O primeiro curso de arquitetura no Brasil foi criado há mais de 200 anos como parte da “Missão Francesa” de 1816. A Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios do Rio de Janeiro ofereceu o único curso do país por mais de cinquenta anos e era uma instituição orientada para o ensino da elite brasileira, sem finalidade de pesquisa, e que formava um “arquiteto-artista, à serviço da corte”. Muito distante dos princípios do ensino livre de arquitetura que abordaremos ao longo do texto.
Segundo a arquiteta e pesquisadora Sônia Marques, as exigências para ingresso na Escola Real eram “saber ler, escrever e contar” e o currículo do curso de arquitetura era composto por disciplinas como: desenho de ornatos; escultura de ornatos; arqueologia e matemática aplicada; perspectiva e sombras; estereotomia (técnica para corte de materiais de construção); entre outras. Sua base visava corresponder às necessidades de uma clientela consumidora de bens simbólicos, desenvolvida e fomentada principalmente pela recente presença da corte portuguesa no Brasil. [1]
O ensino na época era ministrado por um único professor a apenas três alunos e estava baseado na leitura dos tratados de arquitetura para discussão com o mestre e exercícios de reprodução dos modelos, conforme aplicava-se na escola de Lisboa. [2]
Há, nos dias de hoje, um esforço contínuo de grande parte das instituições em aproximar os estudantes dos problemas reais enfrentados nas cidades, assumindo a função social da arquitetura.
Função social da arquitetura
De lá para cá mais de dois séculos se passaram e o formato do ensino em arquitetura, obviamente, sofreu diversas mudanças. O arquiteto que se forma atualmente nada mais tem a ver com esse personagem da elite que arquitetava à serviço da corte, muito pelo contrário. Há, nos dias de hoje, um esforço contínuo de grande parte das instituições em aproximar os estudantes dos problemas reais enfrentados nas cidades, assumindo a função social da arquitetura.
Essa mudança de direção no ensino de arquitetura representa a relação indissociável entre a nossa disciplina e o contexto histórico no qual está inserida. Entretanto, tal adequação ao momento vigente, levando em conta este contínuo espiral de mudanças pelo qual somos assolados hoje, tem se tornado um grande desafio para os cursos de arquitetura.
Modelos pedagógicos insuficientes
Segundo o levantamento mais recente feito pela Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura – ABEA, em 2015 existiam no Brasil 466 cursos de arquitetura dispersos por todos os estados e regiões. São instituições públicas e privadas das quais muitas enfrentam dificuldades de diversas instâncias – e, até mesmo, burocráticas – em incorporar as “urgências do agora” no ensino, sendo atropeladas por um turbilhão de avanços tecnológicos refletidos em materiais, softwares, técnicas construtivas, mas também por mudanças de paradigma na atuação do arquiteto que o inclui como gestor e comunicador entre comunidade e construção. Ou seja, inúmeros fatores que parecem resultar em modelos pedagógicos os quais, por ora, se mostram muitas vezes insuficientes para enfrentar as complexidades próprias da produção espacial no nosso contexto imediato.
No entanto, em meio a esse cenário de dificuldades e incertezas, têm surgido iniciativas independentes que procuram suprimir tais necessidades relacionadas ao ensino arquitetônico, ações criadas e estruturadas no formato de Escolas Livres de Arquitetura.
Escolas Livres de Arquitetura
A ideia central que permeia tais iniciativas não parte do pressuposto de serem ações que competem com as instituições de ensino ditas tradicionais. Pelo contrário, há um respeito e compreensão em aceitar a importância desse modelo de ensino. Entretanto, o que se reconhece aqui são as vulnerabilidades que as instituições de ensino em arquitetura têm enfrentado, procurando criar, então, um diálogo aberto e cooperativo entre o livre e o tradicional ensino de arquitetura.
Ao se aproximar de exemplos de Escolas Livres de Arquitetura, é possível traçar um panorama geral de algumas diretrizes dialógicas que constituem os alicerces para esse livre ensino, tais como: a relação com as urgências do agora; transdisciplinaridade; projetos aliados à prática construtiva; habilidade técnica vs. habilidade social e autonomia do aluno.
Por meio destes pontos de partida, percebe-se uma preocupação entre as Escolas Livres de Arquitetura em aproximar os alunos da realidade que os rodeia. Muitos exercícios projetuais, nesse sentido, partem de uma resposta a demandas imediatas, diagnosticadas em contato com comunidades vulneráveis ou abordando os próprios desejos individuais dos alunos. Percebe-se, portanto, uma busca por fomentar experiências afetivas que, aliadas ao processo de projeto, tendem a ser muito mais eficazes em termos de ensino e aprendizagem.
A transdisciplinaridade é outro ponto levantado pelas Escolas Livres de Arquitetura que representa a busca por romper com ideias persistentes no ensino de arquitetura como a questão do projeto como um sistema autônomo, a ideia do contexto como paisagem – relevante apenas a partir de suas características visuais – e a ideia da matéria como linguagem. Diluir a arquitetura desta forma implica avançar na formação de novos métodos de projeto dentro dos quais as ferramentas da arquitetura convergem com as da geografia, planejamento urbano, economia, sociologia, serviço social, psicologia, entre outros. [3]
A transdisciplinaridade muito tem a ver também com a chamada habilidade social. Diferentemente das habilidades técnicas, neste modelo de ensino, os alunos tendem a cultivar também sua habilidade social travando diálogos entre profissionais de outras áreas e membros de comunidades externas.
Um exercício que permite ver com mais clareza as responsabilidades, implicações e dilemas éticos de cada decisão tomada no processo, assim como incentiva o desenvolvimento da escuta e da observação ativa. [3]
Outro ponto que permeia a maioria das Escolas Livres de Arquitetura é a importância em aliar o desenho à prática. Há, nessas escolas, uma vontade de instigar os alunos a reconhecerem o processo de projeto na materialização da obra, desenvolvendo um método de ensino aliado a uma necessidade real que extrapola questões da academia e traz à tona exercícios como gestão de obra, orçamento e até mesmo captação de recursos.
Por fim, é importante ressaltar que as Escolas Livres, em um modo geral, procuram dar autonomia aos alunos, desenvolvendo a capacidade de organização e gestão entre eles próprios, em uma metodologia não linear de projeto.
Escola Aberta no Galpão \ Presidente Prudente-SP
A Escola Aberta no Galpão é uma escola de cursos livres e ações culturais que foi fundada e idealizada em 2012 enveredada por ações educativas e projetos culturais de intervenção como uma extensão da atuação profissional e da docência. Segundo sua idealizadora, a arquiteta e urbanista Cristiana Pasquini, a Escola tem como objetivo propagar o olhar crítico sobre as cidades com uma série de atividades que (re)pensam o ensino, o desenvolvimento prático e a expansão da arquitetura.
Nela, nutre-se o desejo de compartilhamento e construção do pensamento crítico sobre arquitetura e urbanismo, artes, cinema, geografia e as demais áreas que exercem um papel fundamental na apropriação e na transformação dos modos de vida nas cidades. Com o objetivo na troca de experiências, na reflexão crítica e no aprendizado contínuo, a Escola Aberta no Galpão procura cumprir a função socioeducativa por meio da diversidade e do encontro.
Escola Livre de Arquitetura (ELA) \ Porto Alegre-RS
A ELA surgiu em março de 2018 pela ação de um grupo de arquitetos, professores e estudantes sensíveis à condição do Ensino Superior no Brasil, no intuito de repensar o próprio “fazer” do arquiteto e urbanista. Segundo a idealizadora Luciana Fonseca, a ELA entende a arquitetura como potente agregadora multidisciplinar que, em um convívio mútuo, rompe com padrões esperados na ação do arquiteto e construção do espaço onde a ideia de aprender-fazendo ganha protagonismo e reflete o contexto na qual está inserida.
Atenta às transformações do terceiro milênio, a ELA desenvolve uma metodologia não-linear de projeto-construção, que ocorre por meio de ateliês imersivos, com foco no processo criativo, projeto e prototipagem, construção e instalação, criando diversos formatos em uma metodologia não linear de ateliê de projeto-construção entendendo, principalmente, que o aprendizado pode ocorrer em qualquer lugar, desde que haja envolvimento.
Escola Livre de Arquitetura do Bloco B \ Florianópolis-SC
Esta Escola surge como um desdobramento do escritório de arquitetura e urbanismo de mesmo nome, procurando aliar projeto e obra com teoria, arte e educação. Ao entender o ato de arquitetar como uma série de atividades anteriores à construção, a Escola procura fomentar a criação, o desenho e a conceitualização em uma série de atividades, desde cursos, palestras, workshop e ateliês de projeto até intervenções urbanas. Nelas há um esforço em incluir diversas realidades dentro da metodologia, entendendo a práxis como atividade transformadora e colocando em pauta vulnerabilidades sociais, econômicas, de gênero e raça.
Partindo da pedagogia libertária de Paulo Freire, essa Escola entende que toda pesquisa se faz pedagógica e toda autêntica educação se faz na investigação do pensar. Por isso, se configura como um espaço de trocas que fomenta debates necessários em nosso contexto. Uma escola que, ao mesmo tempo em que absorve as urgências do agora, arquiteta sonhos.
Escola Coletiva de Projetos \ Aracaju-SE + São Paulo-SP
Segundo o arquiteto Gustavo Fontes, um dos idealizadores, a Escola Coletiva de Projetos foi motivada pelo desejo do aprofundamento da reflexão, do debate e da (re)formulação de um pensamento mais crítico em relação à arquitetura, urbanismo e construção. Ela tem como objetivo a troca de experiência em um processo de aprendizado ininterrupto, reunindo arquitetos, urbanistas, engenheiros, artistas e demais profissionais interessados, estudantes ou não, de forma a ampliar sua formação crítica.
É um espaço que, por meio de conteúdos semanais, palestras, cursos livres e oficinas, dedica-se ao aprofundamento, experimentação e prática de diversas metodologias do projeto formado por profissionais multidisciplinares das artes, construção civil, arquitetura, ciências ambientais, direito e diversos outros campos.
Notas
[1] MARQUES, S. Maestro sem orquestra: um estudo de ideologia do arquiteto no Brasil – 1820 – 1950. Tese de Doutorado da Universidade Federal de Pernambuco, 1996.
[2] MONTEIRO, A. M. R. de G. O Ensino de Arquitetura e Urbanismo no Brasil: a Expansão dos Cursos no Estado de São Paulo no Período de 1995 a 2005. Tese de doutorado. Unicamp, 2007.
[3] AL BORDE ARQUITECTOS, ET AL. Academia como Prática. Participação da Escola de Arquitetura da Universidade das Américas, na XXI Bienal de Arquitetura e Urbanismo, realizada em Santiago de Chile, 2019.
Texto publicado originalmente no ArchDaily Brasil.