Vértice de encontro entre pessoas de lugares diversos, a cidade é vivida como mistura humana, local de efervescência e criação a partir da presença de indivíduos que vêm de toda a parte. A produção artística contemporânea incorpora a tensão entre arte e vida, com representações que enfocam as relações existentes entre os espaços, os fluxos existenciais, as possibilidades de encontro e desencontro. Os artistas apostam na cultura corporativa, na pluralidade, no intercultural. Com a globalização dos mercados, o fim das fronteiras, as novas tecnologias, a crítica e o desmantelamento das instituições, a produção artística contemporânea discute ética, sociologia, antropologia, política, uma de suas tantas marcas. A desmaterialização da obra, o efêmero, a arte como um processo decorrente de uma ideia, o hibridismo, a abolição entre o público e o privado, são outras de suas características. No campo temático, o corpo humano apropriado como último reduto do indivíduo, o conceito de lugar. Sem compromissos, a arte faz um retrato do mundo editado, do homem fragmentado. Enfim, adota os padrões do mundo contemporâneo.
O circuito de arte requer trabalhos artísticos, diferentes processos e relações, exposições, mediações e institucionalização entre museus, galerias, fundações, entidades, gestores, curadores, colecionadores e historiadores.
Parte da história de Santa Catarina no âmbito das artes visuais precisa ser pensada sob a ótica do atraso. Se o modernismo chega ao Estado só em 1948, o experimentalismo, marcante no Brasil na década de 1970, aparece em ações pontuais e discretas no Estado. Harry Laus, crítico de arte e diretor do Museu de Arte de Joinville (MAJ) e Museu de Arte de Santa Catarina (Masc), escreve que nesse período a “arte em geral era estática, fria e acomodada, como peixe morto nas vitrines do Mercado Público”[1].
Os anos 80, ainda de acordo com Laus, depois de adequar a sede do Masc, inaugurado em 1982 dentro do Centro Integrado de Cultura (CIC), foi o tempo das individuais, das coletivas e retrospectivas.
Os anos 90 carecem de estudo, mas inegável o bom começo da década com o emblemático Panorama do Volume, mostra de obras tridimensionais contemporâneas que absorvem as transformações pós Marcel Duchamp, prática e matéria-prima inovadoras, “as liberdades técnicas e conceituais”, conforme definição do curador Laus. Sua morte em 1992 estabelece um vazio no campo institucional e encerra um ciclo no Masc, o de um gestor “ousado, generoso, com capacidade de lidar com a diferença”[2]. Desde então, a reboque de critérios político partidários, a escolha dos administradores nem sempre considera currículos e experiências. Grande parte das atuais dificuldades da instituição está relacionada à esfera política, responsável por decisões desastradas como, por exemplo, a reforma no prédio do CIC que mantém o museu fechado entre 2009 e 2012 e o fato de que em pouco mais de seis anos, sete diferentes secretários ocupam a Secretaria de Turismo, Cultura e Esporte. Atrelado a ela, sem autonomia e recursos, o Masc sofre de modo crescente os efeitos de resoluções inadequadas e descontínuas. A falta de engajamento dos artistas amplia desgastes, cujo ápice está no tão reivindicado edital criado em 2014 só finalizado em 2017. Fora da curva neste sentido foi um abaixo-assinado em setembro de 2015, determinante para a nomeação de um novo diretor no museu em 1º de abril de 2017. Com Édina de Marco, curadora adjunta, Josué Mattos foi designado novo gestor do Masc, função que exerce na atualidade.
Novo século, outros padrões
A Geração 2000 provoca espanto. Sinaliza a mudança de paradigmas e chama a atenção para uma produção contagiada pelo projeto educacional desenvolvido pelo Centro de Artes (Ceart), da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), já que a maioria dos artistas do Estado passa pela academia. Isso, associado ao fato de que a arte é um fenômeno social encharcado pelos impactos do campo político e econômico, estabelece outro pensamento. A formação acadêmica se reflete nos trabalhos já em sintonia com os ditames de um mundo globalizado, ou seja, o colapso das identidades culturais, a fragmentação, a multiplicidade de estilos, a impermanência, a diferença e o pluralismo.
O frescor conceitual, no entanto, não inclui noções de mercado. Convictos de que a arte contemporânea se dissocia da comercialização, o circuito paga por isso um alto preço. Até hoje, a venda de obras está sempre numa nebulosa.
Ao lado do Ceará, o Estado é apontado, em 2005, como fenômeno com representações em certames nacionais, com artistas expondo em espaços referenciais do país. Sobretudo a Capital articula-se com o panorama brasileiro trazendo artistas, mostras, curadores e críticos. Um conjunto de ações, muitas desenvolvidas de forma desarticulada, são determinantes, a começar a postura do administrador do Masc que, na época, não permitia interferências na agenda tão acintosas do governo do Estado em recente passado. No mesmo período, a cidade recebe um dos recortes do projeto Rumos Visuais do Instituto Itaú e ocorrem quatro edições do Salão Nacional Victor Meirelles. Sério e rigoroso, o salão catarinense criado em 1993 tem sua história interrompida em 2008.
As iniciativas individuais dos artistas, o seu engajamento e a inventividade das proposições, o papel de outras instituições museológicas, o trabalho associativo, como o da Associação dos Artistas Plásticos de Joinville (Aaplaj), e da Associação de Artistas Plásticos de Santa Catarina (Aaplasc); a criação de novos espaços; e o projeto do setor cultural desenvolvido pelo Serviço Social do Comércio (Sesc/SC) estão na esteira desse processo. Iniciativas autônomas, aos poucos, configuram outras trocas e diálogos. Contramão, NET Processo, Espaço Arco, o Arquipélago Centro Cultural, entre outras, são experiências que questionam as instituições, redimensionam a relação com os artistas, os espaços e o público, alavancam discussões, palestras e encontros. O projeto Schwanke, iniciativa da Sociedade Cultura Artística (Scar) entre 2002 e 2005, em Jaraguá do Sul, aparece como basilar no currículo de artistas da nova geração.
O Museu Victor Meirelles alinha-se aos programas que percebem a história como um processo formado pelo passado e pelo presente. Transforma-se num espaço cultural de abordagem contemporânea em busca do desenvolvimento de uma visão crítica e experiências estéticas de vida. Com mostras expressivas e um sólido programa de formação, consolida articulações nacionais. O projeto Agenda Cultural traz expressivos artistas, críticos, curadores e diretores de instituições brasileiras. Hoje, a instituição que abriga o acervo do mais importante artista acadêmico do Estado, integra-se às iniciativas da Galeria Municipal Pedro Paulo Vecchietti, o Memorial Meyer Filho, o Museu Hassis, Helena Fretta Galeria de Arte e Myrine Vlavianos Escritório de Arte, Faferia – DNA de Arte, Armazém – Coletivo Elza, NACasa Coletivo de Arte, Sítio Arte Educação Coworking, Circuito Galeria e o Parque Gráfico – Feira de Arte Impressa, em Florianópolis. A Fundação Cultural Badesc assume papel fundamental sobretudo no fechamento do Masc, e desponta pela coerência das ações, a começar pelo edital. Juntos, em suas singularidades, enfrentam a permanente escassez de recursos.
Apontada em 2005 como fenômeno nacional, a produção em Santa Catarina assume peculiaridades com relação a outros Estados. A vitalidade e a descentralização do circuito são marcantes. As ações municipalizadas em diferentes cidades têm articulações permanentes entre as regiões. Artistas e curadores se deslocam e procuram atuar em sintonia.
Sem hegemonia, neste mosaico destacam-se Joinville, Criciúma, Chapecó, Concórdia, Itajaí e Florianópolis. Joinville realiza ininterruptamente há 45 anos a Coletiva de Artistas, algo extraordinário para um país que sofre com descontinuidades. Na mesma cidade, o Museu de Arte Contemporânea/Instituto Schwanke promove iniciativas voltadas ao conhecimento da arte contemporânea, e o Instituto Juarez Machado oferece espaço expositivo de “primeiro mundo”.
Em Concórdia, o Memorial Attilio Fontana; em Chapecó, a Galeria Municipal e Associação dos Artistas Visuais do Oeste (Adentro) que funciona desde 2010; em Itajaí, o Salão Nacional de Artes; em Criciúma, a Helen Rampinelli Galeria Ateliê aglutinam e dão visibilidade à produção. Integrado, o Sesc-SC valoriza a formação e a circulação. Prima pela continuidade na ênfase da produção local, sem se desconectar das instâncias nacionais. Os projetos itinerantes promovem mostras que envolvem profissionais especializados e abarcam cuidados com curadoria, catálogo, textos críticos, palestras e cursos. Lamentavelmente o Pretexto, programa estruturante e fundamental, que apostava na produção contemporânea com o propósito de formar e qualificar o setor nas cidades que sediam unidades da instituição, foi desativado em 2018.
Vitalidade e crenças
Em contínua transformação, o circuito de arte está sujeito a diferentes tensões de caráter público ou privado. Dinâmico, pede decisões, posturas, ativações, diálogo, iniciativas individuais e coletivas. A chamada Geração 2000 e Tantos[3] sofre os impactos da política e da economia. Mudam-se as crenças e os modos de operação. A maioria cuida da própria produção, agencia eventos, pesquisa, atua em múltiplas funções. Independentes, suplantam lacunas. Apesar das agruras financeiras, as articulações delineiam campos autônomos. Artistas, curadores, galeristas, colecionadores e historiadores compartilham experiências. Conscientes das fissuras e fragilidades, com diferentes pesquisas e discursos curatoriais, nos últimos dois anos incrementam-se atividades e discussões voltadas ao mercado. Quase sempre descolados do que é “oficial”, atuam em coletivo, chamam a atenção para trajetórias e a força da produção, algo incontestável que muitos ignoram solene e lamentavelmente em Santa Catarina.
- artigo atualizado, publicado originalmente no anuário impresso ArqSC 2017.
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[1] “Arte catarinense solta as amarras”, carta escrita para Néri Pedroso, um pouco antes da morte de Harry Laus, em maio de 1992.
[2] LINDOTE, Fernando. Fala Geração 80 – uma perspectiva de Fernando Lindote no projeto Gerações Masc – Museu em Movimento, 21.9.2016.
[3] Definição dada pelo historiador e crítico de arte Fernando Boppré. Mistura de gerações, abrange os artistas inseridos no panorama da segunda década do século 21.