Caro leitor, você já se deu conta que diante de uma pintura somos chamados a olhar e logo em seguida direcionados a um pensar dos diferentes lugares que essas imagens já apareceram para nós? Com o título de Hy-Brazil – Hepatoscopia I, Fernando Lindote artista nos apresenta um retrato vertical em forma de paisagem onde tudo encontra-se misturado. A começar pelo título que se divide em dois momentos: na invocação do nosso país, representado com massa vegetal exuberante, tropical, múltipla e diversificada; e no termo hepatoscopia, que se trata do método de adivinhação do futuro pelo fígado da vítima. Porém, não encontramos nenhum fígado nessa tela. A única aproximação que podemos fazer é a uma imagem em forma de rim ou feijão, quase ao centro da tela na cor magenta, esse que também poderia ser um baço ou fígado. Seria humano ou animal?
Ela tem um núcleo mais escuro e uma textura de pelo. À primeira olhada nos damos conta da mistura de algumas figuras reconhecíveis: jacaré, cristo, cabeça de homem, papagaio, montanha, escultura moldável, porém em seguida percebemos manchas e escorridos nos tons amarronzados, verdes e laranjas. Dessa indefinição nos deparamos com rastros de formas: o animal e vegetal em suas derivações, controvérsias e desvios. A vegetação está na planta quase geométrica na base da tela reforçando os braços abertos do cristo, numa perpendicular de planos. Pode ser uma bromélia ou uma agave reticular. Está também na montanha no plano superior que contrasta a imensidão da natureza mineral em relação à escala do homem, na pintura está misturada a uma cabeça de perfil, quase uma sombra que se destaca. A mancha de tinta é a protagonista do espaço pictórico, tem em suas direções não apenas qualidade de preenchimento com solidez, mas de comunicação com uma textura escorrida, lânguida. O que se configura além das imagens conhecidas são os excessos de coloridos, eles variam de acordo com o local, densidade e sua transparência. São as curvas e dobras que fazem essa sobreposição de tons, experimentam contornos, mas se misturam com o restante. Essa dimensão do escorrer predomina.
Contaminações
Quais seriam esses locais que podemos encontrar uma metamorfose, entre homem, animais e vegetais? Essas transformações são comuns no nosso dia a dia? É justamente nessa maneira de fazer que Fernando Lindote lida com essas contaminações, com essas misturas, através do plano pictórico. Um papagaio floreia entre escorridos verdes no canto direito, como que surgisse de uma cortina de trepadeiras no meio da floresta amazônica. O papagaio da esquerda muito mais metamorfoseado com as camadas de tintas aguadas que escorrem em tons de laranja, vermelho, branco e amarelo. A massa vegetal predomina na cor mais quente, e contrasta com o verde da fotossíntese. A pintura oferece um respiro ao observador atento a partir da boca do jacaré que abre espaço para o azul profundo do céu.
É por ali que respiramos, ou adentramos em águas profundas? A direita no primeiro plano, um galho com flores em tons de carne arredondadas, dela saem folhas pontiagudas muito delicadas espalhando-se e subindo até a cabeça do jacaré. Talvez sejam essas miudezas da natureza que se aproximam mais nitidamente da nossa noção de vegetação. Na sequência, tudo está num lugar ‘entre’: o vegetal-animal, a mancha-escorrido, a figura humana – cartoon ou quadrinho, o órgão interno como o fígado e outras entranhas carnais. Que entranhas seriam? Um fígado? Fernando Lindote não produz hierarquia entre essas diferenciações. Elas tornam-se derivações. Ou seja, encontramos nessa tela uma máquina de produzir uma linguagem indiscernível, um gesto de desvio por linhas vegetais, animais, manchas, escorridos e linhas construídas em minúcias.
Preenchendo o espaço pictórico
Nos entremeios das formas, o artista manuseia o que está perto e o que está longe, traz para si um lugar onde os tons vermelhos tendem ao verde; os animais, aos vegetais; e o homem, a figura numa natureza sem fim de contornos. Isso está nos detalhes das manchas que se aliviam em escorridos percebidos num espalhar profundo. Uma imagem construída por profundezas em miúdas tensões, porque estão lá escorridas, em camadas. O que preenche o espaço pictórico está no avantajado do lugar esquecido entre lacunas e sentenças de formas. É o mundo misturado, razão de existir sem causa, discussão em rede de floreados onde os absurdos são levados às bordas da pintura. O pequeno existir levado à noção de mancha. Pode também nos lembrar o tempo que estamos vivendo, em que um vírus transformou completamente a vida do homem. Essa não hierarquia de tempo e lugar. Somos parte da natureza e ela nos permeia emancipando nosso viver.
Tela e a música Onqotô
Toda essa indefinição permeia a pintura e, caro leitor, não se preocupe se você não conseguir se encontrar. Faz parte do processo de entendimento de uma pintura não entender. Apenas reconhecer fragmentos da história da arte, às pinceladas de artistas conhecidos, figuras do mundo cotidiano com uma pitada de ironia da mão do artista Fernando Lindote.
A tela, que é essa superfície plana, quando está saturada de informações onde se misturam elementos e ao mesmo tempo desviam do saber lógico retornam ao espectador para esse vazio que é a vida. Ela pode ser entendida como se fosse a música de Caetano Veloso Onqotô, onde bicho da terra tão pequeno, que é o homem, tem uma vida tão curta que não dá conta de entender. O Onqotô na tela de Fernando Lindote está na concentração e desvio do pictórico em forma e disforma ao mesmo tempo, não damos conta de entender, assim como a vida, apenas apresenta como é e termina quando precisa terminar, sem razão nenhuma. É a soma de camadas de tintas, o entendimento de diferentes vertentes pictóricas, com respiros que em alguns momentos movimentam o tórax para se permitir respirar. E, entre esses momentos de tempo entre pausa e respiração, é que acontecem os desejos.
Parceria
O texto da Luciana Knabben é um desdobramento da parceria do Portal com os pesquisadores do projeto Acervos e Arquivos Artísticos em Santa Catarina, Implicações e Conexões, da disciplina Teoria e História da Arte, do Ceart/UDESC, coordenada pela professora doutora Rosângela Cherem. A primeira etapa iniciou com a participação no colóquio “Vanguardas do Entreguerras e Desdobramentos Contemporâneos”, conversas abertas sobre arte, que teve o apoio também da Helena Fretta Galeria de Arte e da Livraria Humana Sebo. Acreditamos na democratização da informação e queremos contribuir, de alguma maneira, para encurtar a distância entre o potente conteúdo da academia e a comunidade do entorno, criando pontes fundamentais à formação crítica.
A partir do texto da Luciana, inauguramos a segunda etapa dessa parceria, que se propõe a promover uma ponte entre a universidade e o público interessado em arte.
Luciana Knabben – Nascida em Blumenau, 1978, Luciana Knabben é representada pela Helena Fretta Galeria de Arte. Formada em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC (2001) e bacharel em Pintura e Gravura na Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis/SC (UDESC-2006). Pós-graduada em Linguagens Visuais Contemporâneas e Mestre em Teoria e História da Arte pela mesma universidade, onde é doutoranda em Teoria e História da Arte. Vive e trabalha em Balneário Camboriú – SC.