesmo ano, obras como A Senhora Aimée (1945) e São Francisco (1941), de Portinari. Ou, ainda, Retrato de Suzanne Bloch (1904), de Picasso, doação de Walther Moreira Salles, também em 1947. Do mesmo modo, respondendo ao projeto de modernização do Brasil, o MAM do Rio de Janeiro, criado em 03 de maio de 1948, contava com poucas obras em seu acervo inicial. Inclusive, até o ano de 1952, quando foi instalado na sede do Ministério da Educação e Saúde Pública, dependeu de instalações improvisadas, obtidas com o apoio de um de seus diretores, Thomaz Oscar Pinto da Cunha, também diretor do Banco Boa Vista, onde o museu ficaria instalado por 4 anos.
Quanto ao museu situado no Pátio Marques Rebelo, com Martinho de Haro na direção, algumas confusões
relativas à biografia surgem por reconhecermos, conforme aponta Salim Miguel, que ele existia após o término da exposição, quando passou a colecionar obras de artistas como Alfred Kubin, Djanira, Iberê Camargo, Jan Zach,
José Silveira D’Ávila, Noemia Mourão, Oswaldo Goeldi, Tomás Santa Rosa.
Vale notar que este primeiro acervo, de 1948, teve apoio do governo, na figura de Armando Simone Pereira, que estava à frente da Secretaria da Justiça, Educação e Saúde. Não bastasse isso, o Pátio Marques Rebelo seguiria sendo o espaço onde o museu criado por decreto seria instalado até o ano de 1952, data que coincide com a transferência do MAM do Rio de Janeiro. A confusão não parece menor ao ler, no referido livro, que “o Pátio Marques Rebelo, junto com a pressão do Grupo Sul e do próprio Secretário Simone, tornaram a criação do museu irreversível”. Problema de método: a criação do museu já havia sido feita; o que conseguimos, em
1949, foi um decreto. Um exemplo vizinho demonstra nosso equívoco. O Museu de Arte do Rio Grande do Sul,
que nascia com o decreto 5.065, em 1954, sob a iniciativa do Secretário de Cultura, José Mariano de Freitas Beck,
e a direção do artista Ado Malagoli, teve sua inauguração em 1955, em virtude da inexistência de acervo.
MAM de Florianópolis (1949, decreto – 1952, inauguração da sede) MASC (1970)
Seja como for, o decreto 433 do governo de Santa Catarina animou intelectuais, artistas e a sociedade em geral, que via nascer o MAM de Florianópolis, com obras obtidas no período do Pátio Marques Rebelo. Com isso, mobilizaram novas aquisições, e amantes da arte doaram obras de grande relevância ao museu. De modo
que tudo parecia conduzir o MAM de Florianópolis à notoriedade que a cidade almejava. Mas não tardou para
doações questionáveis aparecerem: reproduções de artistas europeus como Rembrandt, Renoir, Picasso, Matisse figuravam entre tentativas de o município de Florianópolis colaborar para o primeiro museu público de arte moderna do Brasil, um desserviço incomensurável ao ainda pouco provável rigor com que definimos nossa política de acervo. Neste cenário, eventos e esforços exitosos fizeram o governador de São Paulo doar oito óleos de artistas como Mario Zanini, Penacchi, Volpi, entre outros. Bruno Giorgi doou uma escultura em gesso na mesma época. Mas foi a inércia e a expectativa por parte da sociedade civil em relação ao governo o que faz o cenário piorar de quadro. Em 1951, o mesmo Salim Miguel, que reconhecia a criação do museu em 1948 em esforço conjunto entre o Estado e a sociedade civil, escreveu artigo na Revista Sul questionando “a quem caberá a culpa a quase natimorte e consequente paralisação do museu?”.
No momento em que obras da coleção do museu desapareciam, o decreto parecia apenas acalmar os ânimos do
público, apesar de sua estruturação e efetivação permanecerem esboços que não saíam do papel. Com uma casa
provisória e pouco adaptada, o MAM de Florianópolis passaria a realizar, entre 1952 e 1955, mostras importantes
de artistas locais, debates e ações de formação. Já entre 1955 e 1956, encabeçados por Martinho de Haro, a
instituição tornaria pública, pela primeira vez, sua incapacidade de realizar “sequer uma das exposições almejadas” por falta de recursos e apoio do Estado. Enquanto isso, Martinho de Haro e Marques Rebelo
mobilizavam, o que faziam desde 1948, novas doações, que incluiriam outra tela de Volpi, além de obras
importantes de artistas como Milton Dacosta, Bustamante Sá e Guignard.
Salão de Festas (2017)
Ao chegar ao Museu de Arte de Santa Catarina, em abril de 2017, ouvi alardes gerados por programação realizada para a comemoração dos 68 anos do museu. Descobri, com isso, que nunca havia sido considerado o ano de 1948 como marco fundador da instituição. Além disso, com a agenda e o programa curatorial definidos tal um salão de festas que preenche datas com critérios que preservam exclusivamente a manutenção do espaço, inauguramos, em maio, a coletiva Salão de Festas, que contou com a participação de Aline Dias, Diego de los Campos, Ivan Grilo, Laura Lima, Luciana Knabben, Nara Milioli, Traplev, Nuno Ramos e o projeto Armazém, que realizava uma grande ocupação no museu. Foi de grande importância, neste contexto, o apoio obtido do então presidente da Fundação
Catarinense de Cultura, Rodolfo Pinto da Luz, quem possibilitou, como pôde, a construção de um programa curatorial e, sobretudo, sustentou o olhar autocrítico e realista, reconhecendo a importância da revisão historiográfica do Masc.
A obra de Nara Milioli e Traplev, datada de 2005, apresentava duas cartas redigidas pelos diretores do Masc,
em 1985 e 2005. Ambas preservam a mesma tônica: o descaso do governo em relação ao museu, repetindo o discurso que Martinho de Haro tornava público em 1956. Sem recursos, Harry Laus e João Evangelista, respectivamente, dirigiam as cartas a artistas que solicitavam apoio ao museu. Tomadas por Nara Milioli e Traplev, que as inscreveram como obra no extinto, desde 2008, Salão Nacional Victor Meirelles, as cartas reproduzidas em formato A1 ganharam um dos prêmios do Salão e passaram a integrar nosso acervo. Lado a lado, denunciam um problema surgido no exato momento da criação do Masc: sem recurso, com equipe fragilizada, desconsiderado pelo Estado, que não raro o entende como cabide de empregos, o Masc sofre as consequências de estratégias irrelevantes para a efetivação do desenvolvimento da arte e da cultura em Santa Catarina.
Estou seguro de que construímos um verdadeiro museu em 1948, com o apoio de artistas que à época eram
vistos como comunistas, vagabundos e desocupados. Com a força inicial dessas figuras, o Estado conta com um dos mais valiosos patrimônios artísticos do país, avaliado em dezenas de milhões de reais. Hoje o Masc tem um dos melhores acervos de Santa Catarina, está instalado em área nobre da cidade, embora a estrutura mantenha sua condição acefálica, ilhada dentro da cidade. Possui equipada e ampla reserva técnica, desertificada pela falta de equipe e de comprometimento do Estado. Com este panorama não exaustivo e depois de realizar a exposição Salão de Festas, parecia possível entrar em negociação com a sociedade civil, a classe artística e o poder público.
Produzindo demanda e autocrítica fundamentada, acredito possível seguirmos com a luta mencionada por
Alcídio Mafra de Souza. Isso porque, com os feitos de 1948, o Masc figura entre os principais museus de arte da América Latina, não fosse o fato de incertezas futuras — relativas à sistematicidade de seus programas de conservação, pesquisa, difusão e enriquecimento de sua estrutura e acervo, assim como à urgência na constituição de uma equipe que atenda aos diferentes setores da instituição — nos manterem reticentes em relação às reais possibilidades de salvaguardar as conquistas de Marques Rebelo e Martinho em Haro, em 1948, aos quais dedico este texto.
Josué Mattos – curador do MASC. Graduou-se em História da Arte e Arqueologia na Université Paris X Nanterre, onde concluiu mestrado em História da Arte Contemporânea. Na mesma ocasião, iniciou mestrado em Práticas Curatoriais, na Université Paris I Panthéon-Sorbonne. A convite do SESC SP concebeu o projeto Frestas -Trienal
de Artes. Em 2017, obteve o 6º Prêmio CNI SESI SENAI Marcantônio Vilaça de curadoria.