Conteúdo exclusivo do Anuário ArqSC 2016.
Pensar e praticar novos modelos de cidades se tornou uma questão premente – não só por necessidade (afinal, 85% da população brasileira mora em centros urbanos), mas crescentemente por deleite (por mais críticos que sejamos às cidades em geral, dá para contar nos dedos o número de conhecidos que se refugiariam fora de uma cidade). Em suma: moramos nas cidades porque queremos, apesar de seus problemas e graças a tudo o que elas oferecem – diversidade, possibilidades, expansão de horizontes, realizações e para muitos, paradoxalmente, anonimato e privacidade. Diante disso, nada melhor do que aproveitar o que há de bom nos ambientes urbanos e resolver o que nos incomoda neles.
O que inevitavelmente levanta a pergunta: que cidade queremos? Inteligente, sustentável, inovadora, empreendedora, resiliente? Tudo isso e mais? O conceito que adotamos como síntese desses adjetivos, com o qual já lidamos em 167 cidades de 30 países, é o de cidade criativa – uma cidade que se reinventa continuamente, com base em inovações, conexões e cultura. Características amplas, mas suficientemente norteadoras e que trazem a criatividade do cidadão para o centro da discussão, seja valendo-se das tecnologias digitais ou nos processos de relacionamento humano presencial. Impulsionando esse protagonismo cidadão estão a valorização e a implementação de duas propostas: inteligência coletiva; e novas governanças urbanas.
Conceito proposto originalmente por pensadores como Pierre Lévy, inteligência coletiva refere-se em grandes linhas à capacidade que um conjunto de pessoas tem de articular as competências e o conhecimento de cada uma, em prol do coletivo, em um processo interativo e contínuo. É como se cada um de nós contivesse em sua mente e em suas capacidades uma variedade de ingredientes e, conforme a receita necessária para transformar e melhorar a vida urbana, alguns desses ingredientes fossem selecionados e empregados, para benefício de todos.
O impacto dessa proposta é muito potente. Afinal, poder valer-se do que todos sabem e de pontos de vista variados significa ampliar exponencialmente a capacidade de encontrar oportunidades que não se davam a ver e garimpar soluções para questões recorrentes.
Iniciativas voltadas a aproveitar esse manancial virtualmente inesgotável de inteligência coletiva para a transformação urbana vêm surgindo nos últimos anos, em contextos os mais diversos. Vários são urdidas por governos, a exemplo do Laboratorio para la Ciudad, no México DF. Autodefinido como um espaço de experimentação e ensaio, sua proposta é lançar provocações que motivem reflexões sobre a cidade, incubar projetos piloto e promover encontros multidisciplinares sobre inovação cívica e criatividade urbana, congregando governo, sociedade civil, setor privado e instituições sem fins lucrativos.
Outras propostas de inteligência coletiva com impacto urbano positivo são impulsionadas pelo setor privado. É o caso do BMW Guggenheim Lab, fruto de parceria entre a BMW e a Fundação Guggenheim. O projeto foi desenvolvido em três cidades com perfis completamente distintos – Bombaim, Berlim e Nova York -, com o intuito de mapear, junto à sociedade civil, as 100 tendências urbanas mais relevantes. Afinal, há modo melhor de uma empresa se preparar para cenários futuros – e intervir neles -, do que valendo-se desse grande laboratório vivo que é a cidade, formado por pessoas com diferentes expertises, ambições e visões de mundo?
O Brasil também tem sido palco de propostas afins. Em 2013, a tríade FecomercioSP, SESC e SENAC nos encomendou um projeto que resultou no Sampa CriAtiva – um espaço para motivar o cidadão a repensar a cidade de São Paulo e fazer propostas para transformá-la em um ambiente que ele julgasse melhor, pondo-se porém como protagonista dessa mudança. Em seis meses foram encaminhadas mais de 800 propostas, formuladas por paulistanos por nascimento ou residência, de uma miríade de faixas econômicas, etárias e localizações geográficas, cujo grande anseio era o de exercer sua cidadania de forma ativa.
Outros tantos exemplos surgem da articulação da sociedade civil. É o caso de I Love Rotterdam, cuja ação em uma área combalida da cidade gerou um processo de empoderamento cidadão e transformação urbana. Também cabe mencionar 396 Acres, em Nova York, voltada ao mapeamento de áreas não construídas da cidade e à tentativa de, a partir da mobilização da população, converter ao menos parte delas em espaços públicos e verdes. Ou ainda Anjos do Belo, em Florença, congregando cidadãos que zelam pelo patrimônio da cidade e motivam os demais a preservá-lo. No Brasil também são crescentes os exemplos de iniciativas voltadas à cidadania ativa e ao aproveitamento da inteligência coletiva a favor da cidade, como A Batata Precisa de você, em São Paulo e o Ocupe Estelita, em Recife.
Todas essas – e muitas outras – propostas compartilham alguns traços, como pilares fundamentais de um processo de inteligência coletiva baseado em novos modelos de governança urbana. De forma sucinta, cabe enfatizar três pontos.
Primeiro, valorização real da diversidade. Assim como inovação requer ousadia e tolerância ao erro, a inteligência coletiva se nutre de diversidade. Parece simples, mas em sociedades muito díspares em termos de acesso e participação, motivar grupos que normalmente não se engajam é um grande desafio para não incorrer o risco de validar a vontade de uma minoria mais visível.
Segundo, engajamento efetivo une reflexão e ação. Instigar novos pensamentos é um excelente passo, mas a jornada se concretiza com a implementação dos mesmos.
Terceiro, cada um tem seu papel na governança urbana. Não raro se ouve, por exemplo, que a sociedade civil deve dizer ao governo o que ele deve fazer. Um governo democrático deve não apenas ouvir e dialogar com a sociedade civil mas ponderar os interesses, direitos e lutas de cada grupo e contemplá-los – ou não – à luz de uma estratégia transparente de curto, médio e longo prazos. Afinal, em uma cidade criativa, a inteligência coletiva deve servir para validar os direitos – e responsabilidades – de todos no processo de transformação da cidade no espaço que nos orgulhamos de oferecer a nossos filhos.