O ano de 2024 está terminando como um ano promissor para o cinema brasileiro. Sim, esse é um texto para arquitetos, mas o futuro já chegou e nele a arquitetura não é apenas projeto, mas manifesto. Isso quer dizer que, como nos filmes, aqui do futuro não imaginamos e construímos apenas os edifícios, mas casas e cidades como cenários vivos de encontros e narrativas. Afinal, o cenário distópico de Blade Runner, ufa, não aconteceu e bem, alguns de nós podemos dizer Ainda estou aqui. Pelo menos por enquanto.
E já que estamos aqui, podemos nos inspirar no cinema para projetar não só o espaço, mas também o tempo. Como em Blade Runner, o filme de ficção científica que estreava em 25 de dezembro de 1982. Com seu enredo envolvendo o conflito entre humanos e androides, a metáfora arquitetônica do filme é que podemos construir lugares não para espelhar ruínas distópicas, mas para mostrar que a vida real pode ser tão cheia de detalhes e tão complexa quanto uma boa história. Por que aqui do futuro, se a relação entre arquitetura e cinema não é nada nova, ela nunca foi tão conectada.
Na arquitetura do século XXI muito se fala sobre ser um contador de histórias e sobre materializar o imaginário, questões que, por razões obvias, se relacionam ao universo do cinema. Mas pouco se fala sobre o fato de que, sendo arquitet@, ao se contar uma história, é preciso ter uma linha editorial. E isso quer dizer que o arquitet@ é também um roteirista, um diretor e um editor. E vice versa, o cineasta é quase um arquiteto. A multidisciplinariedade, aqui do futuro, é realmente verdadeira. Que o diga o diretor Walter Salles, que nesse fim de ano fez a façanha de levar milhões de brasileiros ao cinema. Como ele conseguiu? Com o perdão do trocadilho, arquitetando muita coisa. Com o perdão de novo, ainda está aqui? Continue lendo. Afinal, tem coisas que precisam ser lembradas.
Somos mesmo atraídos por lembranças conectadas à arquitetura e o espaço ainda é aquilo que nos conecta ao nosso aspecto mais humano: a memória.
Estudos mostram que lembranças ocorrem a partir de um lugar, de uma presença material na qual nosso cérebro se agarra. Somos mesmo atraídos por lembranças conectadas à arquitetura e o espaço ainda é aquilo que nos conecta ao nosso aspecto mais humano: a memória. Por isso a casa da família Paiva fez tanto sucesso no filme Ainda Estou Aqui.
A casa divide o protagonismo do filme com Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres e é um exemplo vivo da construção narrativa entre arquitetura e cinema. Sua cenografia é tanto um reflexo do passado quanto um palco para as tensões do presente. Mais do que um cenário, a casa é uma personagem: cheia de marcas, histórias e possibilidades que nos fazem enxergar a arquitetura como uma espécie de arquivo emocional.
E essa casa, assim como tantas outras que projetamos, nos lembra de que a arquitetura deve compor cenários que não são estáticos, mas dinâmicos, respondendo às múltiplas histórias que neles se desenrolam. Porque se os primórdios da arquitetura envolvem a noção de abrigo e proteção, aqui do futuro os arquitet@s criam espaços não apenas para sobreviver, mas para viver intensamente. Bom, e viver intensamente é uma realidade bastante concreta no campo da arquitetura em dezembros.
Especialmente nessa época do ano, os arquitetos correm contra o tempo para terminar as obras, agradar clientes que irão receber suas visitas natalinas e realizar todas as confraternizações dos parceiros profissionais. Final do ano nessa profissão é tipo final de mundo. Mas se por um lado nossas ruas não são neons e os carros não voam como em Blade Runner, enfrentamos o mesmo problema dos replicantes: estamos perdendo a imaginação e, sobretudo, a memória.
Esquecemos que assim como um filme constrói personagens, planos e atmosferas, a arquitetura contemporânea deve pensar em lugares que dialoguem com o tempo, com os corpos e com a ideia de comunidades.
Esquecemos que a arquitetura não é erguer apenas muros e tetos, mas criar espaços onde a vida possa ser vivida de diferentes maneiras.
Esquecemos que as cidades são como roteiros inacabados, que precisam ser revisados e adaptados à medida que novas histórias se desenrolam.
E o principal, esquecemos que a memória é a alma da arquitetura, e sem ela, construímos apenas vazios sem significado.
E se por um lado esquecemos tudo isso porque somos engolidos pelo capitalismo selvagem e pelos boletos que não param, por outro, devemos ser resilientes e fortes. Como os personagens de Blade Runner e, especialmente, como Eunice Paiva.
E já que estamos aqui para que possamos lembrar as coisas que não devem ser esquecidas… arquitet@s do futuro, este texto é um manifesto. Pois, no diálogo entre a história e o presente, esse texto convida a perceber que nossa profissão é fluida, transformada constantemente pela ação do tempo e dos corpos que a habitam. E isso significa também dançar com o passado como uma presença contínua que influencia cada passo que damos. Tantos futuros quantos passados houver. Tem coisas que não podem ser esquecidas, não é mesmo?
Que nesse futuro, nossas cidades sejam como os melhores filmes: intensas, surpreendentes, e, sobretudo, humanas. Afinal, é isso que nos diferencia dos replicantes de Blade Runner, os androides com desejos e emoções: somos humanos não porque temos sentimentos, mas porque temos memória. E a memória não é programada, ela é cultivada, compartilhada e, por isso mesmo, é capaz de transformar o futuro em algo mais do que uma repetição do passado. Feliz 2025.
Esse texto foi escrito para te lembrar de que o futuro pode ser mais coletivo, livre e com muito movimento. Afinal, as ideias criam raízes e, por isso mesmo, são capazes de gerar sementes e alcançar novos terrenos. Compartilhe esse manifesto com os arquitet@s que você conhece. Boas Festas!