A pintura resiste: ao tempo, às declarações da sua morte, ao próprio artista. Os pintores e as pintoras sabem: pintar é confrontar-se continuamente com as imposições, as exigências, e, com as contínuas surpresas da pintura, que nunca se dobra e acaba por impor-se[1].
Icleia Cattani
Octávio Paz, ao se referir à obra de Rufino Tamayo[2], comenta que existem muitas maneiras de se aproximar de uma pintura. Tento aqui lembrar de algumas: em linha reta, face a face, com o olhar oblíquo, em sobrevoô, com a atitude de um caçador, medindo com os olhos e em zigzag, através de um modo franco, magnetizado, reflexivo… Invento outras: como um graxaim na espreita de sua presa, como o escafandrista prestes a submergir em águas obscuras, em rodopio após o salto no vazio, como numa cegueira repentina, tateando as paredes, escaneando o ainda não visto – assim como por meio de uma observação cirúrgica cuja nitidez reverte a ordem do visível. Temos aqui a possibilidade de exercitar mergulhos e distanciamentos, espreitar e adentrar imagens subjacentes, panorâmicas, em detalhe, por vezes tão explicitas que brotam, reticulares, como poros ou poeira nos olhos.
A exposição “Entre o mergulho e a distância” apresenta trabalhos de seis artistas-pesquisadores brasileiros que elaboram a imagem em seus processos pictóricos: Clóvis Martins Costa, Felipe Góes, Lauer Nunes dos Santos, Lizângela Torres, Marilice Corona e Ricardo Mello. O grupo aqui reunido integrou a publicação do livro Problemas de pintura: distensões na prática da pesquisa em arte[3], no âmbito do projeto de pesquisa homônimo, realizado no Centro de Artes da UFPel. No âmbito da pesquisa, a exposição se insere como um desdobramento das reflexões apontadas no livro e nos debates relacionados ao mesmo. Pretende-se aqui estabelecer novos diálogos com os demais integrantes da publicação, de modo a pensar a mostra no MESC como outra instância da pesquisa. Conforme José Luiz de Pellegrin, no prefácio do livro Problemas de pintura: distensões na prática da pesquisa em arte:
Pode-se concluir que a pesquisa em pintura está viva, pulsante, uma vez que a cada novo acontecimento ela conecta novos pesquisadores e novas instituições, redefine a amplitude das abordagens, ganha novos contornos através da visão crítica sobre o fazer e o refletir. A pesquisa legitima a produção de conhecimento revendo as especificidades e ativando as distensões a partir da intersecção com as mais variadas linguagens (PELLEGRIN, 2021, p. 13).
A pintura de imagens, coadunadas com os códigos da fotografia ou que flertam com a representação, parece indicar um traço pulsante na arte atual, seja através da revisão do imaginário disponível no arcabouço da história da arte ou (e) pela elaboração própria ao fluxo randômico da imagem nas mais variadas e velozes plataformas. Não se trata agora apenas de um escrutínio dos mecanismos que engendram a imagem fotográfica (tencionando suas dimensões técnicas e culturais como em Gerhard Richter), mas de possibilidades renovadas para a invenção de outras narrativas, outras histórias e diálogos com o que venha a ser o real. Segundo Tiago Mesquita, no texto a Pintura de imagem:
As imagens que nos interessam nesse instante funcionam menos como um inventário de estruturas e métodos intelectuais de decomposição da imagem do que como formas a partir das quais se pode contar outras histórias. Ou melhor: a partir da imagem, apresenta-se mais do que ela própria parece mostrar (MESQUITA, 2011, p.272).
O tempo lento exigido pela pintura (no fazer e na fruição) contradiz a lógica do consumo instantâneo e da passagem irrefletida pelos carrosséis onde se engendra a perda absoluta do referente. Cabe aqui pensar no estatuto da pintura ao longo da história da arte como veículo de construção e propagação da imagem e que, nos dias atuais, distante (ou muito perto) de sua designação original, apresenta-se como um dos veículos possíveis para a condensação do olhar através de lugares onde apenas uma lógica funciona, aquela da sensação. A pintura aparece aqui através de uma diversidade de abordagens onde o fio comum é a imagem presente/ausente. Imagens que singram o campo pictórico, ora fantasmas, ora espessuras materiais. A pintura incandesce os entretempos da experiência. No ocaso das imagens, o olhar retorna, como outra camada na fatura (fratura) temporal do campo pictórico.
Clóvis Martins Costa, maio de 2022/ abril de 2023
[1] MARTINS COSTA, Clóvis. PARENTE, Pedro. Problemas de pintura: distensões na prática da pesquisa em arte. Editora da UFPel, 2021, p. 14.
[2] PAZ, Octavio. Tamayo: Geometric and transfiguration. Apud. Rufino Tamayo, Octavio Paz/Jaques Lassaigne. Ediciones Poligrafa. Barcelona, 1995.
[3] MARTINS COSTA, Clóvis. PARENTE, Pedro. Problemas de pintura: distensões na prática da pesquisa em arte. Editora da UFPel, 2021.