Quem trabalha com decoração de interiores às vezes é pego de surpresa com nomes de novos estilos que são divulgados no meio, e se não estiver com o olhar atento ao que eles realmente comunicam, corre o risco de ficar inseguro, achando que “perdeu o bonde”.
Se diz por aí (pois não se encontra literatura bem objetiva e histórica confiável ainda), que Boho é um estilo. A palavra Boho pode ser uma abreviação vocabular da palavra da língua inglesa Bohemian (boêmio – originalmente, da região da Boêmia). Na decoração de interiores também é conhecida como Boehmian Chic.
Na geografia, a Boêmia é uma região atualmente incorporada à República Checa. Muito comum nesta região uma população cigana, cujas características comportamentais nômades e livre sempre alimentaram o imaginário do restante da população mais tradicional. Bem se sabe sobre o apreço estético dos ciganos: muito colorido, misturas livres de regras e convenções estéticas.
As primeiras referências ao termo ligadas ao comportamento diferenciado de um grupo numa sociedade regrada, são antigas: o novelista e poeta inglês William Makepeace Thackeray (1811-1863), usou o termo boehmianism em seu livro Vanity Fair (“Vaidade sensata” – publicado em 1847), uma sátira à sociedade inglesa do século XIX. Vanity Fair é uma cidade na qual seus moradores têm uma apego excessivo às coisas mundanas.
Em 1862, uma publicação inglesa impressa, filosófica, de tiragem trimestral, Westminster Review, definiu um Boêmio como “simplesmente um artista ou literato que, consciente ou inconscientemente, se separa da convencionalidade na vida e na arte”.
Na língua portuguesa, o Dicionário Aurélio define boêmia como “vida alegre e despreocupada, vida airada.”
Se tomarmos todas estas referências antigas sobre o que representa ser um boêmio, faz sentido o que observamos na estética da moda e da decoração do chamado Estilo Boho. Este é repleto de referências visuais ao que há de mais livre e sem as regras ocidentais que conhecemos: o hippie (no colorido, nas estampas psicodélicas) misturado com o folk (o folclórico, típico dos anos 1960 que traz o trabalho artesanal colorido e simples, incluindo desenhos indígenas diversos); a ampla mistura de elementos étnicos marcantes (bordado Suzani, tapeçarias e objetos variados do oriente médio, e todo tipo de estampa e material “tribal”); um toque de modernidade em detalhes para “trazer um pouco os pés ao chão da cultura ocidental” que é a que nos rodeia. E quando ganha o adjetivo “Chic“, vem acompanhado de algum detalhe mais sofisticado ou caro.
Na verdade, o chamado Estilo Boho na decoração de interiores nem precisaria ter este rótulo. Quando analisamos suas características, encontramos o que já conhecemos bem e existe há muito mais tempo: o Estilo Eclético, ou nas propostas mais excêntricas, poderíamos chamá-lo de Kitsch!
Vejo nele mais do Ecletismo, porque em toda decoração Boho há a mistura de pelo menos duas linguagens estéticas (que é o que define Ecletismo): étnico (nas peças artesanais e geralmente tribais de outras culturas) e temático. Com frequência aparecem também elementos de linguagem rústica, e, como eu havia dito, para nos trazer os pés de volta ao chão ocidental, elementos de linguagem mais contemporânea.
O estilo também pode ser lido como Kitsch, em virtude da sua mistura excessiva de elementos que parecem ter sido colocados ao acaso na decoração de interiores, que se torna, ao final, sobrecarregada, profusa, mas também bastante personalizada. O “Dicionário de Artes Decorativas e Decoração de Interiores” (MOUTINHO, 1999) define Kitsch como sendo: “Manifestação que, nas diversas formas da arte e do comportamento humano, caracteriza-se, de modo geral, por ser típica do gosto do consumidor mediano, e produto da civilização ocidental. Valoriza o convencional, o sentimental, o decorativo fora de moda, o muito enfeitado. Não se pode definir o Kitsch como um estilo, mas antes como uma ausência dele. Aparece em todas as áreas, inclusive na literatura e na música; na arquitetura e na decoração, revela-se em interiores e fachadas sobrecarregados. Nos interiores, o ambiente Kitsch é uma combinação heteróclita de mobiliário de estilo, de objetos de adorno e bibelôs, de souvenirs, de peças de artesanato, etc., sem critério determinado e sem visão funcional do conjunto. O Kitsch é fenômeno típico da sociedade de consumo, mas vale dizer que o que existe nele de múltiplo, de extravagante, de falso, de sem gosto mesmo, não exclui um aspecto divertido, chistoso, que atrai, por vezes, pessoas bem informadas cultural e artisticamente, e que buscam a originalidade e o imprevisto.”
Traz o Boho alguma novidade, então? A novidade em todo e qualquer modismo que podemos vivenciar, vem da ênfase que se dá a alguma das suas características mais marcantes. A decoração Boho acentua, em primeiro lugar, o uso de produtos étnicos (presentes em mantas, tapetes, luminárias, estampas em geral) e no uso de elementos da linguagem hippie e folk. Além desses, mistura-se o que se quer.
Nossa cultura consumista ocidental contemporânea precisa reinventar o que passou ou o que já existe o tempo todo! A todo momento somos bombardeados com novas expressões, e, na decoração de interiores, com apresentação de “novos” estilos. Lembro-me bem da capa da revista Casa Cláudia de maio de 2007, que trazia a seguinte chamada: “Inspire-se nos estilos da moda e renove a decoração”. Os “estilos” eram: new romantic, barroco moderno, natural chique, retrô, oriental light. Na verdade não havia novidade alguma, senão o acentuado uso de elementos decorativos da palavra-chave de cada título, mas sempre misturado com produtos modernos sem adornos e mais clean. Por exemplo, o dito “barroco moderno”, era uma mistura de produtos típicos do período barroco (bem rebuscados, luxuosos, dourados e extravagantes) com outros móveis e objetos quase minimalistas. E por aí vai…
Se Boho é mesmo um estilo, ou se é um modismo, a conclusão deve passar pelo crivo da própria definição do que é estilo. Citando novamente o “Dicionário de Artes Decorativas e Decoração de Interiores” (MOUTINHO, 1999), estilo é definido como: “Na arquitetura exterior e interior de diferentes períodos e regiões, os estilos são regidos por padrões estéticos (fórmulas, proporções, elementos ornamentais, etc.) e assumem vida própria: nascem, proliferam, morrem e revivem. Oferecem a imagem da evolução do gosto, da técnica, dos costumes, da sensibilidade e, historicamente, se desenvolvem paralelamente à formação de novos estados de espírito em determinados grupos da sociedade.”
Na minha avaliação, Boho é um modismo. Em parte enquadra-se na definição de estilo. Mas em maior parte incorpora elementos já anteriormente definidos como estilo Eclético ( com mistura de étnico, temático, rústico, moderno). Ecletismo já é um estilo. Então Boho pode ser uma variação do estilo Eclético, no qual os elementos étnicos e folclóricos hippie estão em ênfase.
Isto em nada o desmerece. É apenas parte da nossa realidade criativa, através da qual buscamos incansavelmente novas experiências, novas sensações, e, no caso do Boho, personalizar nossa decoração neste mundo globalizado. Sigamos criando, mas sobretudo estudando história, pois assim evitamos o risco de plagiar algo ou distorcer ideias já concebidas.
Arquiteta Maria Pilar Arantes – Professora e diretora do Centro de Artes e Design
Referências:
MOUTINHO, Stella Rodrigo Octávio. Dicionário de Artes Decorativas e Decoração de Interiores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Centro de Artes e Design. Apostila de História da Arte. Florianópolis, 2014.
Centro de Artes e Design. Apostila de Decoração de Interiores. 10a edição. Florianópolis, 2015.