- artigo exclusivo publicado originalmente no anuário impresso ArqSC, 2016.
“Livre-se das revistas e dos livros”, me disse o otorrino na época em que me afligia uma forte crise de sinusite. “Está tudo na internet”. A intenção era boa: me manter afastada da colônia de ácaros e do acúmulo de poeira dos papéis, mas não sei de onde ele tirou a informação de que o papel impresso, em suas várias formas, pode ser descartado. Para levantar o que está registrado no livro Brasil Porta Adentro: uma Visão Histórica do Design de Interiores, publicado pela Associação Brasileira de Design – ABD foi fundamental a leitura de muitos livros e revistas antigas, além de dezenas de entrevistas e longas conversas com o curador Roberto Negrete. Internet e papel impresso são complementares. Ao menos por enquanto.
Já no início, navegamos por outras águas. Os transatlânticos, quem diria, nos deram os primeiros exemplos de ambientes decorados com requinte, funcionalidade e também um luxo jamais visto. O francês L’Atlantique já fazia a rota dos mares do sul, mas o Normandie foi certamente o mais impressionante transatlântico a cruzar os oceanos abaixo do Equador. Ancorou no porto do Rio de Janeiro duas vezes, a primeira em 1938, e recebeu um público, munido de tickets pagos, ávido por inovações. Era a época em que o art-déco fazia sua estreia, mudando o olhar e apontando para um novo horizonte estético.
L’Atlantique / Salão Principal
No Brasil, as cidades começavam seu processo de adensamento e, embora ainda menos acelerado, também o de verticalização. O conceito de conforto, ainda um tanto vago, mal faria supor que surgiria a figura do designer de interiores, alguém capaz de adequar proporções, conceber uma boa iluminação, especificar do piso aos móveis, dos revestimentos ao desenho de uma maçaneta. E ele acabou despontando por uma feliz confluência de profissões e de nacionalidades. As correntes migratórias da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais fizeram aportar no Brasil artistas plásticos, marceneiros e arquitetos vindos especialmente da Europa Central e do Leste Europeu. Somos, desde sempre, um país que deve tudo à sua miscigenação. Assim misturados em ofícios, em culturas e origens diversos crescemos diferentes, acrescidos, originais. As vanguardas europeias, que atendiam no Brasil pelos nomes de Grigori Warchavchik, John Graz e Lasar Segall fizeram a casa colonial se avizinhar do mesmo traço reto e moderno que se erguia em uma Europa em reconstrução, nos alinhando ao que havia de mais novo na arquitetura e nos interiores.
Entre os anos de 1940 e 1950, o cenário parece ainda mais definido. A atuação de dois brasileiros radicados no Rio de Janeiro trouxe para o décor brasileiro uma identidade própria. Frequentador da alta sociedade francesa, Henrique Liberal foi um desses pioneiros. Espelhos envelhecidos, mobiliário ao estilo dos “Luises”, como dizia Lucio Costa, e peças com perfume parisiense imprimiram nos seus interiores uma atmosfera requintada. Júlio Senna, artista múltiplo, já passara pelos Estados Unidos criando desde vitrines famosas a figurinos e cenários. No Brasil, introduziu nas casas aquilo que via de mais saboroso na nossa cultura, como abacaxis, bananas, os cenários de Debret. Adotou as treliças, herança portuguesa que se tornara uma marca do colonial brasileiro. Senna empregou orgulhosamente brancos, amarelos, azuis e verdes, e ainda vestiu estofados de jeans. Brasileiro da gema, nunca perdia uma blague. Era capaz de espetar flores em uma árvore frutífera para dizer a seus convidados, muitos deles representantes de famílias reais: veja que belas rosas nos deu esta laranjeira.
São Paulo recebeu da Itália grandes contribuições, entre elas o italiano Felipe Dinucci, o primeiro a conceber a decoração como uma profissão bem definida e estabelecer escritório em várias capitais do país, chegando até mesmo a Buenos Aires. Sabíamos, ao começar a pesquisa, que Dinucci – até então mencionado assim mesmo, sem prenome – havia sido marceneiro, requisitadíssimo especialmente entre os anos 1930 e 1950 pela rica comunidade sírio-libanesa da capital paulistana. No entanto, anúncios e reportagens de revistas como Habitat e Acrópole dos anos 1930 provaram que ele tinha ido muito além. Data de 1951 uma página de propaganda da Acrópole em que ele conclama, sob a foto de um de seus faustosos ambientes: “antes de construir, reformar ou comprar, consulte o decorador”.
John Graz (Acrópole, 1952)
Nossa busca revelou também decoradores insuspeitos: Joaquim Tenreiro, Sergio Rodrigues, Jorge Zalszsupin, Jacob Ruchti e Giuseppe Scapinelli firmaram seu talento de designers e arquitetos inovadores também nos interiores das moradias. Todos tiveram um comércio, e nas lojas começava o projeto de decoração. Mesmo os estrangeiros que apenas passaram pelo país nos deixaram algum marco, e um dos mais extraordinários foi o hotel e cassino Quitandinha, em Petrópolis, desenhado pela americana Dorothy Draper. A comunhão de cores fortes e formas barrocas fizeram do Quitandinha uma apoteose onde se reuniam políticos, empresários e uma elite que teciam a história do país. Depois de tomar o poder de Getúlio Vargas, o general Eurico Gaspar Dutra proibiu, em 1946, o funcionamento dos cassinos no país. Com apenas dois anos de funcionamento, o fabuloso espaço de Draper conheceu a decadência.
Felipe Dinucci (Acrópole, 1952)
Nas décadas que se seguiram, outras muitas histórias (e obras) como essa contribuíram para que se forjasse no Brasil a profissão do designer de interiores. Com o advento dos cursos de formação, de mostras como Casa Cor — e de outras que se seguiram a ela –, o papel desse profissional se solidificou. Mas um passeio pelo passado – e por esse passado, especificamente, não havia sido resgatado. E não há forma melhor de caminhar senão guiados pela nossa memória.
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Texto Cristina Dantas – jornalista há 30 anos, mais de 20 deles voltados às áreas do design, da arquitetura e da decoração.