Ainda estamos, em 2024, discutindo o papel da arte em nossas vidas. Há gente adoecendo a todo instante. As redes sociais nos sugaram até a última gota do egocentrismo. Vivemos a crise da narração. Estamos presos em uma vitrine, cujos manequins estão sempre com roupas novas e brilhantes enquanto seus rostos seguem inanimados. O tempo parou ou somos nós quem paramos? Em contradição, vivemos a velocidade irrefreável do mundo. Saturado. Compromissos, tarefas, produtividade, capitalismo neoliberal, o eu, eu, eu. Muito se fala sobre o ensimesmamento de si. Mas no estado em que estamos, do lado de dentro, tampouco há luz. E o que sobra?
O agora, o recomeço, uma fagulha que queima, que arde, que ilumina. Um início fugaz, mas do qual o fim, se a chama for compartilhada, pode ser infinito. A arte é, por sua natureza, coletiva, comunicativa e colaborativa. Estamos desde as pinturas rupestres buscando tirar algo preso dentro de nós para compartilhar com o outro. Arte é olhar para si e ver além. Mário Pedrosa, crítico brasileiro, se empenhou em descrever uma dimensão social da arte, uma ideia de qualidade sensível e não intelectual de fruição estética que não só sensibiliza o indivíduo, mas promove a consciência coletiva. Para ele, em tempos de crise, a arte salva porque cria novas possibilidades de entendimento do mundo. Percepção individual, consciência coletiva. É exatamente isso que a exposição PAVIO nos mostra.
PAVIO reúne a obra de dez artistas cujos processos artísticos são orientados pela artista e curadora Kamilla Nunes em seu grupo DESVIO. Nele, Kamilla reúne as pessoas em torno de sua fogueira. Ouvir o outro, falar de si, imaginar contextos, falar de arte, conectar informações, experimentar, celebrar. Em DESVIO o tempo opera diferente. Kamilla o mantém em suspensão enquanto a vida lá fora corre linear. Compromissos, tarefas, produtividade, capitalismo neoliberal, o eu, eu, eu. PAVIO, a exposição do grupo DESVIO, nos lembra do nós.
Montada na sala expositiva do Memorial Meyer Filho, no centro da cidade de Florianópolis, a expografia de PAVIO revela um pouco do processo do próprio grupo, que opera por contraste e semelhança. Ao entrar no espaço vemos à direita a obra Metafluxo, de Andrei Detoni, uma escultura imponente em argila, cuja materialidade demonstra como um material sensível e moldável é capaz de transferir força, unidade e inteireza. Do lado oposto está Segundo sol, de Adriane Kirst, uma escultura cinética cuja ideia do todo se estabelece a partir de partes que, ao se movimentarem, se multiplicam, criando reflexos em constante mutação. Juntas, as duas obras demonstram que o mundo opera por contradição.
Contradição que revela o modo como a nossa existência ocorre: se sozinhos começamos jornadas, ao longo dos caminhos, nos juntamos. Ao realizar o percurso expográfico de PAVIO, vemos obras que dançam sozinhas seus movimentos, como Linhas que dançam e Bailarina, de Camila Saavedra, cujos fios de cobre evidenciam que mesmo um material tido como nobre está sujeito às nossas manipulações. Somos nós que damos forma à matéria enquanto ela opera sobre nós. Ao fim do processo, o resultado é colaborativo, da matéria e do corpo, do eu e do outro.
E nesse processo, Umberto Eco nos lembra, as obras ficam abertas e sujeitas à percepção do outro. É por isso que somos capazes de ver um coração em Língua, de Adriane Kirst, cuja beleza reverbera pela sua sensibilidade e delicadeza, algo que remete tanto ao nosso paladar quanto ao órgão que bate dentro do peito. É como se a partir das nossas vivências anteriores e da nossa memória, o cérebro decidisse que formato identificar. Nossa maneira de ver acontece a partir das experiências, tramas e dados que nos compõem, como bem demonstra Desfragmentação, de Sara Ramos, obra que reforça a possibilidade de tomada de decisão entre o querer lembrar e o querer esquecer, decidindo por fim o que e quem queremos ser.
E nessa decisão, importa tanto o espaço do lado de fora quanto aquele que somos capazes de criar internamente, abrindo lugar para novas experiências. E novos recortes de vida. PAVIO, contida em uma sala de poucos metros quadrados, tem a capacidade de nos lembrar de caminhos, jornadas e tempos distintos. Recortes de vida que pautam nossa existência. Afinal, tudo são recortes, como a obra Urros, de Celaine Refosco, nos mostra. Pedaços de corpos humanos e pedaços de artefatos. Pedaços, pedaços, pedaços, que ao se unirem fazem a mágica de PAVIO acontecer: processos que começam sozinhos se encontram com outros para exibir a potência da coletividade. Seja para nos narrar, seja para nos descobrir, as obras dos artistas em PAVIO revelam caminhos individuais e ao mesmo tempo, coletivos.
Se cada artista tem seu tempo, Kamilla é capaz de capturá-lo, dando unidade ao conjunto. O tempo é mesmo relativo, como na obra Calendário, de Katia Véras. As formas de medi-lo podem variar. Tudo são composições, como evidencia Horizontes móveis, de Adriane Kirst, e formatos que se podem moldar, é só olhar para Serpentiformes, de Ilca Barcellos. Em qualquer das possibilidades nem tudo que parece ser uma coisa, o é. Mas é aí que vem a beleza da arte, sua capacidade de carregar simbolismos, de ser o que precisamos que ela seja, como em Cornucópia, de Mary Akemi, escultura cujas curvas remetem tanto a uma fragilidade quanto suas extremidades pontiagudas remetem ao que fere. Depende do que queremos. A contradição é sempre uma constante.
E se a vida opera por fases, os ciclos só existem se forem renovados. Afinal, algumas partes não fazem sentido sem um todo, como em Exin, de Anamaria Bruggemann, que mostra que em um conjunto, cada parte assume um movimento próprio que comunica a partir da ideia de todo. PAVIO nos lembra de que somos seres contraditórios e híbridos, vivemos o real, o tempo presente e o tempo virtual. A vida é esse eterno transitar, olhar para si e para o outro. Nesse processo, vemos que as versões do eu podem ser diferentes. Podemos ser mais de um, sendo ainda um todo coerente, como na obra Anastomosados, de Ilca Barcellos.
Chegamos ao fim. Nele, de novo, olhamos para nós mesmos. No fim do percurso expográfico de PAVIO, Hiato, de Sandro Clemes, evidencia que o tempo é sempre relativo. Ser cronológico é apenas uma de suas possibilidades. Viver a suspensão do tempo em uma experiência de coma é como viver um presente estando ausente. Algo real nos dias de hoje. Mas se estamos doentes, ou em uma eterna crise, a arte ainda é capaz de nos salvar. Hiato fecha um ciclo em PAVIO. O eu, o outro, o nós. Em qualquer das opções, o clichê é real: é preciso sair de si para se encontrar no outro.
PAVIO
Visitação de 13 de setembro a 04 de outubro
Funcionamento: de segunda a sexta, das 12h às 18h
Endereço: Memorial Meyer Filho, Praça XV de Novembro, 180, Centro, Florianópolis
Fotografia Jess Pellegrini e Zans (arq.verso)