Projetos que estão em sintonia com a natureza e possuem estratégias arquitetônicas adequadas ao clima estão no foco do escritório de arquitetura Troost + Pessoa Architects, união dos profissionais Laurent Troost e Vitor Pessoa. Confira a entrevista exclusiva feita pelo colaborador do ArqSC Lucas Reitz com Pessoa, onde falam sobre uma prática de tropicalização de saberes focada na transposição de conhecimentos entre a Amazônia e a Mata Atlântica, a trajetória do escritório em parceria com Laurent Troost e questões de autoria na arquitetura com a emergência de práticas éticas e consistentes. Eles também comentam sobre os projetos desenvolvidos pelo escritório em Santa Catarina nas cidades de Balneário Camboriú, Itapema e Porto Belo.
Gostaria primeiro que você situasse como surgiu a Troost + Pessoa e como é a organização da prática e dos saberes. Especificamente, como elas se traduzem nas especificidades de atuar em diferentes contextos, como Amazônia, Caatinga e a Mata Atlântica – para citar o exemplo de Santa Catarina.
A parceria entre mim e o Laurent (Troost) começou por volta de 2018 ou 2019, pouco antes da pandemia. Na época, o Laurent estava saindo da prefeitura de Manaus, onde passou oito anos como diretor do Instituto Municipal de Planejamento Urbano da Prefeitura de Manaus (IMPLURB), o órgão de urbanismo da cidade. Ele coordenou diversas intervenções, inclusive o projeto do Casarão da Inovação Cassina. Nós já tínhamos nossos escritórios: eu com a Vipe Arquitetura, com foco em projetos de maior escala; ele com uma prática autoral, madura e já tropicalizada, mesmo com uma trajetória internacional.
Trouxemos ao mercado uma arquitetura disruptiva, com forte influência da Amazônia e da biofilia, mas sem nos tornarmos reféns desses temas.
A oportunidade de desenvolver um projeto para o mercado imobiliário surgiu, e decidimos somar forças. O resultado foi tão positivo que vieram outros projetos, até que formalizamos uma nova empresa, unindo nossas expertises. Esse movimento até reflete um pouco do mercado pós-pandemia, que busca uma arquitetura autoral, menos genérica, e o olhar para talentos locais.
Na prática, nosso ponto de partida é sempre o que já existe no lugar. Cada projeto é uma leitura específica do solo, da vegetação, da paisagem, da cultura. Isso é um dos nossos principais valores.
Trouxemos ao mercado uma arquitetura disruptiva, com forte influência da Amazônia e da biofilia, mas sem nos tornarmos reféns desses temas. A partir dessa atuação, ganhamos prêmios e reconhecimento, o que naturalmente nos levou a convites para trabalhar em outros estados. A experiência internacional do Laurent — inclusive no OMA [escritório do renomado Rem Koolhaas]— trouxe uma visão ampla sobre recursos e urbanismo, e o tempo que ele passou na prefeitura foi essencial para amadurecer essa visão de forma tropicalizada, adaptando-se a um país com recursos e realidades distintas. Na prática, nosso ponto de vista é sempre o que já existe no lugar. Cada projeto é uma leitura específica do solo, da vegetação, da paisagem, da cultura. Isso é um dos nossos principais valores. Por exemplo, o projeto Amazônia, em Porto Belo (SC), foi pensado para trazer esse repertório da floresta tropical, mas sempre considerando o que faz sentido no contexto local. Em Santa Catarina, o que fazemos em Balneário Camboriú é completamente diferente do que propomos em Itapema ou Coqueiros (Florianópolis), mesmo que estejam a poucos quilômetros de distância. A leitura do lugar muda, e nossa resposta muda com ela. Em terrenos alagadiços, a água torna-se elemento estruturante. Onde há vegetação, buscamos preservar. Essa é uma doutrina que seguimos em todos os nossos projetos, do Sul ao Nordeste.
Estamos agora com projetos em Aquiraz e Cumbuco, Ceará. Em Aquiraz, no empreendimento Lagoar, trabalhamos com o partido arquitetônico a partir do babaçu, uma vegetação nativa da região; então a arquitetura é uma extensão dessa vegetação. Nesse sentido, a ideia é sempre trabalhar a favor da natureza. É como dizemos aqui: plantar pinheiro em Manaus é tão problemático quanto plantar açaizeiro em Gramado. Cada lugar tem seus condicionantes, e é a partir deles que trabalhamos.
Essa preocupação com o local parece atravessar também a forma como vocês constroem o conhecimento dentro do escritório. Como vocês equilibram isso com o repertório que cada um de vocês traz de outras regiões ou contextos? Por que temos a complexidade projetual, mas também de contratos, tipo de trocas e fornecedores, modos de lidar com a construção…
A gente sempre parte de uma leitura ampla da região e, depois, de uma leitura específica do terreno. Para isso, buscamos parcerias locais. Em Santa Catarina, por exemplo, temos a JA8 Arquitetura Viva, que tem profundo conhecimento da paisagem da Mata Atlântica. Esse tipo de colaboração é essencial. Às vezes, é o arquiteto local, mas às vezes é o pescador da praia que vai te dizer o que funciona ou não naquele lugar.
Trabalhamos com brainstormings abertos e depois refinamos tudo por um exercício de crítica. As ideias mais frágeis caem, as mais consistentes viram conceitos. E o conceito é o que sustenta a autoria.
E nessa dinâmica de sociedade, prática e adaptação de contextos de projeto, como a autoria se manifesta? Em outras oportunidades e espaços, vocês falam e se manifestam sobre autoria, mas também deixam claro que o processo é coletivo.
Nossa produção é muito colaborativa. Existe, claro, uma visão compartilhada minha e do Laurent, mas a equipe participa ativamente da criação. O processo é sempre muito democrático. Trabalhamos com brainstormings abertos e depois refinamos tudo por um exercício de crítica. As ideias mais frágeis caem, as mais consistentes viram conceitos. E o conceito é o que sustenta a autoria.
A autoria está na coerência do discurso, não na repetição de uma forma.
E essa autoria não é um estilo fixo – não somos reféns de uma linguagem ou de uma técnica. Temos um projeto em Manaus, por exemplo, em que a vegetação estava menos presente, e a água se tornou o elemento central. A água é segurança, é memória, é lazer para quem vive na Amazônia. Então ela passou a ser a protagonista do projeto. A autoria está na coerência do discurso, não na repetição de uma forma.
E talvez seja essa coerência que gera identidade, não necessariamente uma assinatura visual – a prática se torna reconhecível por sua consistência ética e processual, mais do que por um “estilo”…
Exatamente, e isso tem criado uma boa aderência aos nossos projetos. Os clientes não estão buscando apenas um visual bonito ou uma marca. Eles querem entender por que aquele projeto foi feito daquele jeito. Quando explicamos que tentamos A, B e C, mas chegamos em D por razões muito claras, isso gera confiança. O discurso se torna parte do valor do projeto.
Vamos então entender essa autoria e tropicalização dos saberes localizados nos projetos de vocês em Santa Catarina. Atualmente são três projetos/empreendimentos em andamento, cada um com abordagem e escalas distintas. Pode comentar como foram esses processos?
Começamos com um convite para concorrer em um projeto em Balneário Camboriú, o Origem, da Neuhaus Inc. Já havia um partido aprovado, então nosso papel foi mais estético-conceitual. Fizemos mudanças significativas na configuração e na linguagem do edifício, buscando mais coerência com o entorno e com os valores que defendemos. Era um projeto técnico pré-aprovado e nosso trabalho era puramente estético-conceitual…
O que os empreendedores em Santa Catarina chamam de design de fachada…
Sim… Nós fizemos até uns movimentos drásticos, jogando apartamento de baixo para cima para conseguirmos uma coerência estética e sair da rigidez. E esse primeiro contato abriu portas, até porque já tínhamos um projeto anterior em Garopaba – um conjunto de seis casas frente-mar, com outra lógica, bem personalizada.
Nós também vínhamos de uma reverberação importante de um projeto daqui (Manaus) que está sendo construído atualmente, o Botânica. Mas foi com o projeto Amazônia, em Itapema, que realmente pudemos atuar de forma integral na arquitetura. O cliente da Zah Empreendimentos, que já conhecia o Botânica, em Manaus, nos convidou para trazer essa essência amazônica para Santa Catarina, desde o início. Atuamos com arquitetura, fachada, paisagismo e conceito.
Quem olha de fora talvez nem perceba que foram feitos pelo mesmo escritório. O resultado vem da nossa prática de adaptar a arquitetura ao terreno, ao entorno e à cultura local.
Foi uma oportunidade incrível, porque temos um conhecimento grande do que é a Amazônia, mas tivemos que tropicalizar eles para o contexto catarinense e ter a responsabilidade de entender o que funciona ou não. De qualquer modo, a diretriz era remeter à mata tropical na forma e na fachada, como tínhamos feito no Origem. Era um projeto mais complexo e tínhamos o Guilherma Takeda (Takeda Design) como parceria de paisagismo.
Depois vieram a sede da incorporadora, também em Itapema, com um projeto quase todo modular e pré-industrializado, e outros dois empreendimentos frente-mar ainda em fase de lançamento. Temos também um projeto em Coqueiros, em Florianópolis, que está momentaneamente pausado por questões burocráticas.
O interessante é que, mesmo sendo da mesma incorporadora, cada projeto tem uma identidade própria, uma essência e uma leitura específica. Quem olha de fora talvez nem perceba que foram feitos pelo mesmo escritório. O resultado vem da nossa prática de adaptar a arquitetura ao terreno, ao entorno e à cultura local.
Onde tudo é espelhado, fomos com opacidade; onde há rigidez formal, trouxemos volumetria; onde há ostentação, propusemos humanização; onde tem excesso de cores, trouxemos neutralidade. Foi uma tentativa de responder ao lugar com um novo repertório fazendo contrapontos.
E como vocês lidam com o contexto urbano de Balneário Camboriú, que tem características tão específicas e, em muitos casos, problemáticas? Especialmente porque o boom arquitetônico, de empreendimentos, não é necessariamente um boom contextualizado – é uma reprodução de tijolos, alturas. A cidade representa de formas tão extravagantes o contexto contemporâneo de disputas por autoria, marca, índices urbanos…
Nossa primeira atuação, mesmo que mais limitada, foi quase um ensaio crítico – um trabalho reverso de entender a cidade. O Balneário tem pontos positivos, como fachadas ativas e vida urbana intensa, mas também é marcada por exageros: espelhamento excessivo, competição por altura, materiais “de luxo” sem critério, o prédio mais espelhado, de quem marca mais presença, de quem tem o melhor topo. É uma colagem de referências que não dialogam com o lugar, uma confusão arquitetônica de momentos diferentes e reproduções copiadas – de talvez interesses estéticos comparados a Dubai, Londres e Nova Iorque.
Então fizemos um estudo profundo para entender o que é Balneário. E, a partir daí, propusemos um contraponto: onde tudo é espelhado, fomos com opacidade; onde há rigidez formal, trouxemos volumetria; onde há ostentação, propusemos humanização; onde tem excesso de cores, trouxemos neutralidade. Foi uma tentativa de responder ao lugar com um novo repertório fazendo contrapontos. E também de trazer para as pessoas já acostumadas o que elas esperam de uma pós-Balneário, um discurso de questionamento de consumo e mercado também.
Para reconfigurar o contexto…E o mais interessante é que isso não significa ser “anti-mercado”, mas propor uma outra forma de estar dentro dele.
Exatamente. A adesão comercial foi ótima. O mercado está mudando em direção a um movimento diverso, que já existia antes da gente. Existe um espaço crescente para escritórios brasileiros autorais, que trabalham com consistência, com escuta, com respeito ao lugar. Isso gera uma nova concorrência, que é muito mais sadia e interessante do que simplesmente replicar modelos internacionais.
Como também conversamos antes da entrevista, de pensar em uma arquitetura que não se define pela marca ou pelo impacto do empreendimento, mas por boas práticas.
Exato. E, com isso, a gente cria obras mais atemporais. Que se sustentam no tempo, porque não estão presas à moda ou ao clichê. Estão ancoradas em discurso, em contexto, em necessidade real.
Parceria colaborativa
Sedimento é uma newsletter bilíngue editada por Lucas Reitz publicada no Substack, em conjunto com o portal ArqSC, com apoio de divulgação do IAB/SC e com material arquivado no muq.
Na Sedimento #2, Lucas Reitz entrevista Vitor Pessoa em colaboração com o ArqSC.