Charmoso, atraente e acolhido no Brasil de braços abertos, o adjetivo “criativo” entrou para a pauta do dia. Indústrias criativas, economia criativa, cidade criativa, classe criativa, empreendedorismo criativo, cluster criativo. A lista é longa e a cada tanto recebe um novo ingressante, mas traz em seu cerne dois pilares fundamentais: economia criativa e cidade criativa.
Tudo começou na década de 1990, diante de uma convergência de fatores. Entram nesse rol globalização (levando pessoas e empresas a conciliar oportunidades mundiais e contextos locais), fragmentação das cadeias de produção (distribuindo a produção de uma única peça por vários países), presença crescente das tecnologias de comunicação e informação (conectando o mundo – ou ao menos o mundo com acesso a elas), maior transferibilidade de dinheiro entre países (há 20 anos nossos cartões de crédito nem funcionavam no exterior) e tantos outros. O resultado? Concorrência acirrada e ciclos de vida mais curtos de produtos e serviços, cada vez mais parecidos. Nesse cenário, das duas uma: ou trabalhadores e empresas competem oferecendo preços cada vez mais baixos; ou provendo bens e serviços inovadores, diferenciados, com valor agregado. E, para isso, haja criatividade.
Economia criativa é, portanto, um novo paradigma econômico. Ela reconhece que, no contexto atual, a criatividade (que, diga-se de passagem, sempre foi um recurso importante), passa a ser o ativo mais diferencial de uma economia. Como a criatividade se concretiza em duas grandes vertentes – por um lado, ciência e tecnologia e, por outro, arte e cultura -, a economia criativa é uma fusão da economia da cultura e da economia do conhecimento. Na sua base estão as indústrias criativas – os setores econômicos que mais trazem criatividade em sua essência, abrangendo de artesanato, patrimônio e folclore a biotecnologia e nanociência, tendo em seu meio indústrias culturais, arquitetura, moda, design, mídias digitais, dentre outras.
Mas talvez a grande beleza – e mensagem – da economia criativa seja reconhecer que todos podemos ser mais criativos do que somos – e devemos sê-lo, se quisermos que a economia, e não apenas parte dela, seja criativa. Basta ver como a indústria criativa da arquitetura, ao trazer a proposta da arquitetura verde, disruptiva, estimula e catalisa a criatividade de toda uma cadeia – da produção de materiais de construção sustentáveis, à capacitação dos empreiteiros. Ou o impacto em efeito dominó (os spill over effects, no jargão econômico) que o design potencialmente tem, em todas as cadeias econômicas.
E é nessa visão abrangente, transversal, de mudanças de olhares e horizontes, que se insere também a proposta de cidade criativa. Uma lógica que busca transformar as cidades em espaços mais propícios à criatividade dos seis bilhões de cidadãos urbanos que seremos, em 2050, congregando 75% ou 80% da população mundial. Mas o que, afinal, é uma cidade criativa?
Foi exatamente para responder a essa pergunta que, em 2008, organizamos uma primeira sistematização mundial do conceito, uma obra coletiva e voluntária, com a participação de 18 pesquisadores de 13 países, intitulada Cidades Criativas – Perspectivas. De lá para cá, após centenas de trabalhos em todos os continentes, uma tese de doutorado e muitas discussões com outros profissionais igualmente apaixonados por cidades, a resposta curta é que uma cidade criativa se reinventa permanentemente. A explicação um pouco mais longa é que uma cidade criativa – pequena ou grande, desenvolvida ou em desenvolvimento – persegue três características. A primeira são inovações, entendidas em sentido amplo: inovações sociais, inovações tecnológicas, a capacidade de perceber oportunidades e ultrapassar seus desafios. Porque embora a cidade seja vista como um manancial de problemas, ela é um espaço de soluções.
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É aí que entra em cena a segunda característica, a das conexões. Entre público e privado, local e global, entre pessoas com ideias e sonhos diferentes (daí a importância do espaço público), entre áreas da cidade. Costumamos pensar na criatividade urbana como nos ingredientes de um bolo de chocolate; dizemos que ela é criativa, por conta daquele bairro efervescente de cultura, daquele outro onde os negócios acontecem, de um parque no qual as pessoas se encontram, do seu chocolate. Mas e quanto aos bairros menos chamativos, conhecidos e apetitosos, a farinha, os ovos, o açúcar urbanos, tão fundamentais para compor a receita única que dá sabor à cidade? Se criativa não é a cidade, é o cidadão, para uma cidade ser criativa, todos os cidadãos devem poder sê-lo.
Por fim, uma cidade criativa se apoia em cultura, por três dimensões básicas. Cultura como identidade, essência, como aquilo que os romanos chamavam de genius loci – o espírito do lugar. Cultura também por seu impacto econômico – o teatro, a gastronomia, as festas, o cinema, as instituições culturais -, gerando uma contribuição ainda raramente mensurada no Brasil. Cultura, enfim, como geradora de um ecossistema mais propício à criatividade, no qual a participação civil é elaborada em inteligência coletiva.
Economia criativa e cidade criativa – conteúdo e continente, valendo-se da criatividade para transformar nosso dia a dia em uma narrativa mais encantadora e realizadora: no trabalho, no lazer, na vida que transcorre no espaço urbano.
Ana Carla Fonseca – Economista e Doutora em Urbanismo, coordenou livros e atuou em 29 países em economia criativa e cidades criativas. É Diretora da Garimpo de Soluções. Texto publicado no anuário ArqSC 2015, 7ª edição.