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As iniciativas de artistas e coletivos voltadas para criação de lugares de debates, encontros, exposições ou mesmo para a formação de jovens artistas, apostando em estratégias que dão vazão à produção cultural do país, incidem diretamente no tecido social da cidade. Na tentativa de propor uma discussão sobre as particularidades destes lugares de encontro e, por consequência, assinalar as dependências que implicam o nosso lugar nesta articulação, farei um breve apanhado de projetos e artistas de Florianópolis (SC), engajados em aumentar, através da arte e/do encontro, o terreno da liberdade.
Dos artigos de jornal das décadas de 50 e 60, aos textos de catálogos escritos por curadores e artistas, diretores de museus e presidentes de associações, ou mesmo artigos recentes, como os escritos no livro “Construtores das Artes Visuais”, sempre houve uma preocupação em apontar os momentos em que a arte produzida no estado obteve projeções nacionais e/ou internacionais. Nossa história é, na maior parte das vezes, escrita através de exemplos de artistas ou movimentos que foram vistos fora das fronteiras regionais. Quando o artista modernista Meyer Filho realizou uma exposição no Rio de Janeiro, na galeria Penguin, em 1960, ele escreveu ao lado do convite: “Esta foi a PRIMEIRA exposição individual de artista moderno catarinense fora do estado de Santa Catarina. 1960!!!”.
Pouco mais de meio século se passaram depois desta declaração por escrito e a impressão é que permanecemos pensando da mesma maneira. A luta dos artistas modernistas, em ter seu trabalho reconhecido “lá fora” sempre foi para, enfim, obter reconhecimento na sua própria cidade como importantes “artistas catarinenses”. A meu ver, ainda estamos por construir “uma geografia do possível”, como propôs o historiador e antropólogo Michel de Certeau, para que possamos “prover de localizações concretas os problemas tidos como os mais importantes, a organizar uma lista de pontos de impacto pertinentes, a projetar hipóteses concretas sobre o solo da vida social”. Para tanto, devemos pensar seriamente em meios de organização e articulação do coletivo, com vistas a indagar – para diminuir – a distância incompatível entre público, artistas, espaços e coletivos atuantes na cidade.
É fato que os anos 1980 foram marcados por um superaquecimento na produção de arte, caracterizada pela retomada da pintura. Mas diferente de outros estados do Brasil, em Santa Catarina não houve um movimento ou uma exposição emblemática, como foi o caso da mostra “Como vai você, geração 80?” que representasse a pesquisa artística realizada no estado, dado que talvez justifique a ausência de uma documentação representativa que abarque os artistas e as obras desta época. Considero que não houve no estado uma demarcação de território, uma vez que os artistas desenvolveram uma produção artística independente, completamente desvinculada do mercado de arte e sem cair no chavão da pintura, aderido de forma quase unânime no ocidente.
Oficina CIC
Significa dizer que houve uma rica pesquisa das diversas linguagens artísticas, entre elas: cerâmica, tapeçaria, desenho, instalação, performance, gravura, escultura e pintura, muitas das quais valorizando uma poética experimental. Foi a primeira vez na história de Santa Catarina que se formaram coletivos de artistas e que a produção não ficava apenas restrita aos ateliês individuais, já que nesta época foram criadas as Oficinas de Arte do Centro Integrado de Cultura. O papel do CIC foi de fundamental importância para os artistas, na medida em que suas oficinas propiciaram muito mais do que questões meramente técnicas. A aproximação entre os artistas constituiu um espaço de debate e reflexão multidisciplinar, envolvendo arte, política, literatura, entre outros e a articulação de exposições e mostras coletivas.
Oficina CIC
Saliento aqui, portanto, a importância destes diversos “circuitos” de formação, encontro, difusão e espaços de/para arte. Lugares de debates, conversas, trocas de experiências ou mesmo espaços que permitam uma dinâmica mais coletiva de vivência em arte. No decorrer dos anos, muitos museus, galerias e ateliês foram encerrando suas atividades, fechando suas portas ou mesmo tornando-se obsoletos e/ou pouco representativos para o circuito artístico local.
Se o circuito artístico de Florianópolis, até os anos 80, foi marcado por fatos históricos relacionados à criação de espaços para a arte; ao tímido, mas presente, surgimento de um mercado de arte; ao fomento da produção artística; às idas e vindas para além das fronteiras do Estado; à circulação da produção local em salões nacionais ou, ainda, marcado por figuras como Harry Laus, talvez possamos identificar que dos anos 90 em diante, nossa história passou a ser escrita pelo viés da resistência, da reação ao vazio, das extinções de editais públicos e das retrógradas condutas dos dirigentes de equipamentos culturais voltados para as artes visuais, tanto do estado quanto do município.
Instauração de lugares
Gostaria de sugerir especial atenção a algumas iniciativas que, de alguma forma, contornaram essa ausência de equipamentos públicos para as artes e fizeram de suas casas espaços para contemplar a prática experimental que surgia como potência na ilha. Foi o caso do Projeto Contramão, idealizado pelas artistas Adriana Barreto, Bruna Mansani e Tamara Willerding. Este projeto contou com 14 edições, cada uma delas foi proposta por uma pessoa diferente, geralmente o dono da casa em que o projeto acontecia.
Roberto Freitas também abriu as portas de sua casa com o Espaço ARCO. Ali aconteciam exposições, oficinas, conversas, cursos e festas (alternativa que o artista encontrava para ajudar a manter o espaço aberto ao público).
Espaço ARCO
O artista Yiftah Peled, criou o Contemporão Espaço de Performance, localizado na garagem de sua casa e as artistas Letícia Cardoso e Fabiana Wielewicki o Centro Cultural Arquipélago, que funcionava também como uma galeria com foco em artistas contemporâneos do estado.
Centro Cultural Arquipélago
Contemporão Espaço de Performance
Entre as iniciativas mais recentes, de menor e maior escala, há o NaCasa Coletivo Artístico (Trindade), o espaço O Sítio (Lagoa da Conceição), a FAF: Feira de Arte de Florianópolis (Centro), a Tralharia (Centro), o Espaço Oficina-Galeria Estúdio (Cacupé), a Sala de Leitura|Sala de Escuta (Ceart/Udesc), entre outros.
NaCasa
O Sítio
FAF – Feira de Artes de Florianópolis
Tralharia
Sala de Leitura|Sala de Escuta (CEART/UDESC)
Espaço Oficina Galeria Estúdio
Projeto “Nuvens” de Giba Duarte
Estas são ações que envolvem diversas camadas de organização do debate crítico, como ciclo de palestras, residências artísticas, elaboração de fanzines, revistas sobre arte e publicação de artistas, produção de vídeos e documentários, cursos de médio e longo prazo, além de sediar projetos propostos por outros artistas e instituições. São dinâmicas de produção de esferas públicas e de instauração de lugares que transformam o contexto ao mesmo tempo em que são transformados por ele. Não por serem “pequenos” esses espaços, – no sentido de espaço físico e de público quantitativo – mas por serem articulados, é que eles percebem que as consequências dos encontros e das relações afetivas movimentam positivamente suas dinâmicas de produções artísticas, estratégias de agenciamento e conteúdos críticos.
Experiência afetiva
Visto que é necessário limitar o nosso assunto de discussão, gostaria de apresentar o projeto Encontros Entropicais, que consiste em conversas-experiência realizadas na casa-laboratório dos tropicalistas Marco D Julio e Marcelo Fialho. Orientadas para o debate acerca de temas que buscam criar uma fricção na maneira como ambos compreendem as relações entre natureza e cultura, e arte e sociedade na contemporaneidade, estes encontros possibilitam a criação de estratégias de convívio e afeto. Proposta direcionada à convicção da importância dos afetamentos produzidos pelos bons encontros. Este é o objetivo principal do projeto, produzido em parceria com a curadora Mônica Hoff, e que teve início em 2015.
Marcelo Fialho e Marco D Julio: Os Tropicalistas
Deixemos aos Tropicalistas a tarefa de descrever estes encontros, através de uma carta escrita especialmente para este momento do texto:
Nosso primeiro projeto juntos foi a criação de uma coleção de roupas, em um momento de efervescência na cena de moda autoral no Ceará. A partir daí, a parceria se ampliou para outras áreas, especialmente para o debate sobre as relações entre artesanato, arte e design, não apenas do ponto de vista da criação, mas também dos (nossos) modos de vida. A vinda para Florianópolis, em 2011, propiciou a criação de um espaço de emergência de novas sensibilidades, a nossa casa-estúdio-galeria. Com isso, o processo de trabalho se abriu e amplificou, renovando-se em termos de investigação e incluindo matérias de qualquer procedência. Uma trilha, uma caminhada, uma volta no bairro, deslocar-se sem pressa pela cidade passou a ser uma espécie de metodologia de trabalho. A partir daquele momento, o sentido do trabalho passava, então, a residir justamente no que parecia não fazer sentido ou caber no mundo – suas sobras, seus descartes, seus excessos. Passamos a nos apropriar daquilo que estava no nosso caminho, deglutindo-o e transvalorando-o como prática diária de vida e trabalho.
A aproximação com a Mônica Hoff materializou nossa convicção sobre a importância dos afetamentos produzidos pelos bons encontros. Entre outras frentes de ação conjuntas, investimos em um projeto cujo objetivo principal é produzir encontros – conversas – com um grupo muito pequeno de pessoas (3), no geral desconhecidos (por nós), e registrar os afetos, em seus múltiplos sentidos, ali produzidos. Assim como suas reverberações. Os Encontros Entropicais (e este nome diz muito sobre nós e nossa entropia tropical) nasceram da nossa necessidade de conversa com este lugar, seus atores e tempos, e do desejo de buscar e inventar novas formas de relação com a arte a partir de dispositivos micropolíticos de afeto e partilha, ou seja, a partir daquilo que está ao nosso alcance e que não sofre mediações institucionais (nossa casa, nossa disponibilidade, nosso afeto, nossa escuta), podendo ser o que quiser ser, e instaurando, portanto, novas práticas e novos sentidos no mundo sobre os quais não temos qualquer controle.
Entretropicais
Esses encontros, afetos e experiências proporcionam oportunidade de aprofundar e desviar de generalizações apressadas, de construir situações – na concepção do pensamento urbano-situacionista – no sentido da transformação revolucionária da vida cotidiana. São conversas que excedem três horas de duração e que acontecem no lugar de morada, pesquisa, trabalho e exposição dos artistas-designer-etc. Em ambos encontros realizados, LENTO e ARRANJO, o propósito foi, no primeiro, conversar (sem pressa) sobre arte e como nos relacionamos e mudamos a experiência com o tempo e, no segundo, refletir e compartilhar incertezas sobre a noção de Arranjo, seus múltiplos e contraditórios sentidos afetivos e políticos e nossos modos de produzir conhecimento. Assim, os encontros se materializam conforme o tema proposto: como Lento na tentativa de percepção do tempo e suas infinitas formas de apreensão através da arte e, como Arranjo, num conjunto de vozes múltiplas e dissimilares, ímpares e irregulares, conhecidas e estranhas, que se acionam e desmontam mutuamente pelo simples prazer de arranjarem-se e desarranjarem-se novamente. A implicação do nosso lugar nestas articulações é, portanto, a confluência das experiências cotidianas, a construção de lugares que se dá entre um campo próprio e outros absolutamente opostos.
Para voltar ao Certeau, “não poderemos discutir a cultura, assim como seus aspectos globais, sem reconhecer, em primeiro lugar, o fato de que tratamos desse assunto apenas segundo um certo lugar, o nosso”.
Kamilla Nunes é curadora independente graduada em Artes Plásticas pelo Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (CEART/UDESC), autora do livro “Espaços autônomos de arte contemporânea”, lançado em 2013 através da Bolsa Funarte de estímulo à produção crítica.
artigo exclusivo publicado em 2016.