criar, apropriar, traduzir, mixar, inventar, reler, compor, originar, adaptar, citar, ressignificar, homenagear, interpreta, reapropriar, remixar, recompor, plagiar, samplear, colar, redefinir
Uma miríade de termos designa múltiplos processos de ação – criação e transformação – em diferentes esferas da vida contemporânea. Quando tudo parece já ter sido inventado, onde está o novo? Aliás, o “novo” ainda importa? Como ser uma/um criadora/criador original e relevante num contexto de excessivos objetos, discursos e apelos? E o que seria do design, da arquitetura, da arte sem a recorrência a feitos históricos para compor crônicas e críticas do presente? Afina’, a autenticidade é uma qualidade significativa numa realidade onde tanto serve a tão poucos? Coisas autênticas ou pessoas autênticas?
É da possibilidade aberta à experiência da circunstância, do ser-em-situação e do devir que nasce a autenticidade. Autêntica é a vida que se opõe ao consenso das massas e descreve uma trajetória própria, construída a partir da inescapável imbricação entre ser e tempo.
As reflexões de Martin Heidegger sobre a vida autêntica podem nos trazer pistas para uma apreensão crítica dessa conjuntura complexa. Se na filosofia do grego Platão o tempo é o promotor do vir-a-ser e da mudança, enquanto o ser é um ente fixo, para o autor alemão o tempo é, ele mesmo, a condição de um ser indefinível. A identidade não faz oposição à transitoriedade do tempo, mas nela se erige indeterminada e sobre ela atua. “É no tempo que o ‘ser-aí’ pode se projetar, só no tempo é que pode se enfrentar com o mundo em busca de seu projeto projetado” (Heidegger, 2002). Projetar é tomar consciência do tempo, de seu caráter transitório e da determinação da finitude da vida. É da possibilidade aberta à experiência da circunstância, do ser-em-situação e do devir que nasce a autenticidade. Autêntica é a vida que se opõe ao consenso das massas e descreve uma trajetória própria, construída a partir da inescapável imbricação entre ser e tempo. Por outro lado, tem vida inautêntica quem está dominado pela faticidade, a ponto de apenas recolher-se às condições que experimenta, declinando da potencialidade do novo. A autenticidade designa, assim, a capacidade viva de poder ser, em oposição à fixidez impessoal que baliza a inautenticidade. Vivenciar o fenômeno e escapar à sua determinação: eis o desafio proposto pela filosofia heideggeriana. Ser autêntico não é mesmo nada fácil…
Enquanto isso, em Paris…
Em 2020, a sucursal francesa da revista Architectural Digest (AD France) publicou o projeto da nova sede parisiense da grife Jacquemus. A marca é comandada pelo jovem designer Simon Porte-Jacquemus, reconhecido pela estética cool de criações que flertam com o moderno e o retrô. A companhia atua nos segmentos de vestuário, acessórios, design de objetos e, mais recentemente, de interiores. Coerentemente com o repertório visual característico de seu estilo, os espaços corporativos da Jacquemus misturam o minimalismo a ícones do design modernista alemão, italiano e francês e a elementos das paisagens interioranas do sul da França.
Em 13 de janeiro de 2021 a plataforma curatorial de design Say Hi To, hospedada no Instagram (@sayhito) e comandada pela designer Kristen de la Vallière, apontou um caso de plágio numa área do referido projeto publicado pela AD France. Ela mostrou através de imagens a completa reprodução de uma proposta original de 1932 assinada por Hans e Wassili Luckhardt para um escritório no referencial projeto modernista da Villa Kluge, em Berlim, capital da Alemanha (confira abaixo a comparação das fotos dos ambientes).
Ao se confrontarem os dois projetos, fica evidente a cópia contemporânea, que se dá em praticamente todos os elementos: layout, materiais e paleta de cores, desenho da mesa de trabalho, cadeira e acessórios. A similaridade – notória inclusive nos registros fotográficos dos projetos – é tal que pode surgir a sensação de que se trata, na verdade, de uma reprodução intencional a título de homenagem aos criadores alemães. Entretanto, créditos ou menções a eles jamais foram feitos por Jacquemus, tampouco pela publicação.
Além de questionar a ética na criação do projeto, Kristen de la Vallière convidou a revista a se manifestar e explicar sobre seu processo editorial e sua chancela a um trabalho que viola direitos autorais, já que os verdadeiros autores não são citados em nenhum momento. Na data da publicação do Say Hi To sobre o plágio, a editora-chefe da AD France, Sofre Piquet, procurou Kristen para questionar seus argumentos. O teor da conversa está transcrito a seguir, em livre tradução:
Sophie (S): “Não entendo qual é o problema. Você viu escrito em algum lugar que Simon (Jacquemus) é o autor da mesa de trabalho?“
Kristen (K): “Oi, ele aplicou seu logo sobre a peça copiada. Todos sabemos que ele é famoso por copiar o trabalho dos outros e assumir a autoria, mas isso já está indo longe demais.”
S: “Este é o escritório dele, eu acho que ele pode colocar o seu logo na entrada, não?”
K: “Mas esta é uma cópia exata de um famoso trabalho de outros designers, sem dar o devido crédito a eles.”
S: “E ele pode colecionar obras-primas de design em seu escritório, não?“
K: Ele comprou a peça (mesa de trabalho)? Porque as proporções não são, em absoluto, as mesmas do original. Com todo o respeito, eu acho que você deveria estar contra, e não a favor dele, defendendo essa coisa terrível que ele fez.
Isso torna tudo pior. E você ocupa uma posição em que deveria se opor a esse tipo de coisa. Fico profundamente chocada e decepcionada.”
S: “OK. Até logo. 😉 ”
Ao divulgar o caso de plágio em Paris, o Say Hi To acabou por cumprir a nobre missão de trazer à tona um tema tão caro ao universo criativo e que, neste caso, causa especial estranhamento por envolver renomados atores dos mercados de design e editorial europeus. A denúncia de Kristen dá voz não apenas ao passado por reivindicar respeito à memória de criadores já ausentes, mas também a pequenos produtores de design que possam estar submetidos aos interesses de poderosos grupos capitalistas.
Quanto aos envolvidos no caso, a assessoria de imprensa da Jacquemus enviou um pedido de desculpas genérico sobre a falta de menção aos designers autores da mesa de trabalho – como se esse fosse o único senão na criação do projeto -, e a revista Architectural Digest optou pelo silêncio, não apenas pela falta de manifestações institucionais, mas também ao remover de suas mídias sociais os comentários dos leitores sobre o fato, em atitude explicitamente refratária às críticas recebidas. A dificuldade de ambas as partes em discorrer sobre o episódio revela o constrangimento que pairava no ar. O silêncio é eloquente.
Saber responder
O psicanalista Jacques Lacan, em seu Seminário VII: a Ética da Psicanálise (1997) apresenta ferramentas que nos levam a decifrar os ecos desse silenciamento. Para o autor, a ética é o que faz dos seres humanos sujeitos responsáveis, ou seja, capazes de responder por suas condições de ser e fazer. Quanto mais afastada a pessoa está da possibilidade de colocar-se no ponto justo de sua verdade, mais precários de ética foram, são ou serão seus atos e seu discurso. Emmanuel Levinas (1988) entende a ética como um fenômeno resultante do reconhecimento do outro – a alteridade – e que se manifesta na relação entre duas ou mais pessoas. A ética implica, então, em acionar o dispositivo político da fraternidade e em desativar o mecanismo narcísico do individualismo. Diante de um ser inapreensível em sua totalidade (o outro), Levinas propõe um movimento de aproximação e acolhimento. A capacidade de fazer frente ao apelo do outro a partir da consciência sobre ações e omissões funda a responsabilidade ética.
A frágil arguição de Sophie Pinet diante da revelação da réplica imprópria do antigo projeto alemão em Paris pode ser analisada pelo viés da responsabilidade. Como defender o uso indevidamente oculto de uma criação alheia para se obter algum tipo de vantagem, seja ela simbólica ou financeira? Onde estaria a justeza, ou a justiça, de um ato de plágio? As premissas éticas do trabalho de criação original, a fluidez de conceitos e processos criativos, bem como as atribuições dos veículos de comunicação na construção de práticas profissionais idôneas nos campos do design, da arquitetura e da arte são problemas bastante complexos.
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Direito Autoral
Embora os limites que distinguem apropriações, citações e referências das meras cópias não sejam absolutamente nítidos, há um marco conceitual importante nesta discussão: o direito autoral. Ele consiste no conjunto de garantias que a lei oferece aos criadores de obras intelectuais, visando a resguardar a exploração de suas criações. O principal instrumento jurídico que atua para criar certos parâmetros protetivos às atividades criativas em nosso país é a Lei nº 9.610/98 promulgada no ano de 1998. O Brasil é também signatário da Convenção de Berna, um tratado internacional que define regras sobre direitos autorais em caráter suplementar às leis nacionais. A legislação de direitos do autor protege tanto os seus direitos morais quanto os patrimoniais. Se os direitos patrimoniais que dizem respeito à utilização e exploração comercial da obra têm prazo legal e podem ser transferidos a terceiros ou renunciados, além de serem transmitidos a herdeiros após o falecimento do autor, os direitos morais são vitalícios, irrenunciáveis e garantem ao autor a necessária indicação de autoria em quaisquer usos, assim como as prerrogativas de decisão sobre a circulação e alterações na criação.
Em princípio, o tempo de duração da proteção do direito autoral é estabelecido pela legislação nacional de cada país. Mas, de acordo com a Convenção de Berna, o prazo mínimo geral é de 50 anos após a morte do autor. No Brasil, as obras são protegidas por 70 anos após a morte dos autores, com exceção de trabalhos fotográficos, audiovisuais e coletivos, que são resguardados por 70 anos contados a partir de sua publicação. Transcorridos esses prazos, todas as obras entram em domínio público e poderão ser livremente usadas por qualquer um, sem necessidade de pagamento ou prévia autorização do autor ou de seus sucessores. Entretanto, a autoria do bem é intransferível em qualquer tempo e lugar: “Dom Casmurro”, livro publicado pela primeira vez em 1899, será sempre uma obra de Machado de Assis (que faleceu em 1908), mesmo que venha a ser livremente reeditado e comercialmente explorado por uma editora em 2021.
Tomando-se como marco temporal o prazo definido pela lei de direitos autorais da Alemanha, país onde foi concebido e executado o projeto original replicado por Jacquemus, a obra de design poderá ser reproduzida e economicamente explorada por terceiros somente a partir de 2042, quando se completarão 70 anos do falecimento de Wassili Luckhardt, o mais longevo dos dois irmãos autores. Já os direitos morais advindos do vínculo intelectual entre autores e obra são imprescritíveis. Assim que, por nenhuma via ética e juridicamente plausível a replicação francesa do trabalho germânico seria viável.
Fronteiras borradas
Para além da esfera jurídica, os entendimentos que subsidiam formulações conceituais e práticas quanto ao uso de obras intelectuais são movediços. Quais as diferenças entre cópia e apropriação? Estas distinções requerem mesmo um maior rigor na definição de seus limites? Quais contaminações são percebidas entre tais conceitos e práticas?
Referência, homenagem, citação, sampleagem, tradução, mixagem, releitura, adaptação, colagem… Todas essas designações, além de tantas outras, indicam abordagens distintas ao ato de criar. Abordar é, aqui, encostar; aproximar; tomar bordo, adentrar uma embarcação feita de imaginação e trabalho. Os criadores são afetados por estímulos de várias ordens e procedências recebidos ao longo de suas trajetórias. Em muitas de suas proposições, eles não estão apenas interessados nas técnicas e intenções gerais adotadas por seus antecessores, mas nos elementos constituintes da obra referencial para reconstruí-los num mosaico inédito, genuíno e potente de significados. A isso podemos chamar apropriação.
Hibridismo: “Pantosh” é a poltrona criada entre 2008 e 2009 pelo estúdio carioca Latoog Design, a partir da fusão de duas peças icônicas do design ocidental do século XX.Apropriar-se de um feito criativo não é meramente copiá-lo, porque uma apropriação não é a repetição simples e direta de uma obra. É um trabalho de criação a partir dela. Se a originalidade não implica necessariamente em materializar algo que ainda não existe, ela aglutina processos de absorção, interpretação, adaptação, elaboração intelectual, inovações técnicas… Marcel Proust sintetiza este mote ao enunciar que “a verdadeira viagem do descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, mas em ver com novos olhos”. Ora, se a “paisagem” é a mesma, existe neste procedimento algum nível de repetição que é dado pela incorporação de parte ou do todo de uma obra pré-existente a outros elementos externos. Nessa rota, o criador migra de um sentido original em direção a um outro novo sentido que deseja conquistar. Um projeto inédito pode, inclusive, ser feito de excertos de obras existentes, estando a novidade criativa na junção das partes para fazer surgir uma narrativa híbrida.
Hibridismo: “Pantosh” é a poltrona criada entre 2008 e 2009 pelo estúdio carioca Latoog Design, a partir da fusão de duas peças icônicas do design ocidental do século XX.
Em contraposição ao esforço ativo da criação está a inércia da repetição integral, que é produto de uma simples reprodução do trabalho de outros criadores. A isso chamamos cópia.
Tal como um decalque, a cópia não acresce valor simbólico ou material à obra copiada. Ao contrário, o ato de replicar comumente advém do reconhecimento de valor do feito original. Por outro lado, podemos considerar que a cópia e a repetição com pequenas variações ao longo da história concorrem para a evolução de variados artefatos e eventos humanos. Não se trata aqui, portanto, de condenar sumariamente a cópia, mas de conhecer e avaliar o contexto concreto que a circunscreve.
A reprodução desmedida da vida contemporânea parece ter tornado desnecessária e antiquada a condição do original, sem referências aos verdadeiros inventores dos bens replicados em série. As tecnologias digitais tornaram o ato de copiar mais fácil e mais preciso, ao ponto de fazer cópias tão perfeitas que parecem originais de originais, com propriedades integralmente coincidentes com a matriz. Nesta perspectiva apresentada por Agustin F. Mallo (2018), a originalidade, portanto, não estaria perdida, mas sim multiplicada, dada a identidade entre original e cópia. O autor espanhol defende a noção de que já não existe “o original”, e sim diferentes cópias que são originais de uma mesma coisa. Copiar também pode definir o conceito mesmo de uma manifestação artística. Na Pop Art do americano Andy Warhol e do grupo espanhol Cronica, as cópias faziam crítica a uma cultura de massas marcada pela indiferenciação.
O dilema do respeito à criação não repousa sobre a cópia em si; mas em sua intencionalidade. Copiar para conquistar vantagem moral ou econômica implica lesionar o autor intelectual. Esta é uma conduta incriminada: plágio. Kristen de la Vallière, do Say Hi To, explica claramente o problema:
“Sou bastante liberal quanto a ideia de ‘copiar’ na medida em que penso que a criatividade é disparada por outras referências. O problema é que neste caso (plágio da Jacquemus) há uma cópia direta, mesmo quanto ao estilo. E o copiador obtém lucros fazendo as pessoas pensarem que suas ideias são originais, sem jamais creditar seus verdadeiros autores.”
O que distingue apropriação e plágio é, fundamentalmente, a transparência do processo criativo e as implicações resultantes desta estratégia ética. Ao explicitar as transposições de excertos ou integralidades de outros feitos criativos para uma nova obra, seu ator assume responsabilidades e sujeita-se a juízos morais e legais. A chave de projetos pautados pela ética do respeito aos direitos autorais é o grau de implicação do autor para com sua criação. Se a adoção de referências direitas ou indiretas de criações anteriores tem caráter acessório numa nova obra, ainda assim há que se reconhecer explicitamente sua relevância para a expressão criativa nascente.
A liberdade fatal
Sincronizar diferentes dimensões temporais para viver o agora requer a compreensão das condições objetivas da vida que atualizam o que já nos parecia arcaico e ultrapassado. Se uma mesa de Eero Saarinen criada em 1948 nos parece atualíssima, se “Roda Viva”, a crônica-canção composta em 1967 por Chico Buarque de Holanda ainda traduz tanto da realidade brasileira, certamente não se poderia falar de mera casualidade. Quantas inovações virão do nosso passado? Quantas tecnologias “disruptivas” guardam os acervos históricos? Pretérito e futuro se encontram na simetria de eternidades do presente e este tempo precisar ser conjugado e apropriado por vozes reflexivas.
A revelação do plágio protagonizado pela marca Jacquemus e exposto pela plataforma Say Hi To evidencia a necessidade de constante reavaliação de processos criativos e dos balizadores éticos no uso de obras intelectuais. Diante da denúncia e da obviedade da imitação, a reação evasiva da marca e da editora Sophie Pinet estabelece dúvida não apenas quanto à prática profissional da griffe de moda, mas também quanto ao trabalho da editoria da Architectural Digest: a tutela editorial ao plágio demonstra falta de conhecimento ou falta de ética? Talvez ambas. O desconhecimento quanto à história do design e da arquitetura, assim como em quaisquer campos da criação humana, pode fazer um bem histórico parecer novidadeiro. Daí surgem a ignorância quanto ao plágio e a legitimação da cópia. Quando veículos de comunicação relutam em corrigir omissões ou equívocos, abre-se um vácuo de responsabilidade que provavelmente será preenchido pelo engodo e a usurpação.
A relação entre plagiador e autor é biunívoca. Ela não está encerrada no vínculo espúrio entre o agente do plágio e o objeto copiado. O enleio aqui é intersubjetivo: um objeto ou obra é uma manifestação da ação intelectual de um ser criador e representa o sangue vivo do trabalho vivo de quem o trouxe ao mundo. O objeto material não é capaz, porém, de reagir por si só à agressividade de seu copiador. Assim, a ação-relação entre sujeito e objeto exige uma consciência ampliada da responsabilidade subjetiva do agente humano.
A dificuldade no exercício da responsabilidade ética parece estar na impessoalidade das relações, tanto entre sujeitos quanto destes com os objetos e o mundo natural. Essa despersonalização quer estabelecer um ponto neutro nestas relações, orientadas pelos vetores reificantes da indiferença e do desinteresse. Mas, como escreveu Jean-Paul Sartre (1997), “não podemos nos livrar de nossa liberdade”. Entre a determinação e o imponderável, a possibilidade de responder com autonomia quanto ao nosso agir no mundo da vida nos interpõe a ética como o sentido obrigatório de transformação.