Andrea Eichenberger, artista e antropóloga que vive e trabalha entre Florianópolis (SC) e Paris (França), é dona de uma poética que transita entre a fotografia, as artes visuais e a crítica social. A experiência do encontro se situa no centro de suas práticas e pesquisas artísticas onde sobressaem as trocas com o outro e o levantamento de questões sobre a existência humana e suas relações com o mundo, ora com um olhar melancólico, ora com um ponto de vista crítico e político. Neste momento pandêmico, ela integra duas ações em duas cidades francesas com trabalhos em linhas antagônicas entre si, um em abordagem bem politizada sobre o Brasil, outro a partir de um enfoque intimista e sanitário.
Iniciada em 5 de fevereiro, a mostra “Sem Título”, no Centro Hospitalar de Valenciennes, em Valenciennes, no Norte da França, se estenderá até 15 de março. Em Carcassonne, cidade localizada no alto de uma colina na área Languedoc, no Sul da França, ela participa, entre 6 de março e 24 de abril, do Festival de Ficções Documentais que, em razão da pandemia, não pode ocorrer em 2020.
Em atroz síntese curricular da florianopolitana casada com um francês e moradora de Paris, Eichenberger faz estudos em artes visuais, doutorado em antropologia visual realizado entre o Brasil e a França, mestre em ethnologie, na Université Paris 7; fotografia, na Ecole Supérieure de Photographie (Efet – Paris); doutorado em antropologia e sociologia (visual), na Université Paris 7, em cotutela de tese na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pós-doutorado em fotografia, na Université Paris 1 Panthéon Sorbonne, Paris, França. Como artista contabiliza inúmeras exposições individuais e coletivas.
“Projeto de criação e mediação fotográfica”
Em Valenciennes, “Sem Título” situa-se na clave da arte, da antroplogia social e da psiquiatria. Em 2019, a artista recebe convite do Centro Regional de Fotografia Hauts-de-France (CRP) que aciona o Polo de Psiquiatria do Centro Hospitalar de Valenciennes para realizar um trabalho de sensibilização e expressão artística através da fotografia com um pequeno grupo de pacientes do centro psicoterapêutico de Saint-Saulve. O projeto coletivo envolve pacientes e enfermeiros durante os últimos meses de seu funcionamento, antes de sua mudança para o Centro Hospitalar de Valenciennes.
“O desejo da equipe do Polo de Atividades Sócio-Terapêuticas (Past), informa Eichneberger, era construir, por meio de um objeto fotográfico, uma memória coletiva e pessoal deste local, que acolheu pacientes e foi o espaço de trabalho diário das equipes, desde 1976. Tratava-se de direcionar a atenção aos lugares e também às pessoas, a fim de mostrar suas próprias percepções sobre a experiência de vida naquele espaço. Palavras-chave foram mencionadas quando me fizeram o convite: a memória, a lembrança, o rastro, o sensível, o lugar, o intangível.”
Entre maio de 2019 e janeiro de 2020, a artista desenvolve o que o CRP chama de “projeto de criação e mediação fotográfica” com um grupo de pacientes e enfermeiros. “Através do encontro, do diálogo, das negociações e das trocas sobre as imagens realizadas, procuramos trazer à tona o ponto de vista e a sensibilidade de cada um, na tentativa de dar corpo a esses espaços e mostrar uma pluralidade de olhares e histórias sobre este lugar.”
De modo inesperado, no andamento do trabalho os participantes sugeriram retratos, escolhendo o jardim como lugar primordial de sua realização. A intenção do projeto, segundo Eichenberger, procura tirar o foco da doença mas, pelo próprio desejo, os pacientes estimulam reflexões sobre a questão da invisibilidade. “Não podíamos mais uma vez invisibilizar essas pessoas que ainda continuam sendo colocadas em centros isolados da sociedade. Juntos, discutimos muitos os retratos. Em certo momento, tive a ideia de trabalhá-los no photoshop com camadas de branco até o quase desaparecimento da imagem e propus, então, imprimi-los em tecidos, uma espécie de véu.”
A operação toda – dos encontros à realização da exposição, demonstram como a fotografia é valiosa na criação de espaço de falas com consequências terapêuticas.
Leves, mas imponentes por seu tamanho, os retratos ganham forte presença dentro do resultado formal da mostra que assume a forma de instalação audiovisual com os retratos/véu, projeção de fotografias e lista de palavras recorrentes nos encontros, além de uma publicação de tiragem de cem exemplares. A operação toda – dos encontros à realização da exposição, demonstram como a fotografia é valiosa na criação de espaço de falas com consequências terapêuticas.
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O Brasil no alvo
Promovido pela Graph, que enaltece a fotografia social, o 4º Festival de Ficções Documentais é realizado em Carcassonne, famosa cidade medieval. Andrea Eichenberger participa com ′′Pequena Enciclopédia Sociopolítica Ilustrada do Contemporâneo Brasil”, trabalho desenvolvido em colaboração com 39 pesquisadores.
Iniciado com o título provisório, “2016: Repertório Imagético”, a artista passou a chamá-lo de “Pequena Enciclopédia Sociopolítica Ilustrada do Brasil Contemporâneo” porque os textos, em sua maioria, muito se aproximaram da “estética” do verbete enciclopédico, como sugerido. A edição é bilíngue, em português e francês.
O repertório imagético inclui, entre outros símbolos daquele período, o pato, a panela, o equipamento Lava-jato, a bíblia, a bandeira do Brasil, o vampiro, a toga, a coxinha, salgado da culinária brasileira que passa a representar os que ostentam status social e pensamento conservador.
O livro coloca em perspectiva as tensões entre cotidiano e a esfera política no Brasil que circunda o ano de 2016, quando Dilma Rousseff, então presidente da República, foi destituída. “Como uma pesquisa científica, que retira mostras de um determinado contexto para um estudo, reúne um conjunto de imagens de objetos e de outros elementos do cotidiano e do imaginário popular, ou ainda de atitudes e gestos que receberam um significado político, marcando, de algum modo, o momento.” O repertório imagético inclui, entre outros símbolos daquele período, o pato, a panela, o equipamento Lava-jato, a bíblia, a bandeira do Brasil, o vampiro, a toga, a coxinha, salgado da culinária brasileira que passa a representar os que ostentam status social e pensamento conservador.
As fotografias, que seguem os códigos da imagem científica ou publicitária, são acompanhadas de textos, na forma de verbetes enciclopédicos esclarecedores sobre os significados a eles atribuídos. Convidados, os autores são intelectuais que representam diferentes regiões do Brasil, ou ainda do exterior, que tenham alguma ligação com o país.
Autores
Antoine Acker, Érico Andrade, Gustavo Andrade, Marta Magda Antunes Machado, Carlos Barradas, Rita Lenira Bittencourt, Adair Bonini, Nena Borba, Dagoberto Bordin, Silvia Capanema, Rafael Castanheira, Amanda Coelho, Felipe Cruz Tuxá, Diogo Cunha, Murilo Duarte Costa Correa, Armelle Enders, Cornélia Eckert, Carlos Alberto Franzoi, Ildo Francisco Golfetto, Ana Cecilia Impellizieri Martins, Daniela Labra, Rosangela Malachias, Sônia Maluf, Silvana Mariani, Charles Monteiro, Eduardo Victorio Morettin, Paulino Motter, Néri Pedroso, Cláudia Pereira Vianna, Denise Pinheiro, Carmen Silvia Rial, Cristianne Rodrigues, Marcelo Ribeiro, Sandra Rubia Silva, Patricia Smaniotto, Mariana Thorstensen Possas, Sandra Unbehaum, Isabella Valle, Hernandez Vivan Eichenberger, Raquel Wandelli.
Design gráfico
Charlène Leroy
Assessoria artística
Cristianne Rodrigues
Assessoria científica
Dagoberto Bordin, Hernandes Vivan Eichenberger, Marta Magda Antunes Machado e Rafael Castanheira
Traduções
Andrea Eichenberger
Revisões
Dagoberto Bordin (português), Patrícia Smaniotto (português), Marta Magda Antunes Machado (português), Karine Lehman (francês) e
Charlène Leroy (francês)
Produção
Gustavo Andrade e Marta Magda Antunes Machado (auxílio na coleta de objetos), Jaqueline Selva Warren (confecção da marionete), Carlos Alberto Franzoi (coleta do barro com rejeitos tóxicos de Brumadinho) e Cláudio Brandão (estúdio fotográfico e assessoria técnica)
Tratamento de imagens
Endrigo Rigueto