Conhecido nas redes sociais como @arqdesterro, Ricardo M. se tornou um ícone das lutas anti-demolição do patrimônio histórico na capital catarinense nos últimos anos. Seus registros e arquivo visual construídos de forma ativa e ativista nas redes sociais traçam a memória recente da cidade marcada pelo capital imobiliário. Nessa conversa, Ricardo M. fala sobre o seu processo de arquivamento da destruição, casos emblemáticos e de imagens de arquiteturas feitas #antesquedesapareça (m) em Florianópolis, a antiga Desterro.

…a cada dia que passa, parece que a cidade tem crescido tanto e tão rápido, que tudo vai ser pasteurizado, e não vai sobrar nada pra contar a história da cidade
Eu gostaria que a gente começasse com você se identificando. Pode ser do jeito que você pode e quer, já que no seu perfil público nas redes sociais você preza pelo anonimato e isso tem sido parte da relação que você estabelece com o público.
Sou Ricardo, bacharel em direito, zero formação acadêmica em arquitetura, apesar de gostar muito de ler sobre “arquitetura clássica”. Gosto muito de estudar sobre a história de Florianópolis também, porque não sou nativo. Moro aqui desde 2011, vindo de uma cidade do interior do estado, Gaspar. Gosto de fotografia também.
Sou funcionário público, mas meu trabalho se desenvolve mais externamente, principalmente pelo Centro Leste / Morros do Centro, e, esporadicamente, por toda a cidade. A página é uma junção desses fatores. A questão do anonimato meio que virou um “meme” da página, mais porque eu acho a vibe aspirante de influencer meio cafona.

Como começou seu interesse em documentar as edificações em Florianópolis antes que elas desapareçam? E qual seu maior desafio nessa empreitada de documentação?
Em meados de 2022, eu resolvi criar uma conta aberta no Instagram pra ficar fotografando coisas “aleatórias / pseudo-humorísticas” que eu via por aí. Nessa mesma época, não me recordo exatamente por qual motivo, eu li o livro “Florianópolis: Memória Urbana” da Eliane Veras da Veiga, e, apesar de não ter formação em arquitetura, achei super “impactante” o livro. Notadamente, me chamou a atenção o choque “desenvolvimento vs preservação do patrimônio arquitetônico”, e como tanta coisa já havia sido derrubada. Então acabei usando essa conta no instagram para registrar os imóveis que ela mencionava no livro e, enquanto eu andava por aí, outros imóveis que eu achava “bonitos” ou historicamente relevantes. Não tinha grandes pretensões nem um objetivo específico.
Com o passar do tempo, acabava revisitando ruas que já tinha passado, e via como o processo de “desenvolvimento” seguia forte ainda e o pouco do patrimônio arquitetônico que restava, notadamente as casinhas bonitinhas escondidas nos bairros, seguiam sendo destruídas. E essa acabou virando a “temática” da página.
Desafio mesmo, não sei se tenho. Talvez percebo que cada vez fica mais difícil achar algumas casas que eu não tenha fotografado. Eventualmente a galera [os seguidores] fica brava que fotografei e postei foto da sua casa “sem autorização”.
Você tem algum método e/ou uma motivação específica nesse processo? Exemplos: mapeamento, caminhadas, pessoas que te informam, etc.
A motivação é o registro desses imóveis. Pois, a cada dia que passa, parece que a cidade tem crescido tanto e tão rápido, que tudo vai ser pasteurizado, e não vai sobrar nada pra contar a história da cidade. Com a evolução da página, quem sabe chamar a atenção sobre esse crescimento desordenado e a especulação imobiliária.
Justamente o registro das casinhas sem tanta relevância arquitetônica, mas que evocam uma certa nostalgia de casa de vó, quando são derrubadas, parecem impactar mais as pessoas. E como o meu trabalho é ficar andando e dirigindo pela cidade, os registros acabam acontecendo organicamente. Mas o pessoal me manda várias fotos antigas, dicas de imóveis legais ou que foram derrubados recentemente.
Então é quase um processo de ativismo urbano misturado com cool hunting…E algum tipo de arquitetura, seja pela linguagem, época ou programa, te atrai mais para documentar ou tem desaparecido com mais frequência?
Certamente as casas de bairro que encontro aleatoriamente, acredito que a maior parte dos anos 70/80, que justamente porque nunca são tombadas, são as mais derrubadas.
E como você acredita que as redes sociais impactam no que você está fazendo e vice-versa? Você pensa na hashtag #antesquedesapareça e o perfil arqdesterro como uma forma de ativismo ou uma ferramenta?
Impacta, sim. No começo da página, a maior parte do público era justamente o pessoal “acadêmico de arquitetura”. Mas, com o crescimento e fluxo de novos seguidores, hoje a maior parte das pessoas que engajam com postagens são pessoas não vinculadas à arquitetura que, no geral, notam e lamentam as demolições. No começo, era só uma ferramenta de estudo pessoal mesmo. Hoje, acho que dá pra dizer que é uma forma de ativismo, justamente como uma forma de chamar a atenção para esse processo, que parece não ser possível de interromper.
Algum desses esforços de documentação já reverberou para além das redes? Exemplo: tornou-se um motivo para manter alguma edificação em pé, etc.
Concretamente, a ponto de manter algo em pé ou ser reformado, acho que não. No máximo, talvez, para dar visibilidade a alguma demolição mais emblemática, que talvez teria passado despercebida / não noticiada pela “mídia tradicional”. Esse é o caso da casa do Carl Hoepcke, na Avenida Trompowsky.
Com certeza, nesse caso envolvia uma edificação reconhecidamente valorosa e conectada com a história das elites da cidade. E, nesse caso, você relaciona sua prática de documentação com as mudanças na paisagem da cidade brasileira, principalmente em relação ao avanço do capital imobiliário?
Sim, certamente. A especulação imobiliária, em Florianópolis, pelo menos, é a força motriz desse movimento.
Arqdesterro continua as suas andanças pela cidade, registrando os resíduos de um passado inconveniente para as forças da especulação imobiliária.
Dentre suas andanças pela cidade, tem algum caso específico de demolição e registro que você gostaria de comentar? Alguma edificação com uma história ou conexão afetiva que te tocou mais ou que os teus leitores/seguidores se envolveram de uma forma mais densa?
Que eu gostava pessoalmente, tinha uma casa, na Rua Monsenhor Topp, atrás do supermercado Imperatriz da Avenida Mauro Ramos. Eu fiquei anos passando ali na frente toda semana e achava ela muito lindinha. Sempre reparava em uma senhorinha que morava lá e cuidava com bastante esmero do jardim. Passou um tempo, não vi mais a senhorinha, o mato começou a tomar conta e uns meses depois foi derrubada e virou estacionamento.
Do ponto vista de “revolta” dos seguidores, definitivamente a casa do empresário Carl Hoepcke fica na Avenida Trompowsky. Até hoje, é um dos posts mais visualizados e comentados da página. Foi tudo muito rápido. Acho que a Prefeitura autorizou a demolição na sexta e, no sábado de manhã, já tinham duas retroescavadeiras lá derrubando. Supostamente, se não me engano a Anita Hoepcke [herdeira], tentou por duas vezes tombar a casa junto a Prefeitura, mas teria sido negado.
A Clinipar [clínica médica pediátrica], ali na Mauro Ramos, também causou revolta. Essa já tem autorização de demolição da Prefeitura, e acho que só não foi derrubada ainda porque foi judicializado. O Ministério Público, se não me engano, entrou com uma Ação Civil Popular ou algo do tipo. Muita “revolta” pela inevitável demolição.
Arqdesterro continua as suas andanças pela cidade, registrando os resíduos de um passado inconveniente para as forças da especulação imobiliária. Florianópolis e o litoral centro-norte de Santa Catarina estão entre as áreas com maior concentração de renda e com metro quadrado mais caro do país, atraindo holofotes da mídia e motores do capital financeiro, como em Balneário Camboriú. Entretanto, na contramão de cidades como Barcelona e Lisboa, a prefeitura de Florianópolis recentemente firmou um contrato de cooperação de dados com o Airbnb para desenvolvimento urbano. A decisão quase que silenciosa causou controversas de recepção e deve impactar drasticamente a infraestrutura e demanda e moradia ante ao turismo especulativo. Aparentemente, a demolição deve continuar.
Parceria colaborativa
Sedimento é uma newsletter bilíngue editada por Lucas Reitz publicada no Substack, em conjunto com o portal ArqSC, com apoio de divulgação do IAB/SC e com material arquivado no muq.
Na Sedimento #1, Lucas Reitz entrevista Ricardo M. em colaboração com o ArqSC.