Matéria exclusiva publicada originalmente no anuário ArqSC 10ª edição, escrita pelo jornalista Cristiano Santos.
Coletivos e movimentos mudam a paisagem urbana, permitem maior interação e mostram a força da co-criação para ampliar as relações pessoais
Observar da janela não é mais suficiente. É preciso abrir a porta, o portão, entregar-se e integrar-se às ruas. Se por décadas nos recolhemos às quatro paredes de casa, os últimos anos têm evidenciado um caminho inverso. São ações criadas a partir de coletivos e movimentos gerados por profissionais de diferentes áreas com o objetivo de devolver uma outra visão – e até mesmo outra funcionalidade – para o que nos cerca. Além de protagonista, o cidadão atua como uma ferramenta para a transformação dos espaços públicos com um impacto social real.
“A participação ativa da população na demanda por diversos âmbitos, por direcionamentos específicos nas cidades, não é nova, viveu ondas diferentes. Internacionalmente, nos anos 1960, um conceito chamado Direito à Cidade, criado pelo sociólogo Henri Lefebvre expandiu o assunto para o mundo”, explica Gustavo Andrade, arquiteto, urbanista e pesquisador do Laboratório Cidade e Sociedade da UFSC e coordenador do coletivo ativista Caminhada Jane Jacobs Floripa.
Lefebvre defendia basicamente a não exclusão da sociedade urbana das qualidades e benefícios da vida urbana. São estes direitos que têm levado a uma parcela da população a se mobilizar em busca de transformações em seu meio. A autoridade do cidadão torna-se reflexo de um desejo de agir coletivamente em favor de uma determinada causa e de congregar ideias. E os exemplos são os mais diversos. Pode resultar em ações como a transformação de um terreno baldio em uma horta comunitária, caminhadas que apresentem à cidade aos seus moradores ou a simples troca de objetos de consumo entre si.
“Entendo que uma das formas de empoderamento do cidadão ocorre por meio da participação em movimentos e coletivos devidamente organizados. É possível afirmar que a apatia aparente das pessoas pode ser superada na medida em que elas passam a identificar outras pessoas com preocupações e motivações similares e com capacidade de se articularem para chegarem a algum resultado esperado”, complementa a arquiteta e urbanista Silvia Ribeiro Lenzi, que atua no Movimento Traços Urbanos, também na capital catarinense.
Mudanças comportamentais, assim como a atual situação política e social do país e do mundo, principalmente na temática urbanismo, também têm impacto nessa realidade. Assim ocorre com o aumento no número de pessoas que vêm adotando um estilo de vida menos dependente do carro, optando pelos percursos de bicicleta e as caminhadas a pé. São atitudes que oportunizam maiores interações sociais, tornando as cidades mais humanas. Para Silvia, “a incorporação e disseminação de boas práticas cidadãs cotidianas e a contribuição na modelação dos espaços públicos através do tratamento “amigável” das fachadas das nossas casas e locais de trabalho são alguns dos exemplos que podem ser dados”.
Essencial na qualidade de vida das cidades – há bons exemplos com os aplicativos de mobilidade urbana e de economia criativa -, a tecnologia se tornou um agregador desses movimentos. A partir da divulgação em redes sociais, muitas ações reúnem novos colaboradores, permitem a captação de multiprofissionais para as causas e o aumento de seu alcance. “Criado a partir de um grupo de amigos, o Coletivo Caminhada Jane Jacobs, por exemplo, ganhou uma expansão muito grande a partir das mídias sociais. A visibilidade fez com que se integrasse com várias pessoas, conhecemos outros grupos com o mesmo interesse”, finaliza Gustavo Andrade.
ARMÁRIO COLETIVO
Carina Zagonel é uma entusiasta da economia compartilhada e colaborativa. Afinal, de uma ideia simples e objetiva – a troca de objetos de consumo – ela criou o projeto Armário Coletivo.
Há pouco mais de três anos na esquina de casa, no bairro Vargem Pequena, em Florianópolis, a artesã e empreendedora social colocou uma plaquinha com a frase “Deixe aqui o que você não usa mais, mas que pode servir para outros” ao lado de par de tênis usado. Minutos depois, o sapato sumiu e outros objetos surgiram na calçada.
Deste pontapé nasceu a ação de intervenção urbana que utiliza armários para transformar espaços públicos e criar novos hábitos de consumo entre as pessoas. Em mais uma amostra de colaboração, os armários são criados e produzidos por alunos do curso de Design de Produto do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) com reuso de materiais como madeira de demolição. Atualmente, são 12 móveis espalhados pela cidade – o primeiro já gerou mais de 7,5 mil compartilhamentos -, proporcionando não só a troca de objetos, mas também o intercâmbio de moradores, a recuperação e a devolução de espaços públicos ao cidadão:
“Esse é o grande diferencial. Não é só roupa, o Armário Coletivo é de tudo, livro, ferramenta… Cada lugar tem uma característica. Na Vargem Pequena já trocamos mais de 250 mudas de árvores frutíferas, a gente criou essa cultura. No Rio Tavares, tinha uma bicicleta de criança para compartilhar. Isso é emocionante, com certeza muda a expectativa de quem vive e passa por ali”, relembra.
E Carina vai além, definindo outros sentimentos do que foi proposto inicialmente: “A gente quer fazer com que as pessoas sintam essa cultura, que a gente já tem naturalmente, é só resgatar. Precisamos levantar de novo a esperança de que as pessoas possam se ajudar. A nossa ideia é para o Brasil inteiro, já tem muita coisa inspirada em várias cidades. Por mais que o Armário Coletivo seja offline, ele também está no mundo online. Ele acessa os dois mundos: é para a vovó que cuida dos três netos em casa, mas também para a galera que está em Amsterdã”, finaliza Carina.
CIDADES INVISÍVEIS
Foi observando além da lente da câmera que o fotógrafo Samuel Schmidt enxergou as necessidades de comunidades carentes da Grande Florianópolis. Há cinco anos, o também advogado criou o projeto com a intenção de se transformar na melhor marca social do país. Inicialmente, suas fotos estamparam camisetas e outros acessórios com a renda revertida para famílias destas localidades – as imagens ganham novas leituras a partir da criatividade de artistas visuais como Julian Gallasch e Thiago Valdi, entre outros. Além da venda dos produtos, desde que foi criado, o Cidades Invisíveis já realizou diversas ações de impacto social atingindo mais de 15 mil pessoas. Construção de parquinhos infantis e casas sustentáveis, oficinas de leitura, bibliotecas ambulantes e reurbanização de algumas áreas de uso público, além de distribuição de cestas básicas e ações de saúde, fazem parte da programação do projeto, que conta com a visibilidade da atriz Thaila Ayala como madrinha.
CIDADE ATIVA
O movimento active design, criado nos Estados Unidos, serviu de inspiração para os criadores do Cidade Ativa, de São Paulo. A organização nasceu, em 2014, da urgência de se pensar e criar cidades mais inclusivas e saudáveis com o objetivo de usar o urbanismo para combater o sedentarismo.
Um dos primeiros projetos do Cidade Ativa é o Olhe o Degrau, um mapa colaborativo das escadas da capital paulista. Essenciais para o ir e vir, estes espaços, geralmente, estão deixados de lado pela população. A ideia surgiu quando os integrantes participaram de um concurso internacional que previa a reforma de um espaço urbano com US$ 4 mil.
Na primeira ação, realizaram oficina, piquenique e um varal para que as pessoas expusessem suas idéias sobre como seria a escadaria dos sonhos. Desta forma, se tornou uma estratégia para fazer com que o cidadão interagisse com o lugar como nunca havia pensado.
As ações do Cidade Ativa são orientadas pela leitura atenta de espaços e pessoas, além da observação em campo. Assim, são desenvolvidas e aplicadas metodologias de pesquisa para criar projetos e avaliar o impacto das ações realizadas.
MOVIMENTO UM
A atuação do Movimento Um está baseada em três vertentes: educação, arte e entretenimento e ação social e socioambiental. Formado por jovens da Grande Florianópolis em busca de seus papéis como agentes de transformação, o grupo conta atualmente com 30 voluntários. “Muitos carregam tesouros escondidos por nunca terem uma oportunidade de serem descobertos. O movimento é mais que uma associação que visa o bem comum e social, é um movimento voltado às pessoas”, resume Tiago de Souza Azevedo, diretor presidente da ONG.
As ações começaram no primeiro semestre de 2016 com a ajuda da visibilidade das mídias sociais. Entre os projetos, o Faça um Vovô Sorrir, dentro dos asilos da região; Limpando a Cidade, mobilização para limpeza de espaços públicos e consciência da população na preservação do meio ambiente; e o Fashternoon, que incentiva os artistas a levarem sua arte para a sociedade por meio de artes plásticas, música, moda e design.
PARQUE MINHOCÃO
A história do Minhocão é antiga. Criado em 1976 para desafogar o trânsito entre as zonas leste e oeste de São Paulo, o Elevado Costa e Silva, no Centro, já nasceu polêmico. Quem morava na região viu suas janelas serem tomadas por centenas de carros diariamente, assim como a degradação lenta das imediações. Décadas se passaram e um grupo de moradores se organizou para transformar o local em um parque, em mais uma ideia inspirada nos Estados Unidos. Em Nova York, uma antiga linha de trem se tornou um parque suspenso e o High Line é hoje um dos pontos turísticos mais visitados da cidade norte-americana.
Aos poucos, os moradores conseguiram que o elevado fosse fechado aos domingos para os pedestres. A ação recebeu milhares de pessoas, exposições, manifestações e o projeto cresceu, ganhando a visibilidade necessária para a concretização da proposta. No início deste ano, foi publicado no Diário Oficial de São Paulo a lei que prevê o fechamento integral do Minhocão para carros aos sábados, domingos e feriados. A partir de maio, o tráfego será proibido de segunda a sexta, das 20h às 7h. Em dois anos, a prefeitura deverá apresentar um projeto de intervenção urbana no local, reorganizando o tráfego para transformar o local em um parque em tempo integral. A participação da população está garantida nesta mesma lei.
TRAÇOS URBANOS
Não é preciso adentrar com profundidade no site do Traços Urbanos para entender o interesse do movimento. Lá, estão estampados os números que falam por si: Florianópolis tem mais de 477 mil habitantes, recebe cerca de 2 milhões de visitantes por ano e conta com 208 espaços públicos. Atualmente com mais de 100 participantes, formando uma equipe multidisciplinar, o grupo tem como propósito a realização de ações coletivas para qualificar espaços públicos da Capital.
“Cada vez mais eu acredito que o momento da nossa história é o do fazer coletivo. Nenhuma das questões serão resolvidas por uma única mente brilhante. Ao contrário, é na troca de saberes, nas atitudes solidárias e no entendimento de que toda a sociedade compõe um único organismo que necessita ser atendido na sua totalidade, é que poderemos superar muitos dos problemas agora enfrentados”, defende a arquiteta e urbanista Silvia Ribeiro Lenzi, integrante da comissão de curadoria do movimento.
Iniciado em novembro de 2016, o projeto levou ao chamado Distrito Criativo, região no Centro histórico leste da cidade, manifestações artísticas e musicais, painel de debates e exposição de trabalhos acadêmicos e de exemplos bem-sucedidos de intervenções urbanas. Desde então foram realizadas ações como o Nossa Rua,o Varal dos Desejos, na Rua Saldanha Marinho, e a Oficina: Arquitetura para Crianças, incentivando os pequenos a desenvolverem maquetes de casas e montarem uma pequena cidade levando em conta as relações das pessoas com o meio urbano. “No início do ano passado, a partir do grande grupo foram criados outros menores responsáveis por atividades específicas. A nossa estratégia foi começar com ações possíveis de serem concretizadas num prazo de até três meses e irmos avaliando o processo e os resultados atingidos”, comenta Silvia sobre as novas definições do movimento.