O espaço, sob o ponto de vista do lugar, é o que sugere e dá sentido a todo projeto arquitetônico, em qualquer escala. Olhe o espaço e pergunte-se: para quem estou projetando, para que e por quê? Quem ensina é o arquiteto uruguaio Yamandú Carlevaro, 83 anos, cujo destino foi morar em Florianópolis na década de 1970, por conta da participação no concurso público para o Projeto do Terminal Rodoviário de Passageiros, realizado com o colega Enrique Brena. A obra é referência em terras catarinenses e marco na arquitetura da cidade. O projeto traduz seu entendimento sobre o tema: “Arquitetura é estudar a necessidade do ser humano!”
Em reconhecimento a sua relevante atuação e contribuição à arquitetura e urbanismo catarinense, Yamandú Carlevaro foi homenageado, em dezembro de 2017, com a medalha de Honra ao Mérito concedida pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Santa Catarina (CAU/SC). “O arquiteto resolve espaços”, afirma ele, com convicção. Yamandú Carlevaro é de uma geração que recebeu rigorosa formação acadêmica, associada a princípios que entendiam a disciplina como uma ferramenta social cuja função é oferecer conforto ao usuário. Ele acredita no trabalho em equipe, no cooperativismo e na necessidade de realização de concursos públicos, temas que acompanham o arquiteto desde a faculdade e hoje estão na pauta das discussões contemporâneas. Passamos, eu e o fotógrafo Ronaldo Azambuja, uma tarde na casa da arquiteta Paola, filha do casal Yamandú e Maria Pilar Fedele de Carlevaro (acesse matéria sobre a arquiteta aqui.).
Ao redor da mesa, conversamos sobre a formação e a trajetória do arquiteto com a contribuição, ainda, da esposa também arquiteta, que construiu um percurso permeado por momentos independentes e outros junto ao marido. Eles conheceram-se no Uruguai, casaram no dia 9 de setembro de 1968, dia do aniversário dele, antes de embarcar para Madri, na Espanha, onde foram na expectativa de novas oportunidades – ele havia ganhado uma bolsa de estudos pelo Ministério da Habitação, Instituto Nacional de Habitação. Silvana e Marcos Carlevaro são os outros dois filhos do casal, ela arquiteta e ele engenheiro.
Hoje, o casal mora na Praia Brava, em Florianópolis, e dedica-se à família. Também mantêm relacionamento constante com o amigo uruguaio Brena. Paola assumiu escritório próprio – CARLEVARO arquitetura & design com a sócia Luisa Carvalho – e o desafio de reunir e escrever um dossiê sobre a história profissional do pai com passagens sobre a trajetória da mãe como a abertura de uma galeria de arte na Ilha. Confira os principais trechos desta entrevista.
Plan de Estudios de la Facultad de Arquitectura
Foi no banco da praça, na cidade de Pando, quando frequentava a Escola Militar de Aeronáutica da Força Aérea Uruguaia, que o arquiteto recebeu o incentivo do pai para suas escolhas profissionais: “O que vás fazer da tua vida? Ou trabalhas ou estudas. Se tu estudas, eu te apoio”, dizia o pai. “Ele foi meu grande mentor”, conta Yamandú Carlevaro.
Outras grandes influências foram o tio arquiteto Agustin Carlevaro e os professores de História da Arte e Teoria da Arquitetura, Altamirano Parpañoli e Leopoldo Artusio, respectivamente, que abriram o campo da disciplina para o jovem que não sabia desenhar e considerava-se ruim em matemática. “Me forcei a fazer o melhor desenho do mundo do ponto de vista criativo”, diz, lembrando que o professor de desenho na escola militar era arquiteto. Esses estudos são preparatórios e acontecem dois anos antes de entrar na faculdade.
A formação acadêmica foi determinada pelo famoso Plan de Estudios de la Facultad de Arquitectura, reforma realizada por arquitetos franceses, em 1952, que revolucionou o ensino no Uruguai ao apostar em professores qualificados, nos ateliês de arquitetura e na participação dos estudantes em projetos para os concursos que eram incentivados pelo governo para a construção de edifícios públicos. “Esta medida permitiu que os estudantes pudessem participar de processos de projetos maiores e mais complexos, numa amplitude de temas que incentivava o conhecimento de outras técnicas, matérias e profissões, havia uma integração das disciplinas”, complementa Paola.
Para se ter ideia do rigor acadêmico, o mesmo projeto era trabalhado desde o começo da faculdade a partir da escolha do terreno existente até o final do curso, que durava cinco anos, mas quase nenhum aluno se formava antes de nove anos de faculdade. Yamandú Carlevaro entrou na Faculdade de Arquitetura, de Bulevar Artigas, no bairro Parque Rodó de Montevidéu, em 1956, e formou-se no ano de 1965, período comum para os estudantes da época. O arquiteto participou do “Taller de Altamirano” e do “Taller Dufau”, ateliês onde o professor Nelson Bayardo deu aulas – ele foi referência para várias gerações e sua obra teve forte importância para a cultura arquitetônica do Uruguai.
Escritório
A trajetória de Yamandú Carlevaro foi marcada pelas parcerias para o desenvolvimento de projetos para concursos de arquitetura. No Brasil, o arquiteto Günther Schlieper, de Canela, no Rio Grande do Sul, contribuiu para a permanência do uruguaio no país, com quem participou de alguns concursos. São Paulo foi o destino em busca de oportunidade, em 1974, e lá aconteceu o reencontrou com Enrique Brena, colega de faculdade no Uruguai. Um dos primeiros trabalhos que realizaram juntos rendeu Menção Honrosa no Concurso de Ideias para Urbanização Acondicionamento Territorial e Estudos Paisagísticos para Edifício do Laboratório Tecnológico do Uruguai. Em seguida, decidiram participar do Concurso Público de Arquitetura para o Projeto do Terminal Rodoviário de Passageiros de Florianópolis, em 1976. Para atender a uma das cláusulas do contrato era
preciso possuir endereço fixo com escritório próprio de arquitetura na cidade. Então, assim que receberam a notícia que haviam ganhado, Yamandú Carlevaro e Henrique Brena mudaram-se para Florianópolis e fundaram o escritório CBA – Carlevaro & Brena Associados, /1976-1985. Quase 10 anos depois, o escritório muda para BCS Arquitetura, Planejamento, Construções e Incorporação LTDA, com mais um sócio, o uruguaio Luis Sader. A partir de 1998, as filhas Paola e Silvana deram continuidade ao escritório fundado pelo pai.
Ateliê Vertical
O contato com o ensino sempre se deu em paralelo à carreira profissional e reflete uma tradição arraigada da formação no Uruguai. O casal Yamandú Carlevaro e Maria Pilar foram professores na Furb, de 1988 a 2002, e levaram a experiência do ateliê de arquitetura para a faculdade de Blumenau. Ela nos conta essa história: “Não foi radical o que eu podia implantar, não tinha eco por parte dos professores, que não queriam mudar a maneira de dar aulas. Nós conseguimos ensinar de uma forma que abrisse caminhos para os alunos irem atrás do conhecimento, os estudantes que queriam mais, mas não chegou a um resultado realmente de um ateliê vertical na época que eu estava lá”. “Hoje fala-se ‘que quem sabe faz e quem não sabe ensina’, o que demonstra a pobreza do ensino. E em 1952 o que se perseguia era a excelência do professorado”, afirma Pilar.
“Hacer es uma forma de aprender”
“Participar dos concursos de arquitetura era uma forma de continuar estudando as disciplinas. Soma-se a isso à grande possibilidade de ter informações por meio dos professores e intercâmbio de ideias entre os alunos. Sempre com a premissa de que a arquitetura não é um fim em si mesma, é muito mais abrangente”, sustenta o arquiteto, incansável na defesa da prática de concursos públicos de arquitetura. “O objetivo dos concursos é a busca pela melhor solução para determinado espaço e função”, complementa.
Sua trajetória, assim como a do seu sócio e amigo Enrique Brena, foi marcada pela participação em concursos, um instrumento que proporcionou o conhecimento de uma amplitude de temas em diferentes áreas. Para ele, a ferramenta não só contribui com o crescimento profissional do arquiteto, mas também qualifica os edifícios públicos de uma cidade, assim como de seu sistema urbano. “Hacer es uma forma de aprender”, reitera.
“Fundamentalmente a gente tem que saber trabalhar com espaços”
“Para mim o mais importante não é resolver edifícios, é resolver espaços. Projetar um hospital, por exemplo, implica conhecimentos vinculados diretamente com a atividade da medicina, que é importante conhecer se não a gente não pode resolver. Fundamentalmente a gente tem que saber trabalhar com espaços”, argumenta. “O espaço tem que ser sugestivo”, complementa Pilar, “cumprindo a função, mas acolhendo as pessoas”.
Rodoviária mudaria o sistema de acesso ao pedestre
O Projeto do Terminal Rodoviário de Passageiros de Florianópolis, que recebeu o nome de Rita Maria em homenagem a uma famosa benzedeira residente nas imediações é a obra referência do arquiteto em terras catarinenses e representa um marco na arquitetura da cidade“A rodoviária, como qualquer outro edifício, exige um planejamento muito grande porque a função não se limita somente a ir e vir do ônibus – para isso eu faço uma garagem e coloco os ônibus ali. Tem que sincronizar tudo, movimento de passageiros, de ônibus, então não se trata de solucionar uma parte, mas vários pontos integrados. Do ponto de vista estético, o resultado positivo para o ser humano é o mais difícil de assegurar”, comenta.
O retorno do usuário é a melhor resposta ao projeto: “Com o passar dos anos, foram feitas muitas reportagens perguntando ao usuário se a rodoviária funcionava bem, e a maioria respondeu de forma muito positiva. Muitos chegaram a dizer que a rodoviária era melhor do que o aeroporto”. “É um espaço bem solucionado onde o usuário é conduzido sozinho para onde quer ir, ele entende o espaço, as pessoas se sentem confortáveis sem perceber isso”, diz a filha Paola. “A força do projeto é a parte estrutural que resolveu o problema dos vãos com vigas sem incomodar o fluxo dentro do local”, explica Carlevaro. Já o uso da telha de argamassa armada foi uma das poucas experiências realizadas no país naquela época.
Há dois anos, Carlevaro e Brena fizeram uma proposta de melhoria como a inserção de escada rolante em uma plataforma suspensa por pilares, de lado a lado, confluindo o fluxo dos passageiros que chegam e saem da cidade. “Problemas econômicos impossibilitaram a execução”, resume. Trinta e sete anos se passaram e Carlevaro diz, com humildade, que poderia ter melhorado o projeto. Eu pergunto o que ele mudaria: “o sistema de chegada. O pedestre tinha que acessar sem perguntar por onde se entra na rodoviária”, responde Yamandú.