O papel das escolas livres na construção de modelos alternativos de ensino em arquitetura
O ensino de arquitetura nas universidades brasileiras tem se transformado nas últimas décadas, buscando se aproximar das urgências das cidades e dos contextos sociais que compõem o território. Apesar de avanços importantes desde a criação dos primeiros cursos de Arquitetura no Brasil, ainda no início do século XIX, a estrutura pedagógica das universidades permanece, em grande medida, baseada em uma formação técnica e normativa, por natureza pouco aberta à experimentação, à crítica e à transdisciplinaridade. Isso não é um julgamento, é apenas a constatação do modelo pedagógico tradicional de ensino universitário, que opera dentro de uma lógica rígida, e, por um lado coerente com conteúdos e formações essenciais, mas por outro, com dificuldades para acompanhar os ritmos da prática profissional.
Nesse contexto, sabe-se que o número de cursos de Arquitetura e Urbanismo no Brasil têm crescido de forma expressiva, no entanto, as instituições enfrentam dificuldades para incorporar práticas pedagógicas libertárias, nos termos de bell hooks (2013) ou pedagogias radicais, nos termos de Beatriz Colomina (2022). Isto por que a necessidade de atender a demandas de natureza burocrática, mercadológica e tecnicista dificulta que as universidades incorporem estes processos de educação libertários. É nesse contexto que surgem as Escolas Livres de Arquitetura: iniciativas autônomas, horizontais e independentes que tem como objetivo preencher esse espaço de formação mais ampla.
Essas práticas de ensino permitem o encontro com perspectivas que nem sempre cabem no ensino tradicional: práticas artísticas, críticas, modos de vida diversos, experiências comunitárias e saberes locais. Nesse sentido, a formação complementar não é apenas um extra. É parte essencial de um processo contínuo de aprendizado que acompanha a vida profissional e pessoal de quem projeta, pesquisa, escreve, desenha ou simplesmente se interessa por pensar os espaços que habitamos.
OUTROS ARTIGOS DE LUCIANA FLORENZANO
A educação arquitetônica a partir da década de 1960
A década de 1960 foi marcada por transformações políticas, sociais e culturais em diversas partes do mundo. Os movimentos estudantis, as lutas anticoloniais, o feminismo, o movimento negro e a ascensão da contracultura colocaram em questão instituições tradicionais, inclusive as formas hegemônicas de ensino. No campo da arquitetura, esse contexto provocou não só a critica ao movimento moderno e ao funcionalismo, mas também deu voz a uma geração inquieta, que passou a reivindicar o direito à subjetividade, à diversidade de formas de habitar e à experimentação estética.
Nesse contexto, a arte conceitual também exerceu papel fundamental ao desmaterializar o objeto artístico e valorizar o processo e a ideia como partes do fazer criativo, influenciando práticas arquitetônicas que passaram a incorporar performances, manifestações, instalações e investigações sobre o corpo no espaço. A arquitetura deixa, então, de ser compreendida apenas como construção e passa a ser pensada como linguagem, crítica e ação relacionadas às experiências sociais e culturais.
Beatriz Colomina, arquiteta, pesquisadora e crítica, observa que durante as décadas de 1960 e 1970 “a educação arquitetônica foi abalada até o núcleo por uma verdadeira explosão de práticas experimentais de ensino em todo o mundo. Foi nada menos que uma revolução” (Colomina, 2022, p. 11). Ela observa que esse foi o período em que o campo se abre para novos tipos de pensamento e práticas associados a novos modos de percepção e comunicação. Essas práticas se aproximam do pensamento de Paulo Freire (2019), para quem a educação precisa partir da realidade concreta dos indivíduos oprimidos. Em A Pedagogia do Oprimido, obra central do autor publicada em 1968, ele propõe uma educação que chama de libertadora, pois se baseia no diálogo, em oposição ao modelo de ensino no qual o professor deposita o conhecimento nos alunos. Freire (2019) defende que o processo educativo deve partir da vivência dos próprios estudantes, reconhecendo seus saberes e estimulando sua consciência crítica para que se tornem agentes transformadores da realidade e, com isso, possam reconquistar sua humanidade (Colomina, 2022).
Ao colocar o aluno como agente ativo do processo de aprendizagem, a pedagogia de Freire (2019) inspira muitas experiências em arquitetura, especialmente aquelas que ensinam a partir do corpo, da performance, da política e da experimentação transdisciplinar. Essas práticas disruptivas no ensino da arquitetura inspiradas por Freire (2019) objetivam que o individuo tenha a capacidade de olhar para o mundo por si mesmo, tendo suas próprias decisões e opiniões que o permitam combater estruturas de poder.
Nesse sentido, para além das atividades de criação de maquetes e desenhos técnicos, por exemplo, a arquitetura também se aprende por ações coletivas, vídeos, manifestos, entre outros formatos que possibilitem a autonomia não só do aluno, mas também do espaço para a sucessão de eventos que nele possam ocorrer. Isto significa uma relação fenomenológica abrangente e múltipla dos espaços com os indivíduos e não a imposição de formas e das maneiras de se relacionar com a arquitetura. Em uma realidade atual onde os espaços são milimetricamente calculados e impostos aos usuários, cabe lembrar a possibilidade de pensar a arquitetura enquanto uma sucessão de eventos possíveis. Como pensava a arquiteta Lina Bo Bardi.
Ao invés de se fechar em limites rígidos, Lina reforçava que por meio da arquitetura, é possível se abrir ao imprevisível. Como arquiteta, ela gostava da mobilidade das poltronas e da possibilidade de criar configurações novas. A casa de vidro, sua residência, era famosa por ser um lugar de encontros, no qual não há um ponto de iluminação fixa no gesso e nem grandes sofás. Quase tudo na casa pode ser movimentado, abrigando muitas possibilidades de se relacionar com ela. Há uma ideia de autonomia aqui, mas não como uma linguagem que ignora o contexto ao redor e sim uma autonomia que enfatiza a liberdade da relação do espaço com os indivíduos. Trazer esse olhar sobre esses aspectos para o ensino arquitetônico é tão importante quanto ensinar cálculos luminotécnicos, especificações de materiais ou programas de representação tridimensional.

Para incorporar essa perspectiva de pensamento crítico e horizontal entre professores e alunos no ensino da arquitetura é preciso uma pedagogia libertária, como bem fala bell hooks (2013), pseudônimo da escritora, teórica e ativista Gloria Jean Watkins. Uma das mais importantes pensadoras feministas contemporâneas, com contribuições centrais nas áreas da educação, raça, gênero e crítica cultural, bell hooks (2013) propõe que educar seja um ato de liberdade, no qual todas as pessoas ensinam e aprendem ao mesmo tempo, de forma colaborativa e crítica.

Esse espírito encontra semelhança não só no que Lina Bo Bardi defendia, mas também no trabalho que vem sendo desenvolvido por Beatriz Colomina, especialmente no projeto Radical Pedagogies, que se tornou uma publicação no ano de 2022 e no qual são discutidas experiências pedagógicas que, desde meados do século XX, desafiaram os modelos hegemônicos de ensino da arquitetura. Colomina (2022) analisa escolas e métodos que, em diversos momentos históricos, propuseram rupturas com a rigidez curricular e criaram espaços de aprendizagem mais experimentais e contextuais.

Apesar das dificuldades da implantação desse modelo de ensino, que ainda enfrenta resistência institucional, falta de financiamento público e uma cultura acadêmica também pouco aberta ao novo, experiências de escolas livres de arquitetura têm sido cada vez mais frequentes. Essas instituições autônomas e independentes são encorajadas por redes de colaboração internacional, plataformas digitais de acesso ao conhecimento e uma nova geração de arquitetos e arquitetas comprometida com práticas sociais, críticas, transdisciplinares e colaborativas.
Experiências de escolas livres de arquitetura
Ao falarmos brevemente sobre o histórico dessas escolas livres, não se pode deixar de mencionar a Bauhaus, criada em 1919 por Walter Gropius, na Alemanha. Embora fosse diferente dos modelos pós-modernos e dos contemporâneos de escolas livres, a Bauhaus tinha a ideia de unificar arte, ofício e tecnologia, em uma proposta que buscava formar profissionais considerados completos, rompendo com as fronteiras entre as disciplinas. Foi a escola mais famosa de arquitetura no século XX e inspirou muitas instituições depois do seu fechamento em 1933, em razão da pressão do regime nazista.

Hoje existem algumas escolas e também modelos de comunidades que buscam diferentes frentes de atuação na arquitetura e no urbanismo para serem pensadas a partir de perspectivas transdisciplinares. Um exemplo é a All thins Urbans, situada na Alemanha e que se descreve como uma plataforma de carreira para urbanistas que trabalham com desafios urbanos em todo o mundo. Eles conectam indivíduos preocupados com as cidades, buscando unir pessoas e empresas que compartilhem de ideias semelhantes para os espaços urbanos.
Na América Latina, a chilena LA ESCUELA___ propõe uma pedagogia situada em práticas públicas, artísticas e espaciais que tangenciam a arquitetura. No Brasil, também vem surgindo nos últimos anos propostas nesse modelo de ensino transdisciplinar e livre da arquitetura, a exemplo da Escola Livre de Arquitetura (ELA) localizada em Porto Alegre, RS, fundada em 2018.

Nesse cenário promissor, mas ainda pouco explorado no Brasil, surge no final de 2024 a Aurora Escola Livre de Arquitetura, Arte e Urbanismo. Localizada em Florianópolis, SC, a Aurora se apresenta como uma proposta de articulação entre teoria e prática, investigando o espaço construído por meio da crítica e da ação. A Aurora promove formações de caráter transdisciplinar e tem como um dos seus objetivos juntar pessoas interessadas em pensar as cidades a partir de perspectivas não hegemônicas. Com várias frentes de atuação, ela disponibiliza cursos presenciais e online, clubes do livro e ateliê de processos criativos, contribuindo para o ensino de arquitetura, arte e urbanismo com um laboratório livre de experimentação e pensamento crítico. A Aurora também está em processo de criação de uma comunidade virtual na plataforma Circle que possibilitará a troca de informações em uma lógica que se difere das redes sociais, pois prioriza o aprofundamento de discussões, o cuidado com o diálogo e a construção coletiva do conhecimento, sem a lógica do algoritmo ou da distração constante.

Conclusões: o que faz uma escola livre?
A conclusão é que a partir dessas experiências, é possível identificar um desejo comum de construção de pedagogias do território, entendidas como formas de ensino que não apenas reconhecem o contexto em que estão inseridas, mas que se constroem a partir dele.
Isso implica a valorização de práticas artísticas, dos saberes populares, das experiências comunitárias e dos modos de vida que desviam da lógica do ensino universitário tradicional. Uma escola livre de arquitetura cria espaços de aprendizagem crítica que reconhecem o território como sala de aula e a pedagogia como prática de liberdade. Elas se tornam cada vez mais importantes por abrirem caminhos alternativos ao ensino tradicional, apostando na autonomia, na experimentação e no diálogo entre saberes como formas de imaginar e transformar a arquitetura e o mundo.
Não obstante a importância dessas iniciativas, cabe destacar que as escolas livres de arquitetura não surgem como substitutas ao ensino universitário, mas como campos de experimentação necessários e politicamente relevantes. Ao afirmar o território como sala de aula, essas escolas lembram que aprender e ensinar arquitetura podem ser também um gesto de imaginação. Ao abrir o site da Aurora Escola Livre, somos lembrados: NENHUMA IDEIA NASCE SOZINHA. É por isso que o futuro é não só coletivo, mas colaborativo. Porque a escola é livre, e por isso mesmo os nós, são laços.
MAIS INFORMAÇÃO SOBRE A aurora ESCOLA LIVRE
Referências bibliográficas
Colomina, Beatriz (org). Radical Pedagocies.EUA: MIT Press, 2022.
hooks, bell. Ensinando a transgredir, a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins fontes, 2013.
Freire, Paulo. A pedagogia do oprimido. São Paulo, Editora : Paz & Terra; 84ª edição, 2019.
Solà-Morales, Ignasi. Diferencias. Topografia de la arquitectura contemporânea. Barcelona: Gustavo Gili, 1995.
Sites pesquisados:
https://www.auroraescolalivre.com.br/
https://www.elaescolalivre.com/